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Quando a pressa é inimiga da perfeição

Por admin

Moçambique está a viver um momento político particularmente efervescente resultante das exigências que a segunda maior força política nacional, a Renamo, tem estado a fazer no sentido de “forçar” a aprovação de uma proposta legal que tem como objectivo criar autarquias provinciais.

O documento foi submetido à Assembleia da República que, por sua vez, solicitou o parecer da Ordem dos Advogados, entidade que, entre outros, tem como atribuição contribuir para o estudo e divulgação das leis. É nesta esteira que esta agremiação está a realizar sessões de auscultação das mais variadas sensibilidades sobre a matéria.

Para começar, a Ordem dos Advogados distribuiu o documento pelos seus membros que desmontaram o material ali contido peça-a-peça, tanto em termos de metodologia de elaboração, como na especialidade, ou seja, artigo por artigo.

Para a realização desta “cirurgia”, o colectivo de advogados que anuiu à solicitação da ordem recorreu aos ensinamentos dos professores Jean Luis Bergel, da Universidade de Marselha, em França, e Gilles Cistac, da Universidade Eduardo Mondlane (recentemente assassinado em Maputo).

A escolha de Jean Luis Bergel e Gilles Cistac resulta do facto estes possuem publicações sobre questões de método na preparação dos projectos normativos e “guiões” que se devem obedecer para a apreciação ou preparação de documentos do género.

Aliás, o professor Jean Bergel é citado como tendo construído a ideia de que “a lei, que é um dos instrumentos jurídicos da governação, deve ser prudente, prática, aceitável socialmente e eficaz e se atende a genuínas necessidades do país”.

Como resultado desse exame crítico, a Ordem dos Advogados identificou 10 questões que se levantam no quesito metodologia e que deviam ter sido tomados em conta pelo proponente, que no caso vertente, é a bancada parlamentar da Renamo.

Os advogados se interrogam sobre a necessidade social do projecto, a sua denominação, oportunidade, se o quadro legal vigente é ou não suficiente para resolver os problemas, se houve participação efectiva da sociedade e se os problemas que se pretende resolver foram colocados ao nível adequado.

Também questionam a economicidade institucional, se as questões fundamentais para a criação de uma lei de autarquias provinciais foram debatidos e consagrados nesta proposta, se a fase posterior à aprovação foi pensada e se o projecto da Renamo não colide com a Constituição da República.

A meio do percurso, os advogados questionam sobre a pressão que a Renamo está a exercer para que o documento seja aprovado o mais rápido possível. “Isso remete a um processo legislativo de urgência que nem sempre é compatível com a pretensão de produção de um texto legal prudente, justo e eficaz”, dizem.

Depois de olhar à lupa para o documento, a Ordem dos Advogados parece não ter dúvidas nos comentários que faz uma vez que sublinha que um processo de elaboração de uma lei de autarquias provinciais deveria ser precedida de estudos e consensos políticos à escala nacional.

Julgamos que precisamos de ser realistas e avaliar se é verdadeiramente oportuno introduzir uma lei de autarquias provinciais, avaliar se a sua introdução será um factor de estabilidade ou não das nossas instituições”, enfatizam Eduardo Chiziane e António Leão, que dão a cara pela Ordem dos Advogados.

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Necessidade social do projecto

A Ordem dos Advogados entende que o projecto apresentado pela Renamo merece um primeiro questionamento relacionado com a sua necessidade social. O advogado Eduardo Chiziane sustenta a questão citando o professor Bergel que refere que “a lei é o braço armado da política”.

Assim sendo, Chiziane entende que para que a política se concretize é preciso que se olhe para a lei como um dos instrumentos jurídicos de governação de uma sociedade. Neste sentido, “a proposta da Renamo deveria, antes da sua transformação em projecto legislativo, avaliar e construir consensos políticos juntos das diferentes forças políticas da nossa sociedade”.

Eduardo Chiziane rebusca mais uma vez o professor Bergel que defende que “a elaboração da lei, que é um dos instrumentos jurídicos da governação, deve ser prudente, prática, aceitável socialmente eficaz e se atende a genuínas necessidades do país”.

Posto isto, o representante da Ordem dos Advogados sugere que a sociedade deve se questionar se o documento que está na mesa reúne estas qualidades e aponta que a elaboração legislativa repousa sobre uma fase preparatória onde se deve realizar uma pesquisa preliminar que ditará se é necessário legislar ou não.

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Denominação do projecto

Para a Ordem dos Advogados, a sociedade deve verificar se é adequado chamar àquele documento de “Projecto de Sei sobre o Quadro Institucional das Autarquias Locais”, conforme a Renamo propôs. “Será que esta denominação é adequada?

Conforme referiu Eduardo Chiziane, em Moçambique, o município e a povoação são aquilo a que poderíamos chamar de “Autarquias Locais de Base”, parafraseando o Professor Diego Freitas de Amaral, porém, estas encontram-se parcialmente implementadas porque as de povoação nem sequer avançaram e as de nível municipal também estão a ser gradualmente criadas desde 1998.

O artigo 273 número 4 da Constituição estabelece que a lei pode estabelecer outras categorias autárquicas superiores ou inferiores à circunscrição territorial do município ou da povoação. A opção de propor a criação de autarquias supramunicipais, em termos formais, pode não representar um problema. Contudo, a sua denominação deve ser coerente e conforme a Constituição”, diz Chiziane.

A necessidade de ponderar a constitucionalidade da proposta da designação resulta do facto de a província ser uma circunscrição integrada nos órgãos locais do Estado onde existe a figura do governador e do governo provincial por força do artigo 264 numero 4 da Constituição.

A Ordem dos Advogados entende que a Renamo poderia ter ponderado outras designações porque, no começo propôs a criação de regiões autónomas, e depois mudou para autarquias provinciais, quando a Lei 3/94 introduziu os distritos municipais, que ainda não foram implementados, numa opção integrada de autarcização do território nacional que procurava justiça e equilíbrio. “Em nossa opinião, esta deveria ser a autarquia supranacional imediata”.

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Oportunidade do projecto

Temos que nos perguntar se este projecto é oportuno e é preciso recuarmos um pouco no ponto de vista estrutural histórica e municipal e veremos que a autarcização é um processo muito incipiente. Ainda não consolidamos as autarquias de base”, considera a Ordem dos Advogados na voz de Eduardo Chiziane.

De facto, o país conta com 53 autarquias municipais e falta estabelecer as autarquias de povoação. Por causa disso, os advogados consultados entendem que o princípio de gradualismo garante alguma sustentabilidade no processo de descentralização, pese embora o governo aponte que este tipo de gradualismo pode representar uma oportunidade e um obstáculo ao mesmo tempo.

As autarquias municipais existem apenas há 18 anos pelo que a Ordem dos Advogados pergunta se se justifica a criação de autarquias tão afastadas da ideia de vizinhança das pequenas comunidades naturais. “As autarquias provinciais são de nível superior, com uma marca de relativo afastamento das populações, com uma ideia de vizinhança um pouco diluída. Será que esta opção de criar as autarquias provinciais é sustentável financeiramente?

Eduardo Chiziane afirma ainda que, de forma objectiva, um processo de elaboração de uma lei de autarquias provinciais deveria ser precedida de estudos e consensos políticos à escala nacional. “Julgamos que precisamos de ser realistas e avaliar se é verdadeiramente oportuno introduzir esta lei e avaliar se a sua introdução será um factor de estabilidade ou não das nossas instituições”.

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O quadro legal vigente

é ou não suficiente?

Outra questão que se levanta em torno do projecto de lei apresentado pela Renamo relaciona-se com o facto se estar perante um quadro que parece revelar algum esquecimento em relação àquilo a que os legisladores chamam de “Avaliação Retrospectiva do Direito Vigente”.

Esta avaliação reza que sempre nos devemos questionar se o quadro legal que vigora é ou não suficiente para resolver uma determinada preocupação. “A preocupação de fundo nos tempos actuais é de reforçar a descentralização, conceder maior autonomia, repartir melhor os recursos entre o Estado e o poder local. Será que estas preocupações não podem ser solucionadas com base no quadro legal que temos actualmente? Seria importante fazer essa avaliação retrospectiva do direito vigente antes de se pretender introduzir novos instrumentos legais”.

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Participação dos cidadãos

Há ou não uma aparente falta de participação na elaboração este projecto e o tempo que nos é concedido para aprofundá-lo e aprecia-lo será suficiente?” questiona a Ordem dos Advogados que a seguir sublinha que dada a importância deste projecto, a sua preparação devia basear-se num processo de participação activa e estruturada dos cidadãos em relação ao conteúdo do projecto.

Para os juristas nacionais, um projecto de revisão normativa implica transparência e acesso à informação do público em geral “porque não se pode reformar a lei às escondidas”.

Explicam ainda que muitas vezes fica-se com a impressão de que o legislador improvisou e que os textos normativos são fruto de interesses políticos específicos, pressões sociais, económicas ou da imprensa e que não houve um debate com a perspectiva de fazer a integração dos interesses da sociedade.

A pressão que a Renamo está a exercer mostra que quer que seja um processo acelerado, o que remete a um processo legislativo de urgência que nem sempre é compatível com a pretensão de produção de um texto legal prudente, justo e eficaz”, indica a Ordem dos Advogados.

Conforme tem sido defendido pelo líder da Renamo, Afosno Dhlakama, o projecto deve ser aprovado na presente sessão da Assembleia da República pelo que os causídicos questionam se 45 dias são suficientes para se realizar um debate político nacional e abrangente.

Aliás, mesmo a fórmula que habitualmente é usada, de realização de três seminários regionais para compensar o défice participativo “podemos nos questionar se esse formato será suficiente para aprofundarmos um documento importante”.

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Adequação dos problemas

Será que os problemas que se pretende resolver foram posicionados ao nível mais adequado, nomeadamente uma maior autonomia, reforço da descentralização, repartição de recursos entre o Estado e o poder local? As grandes questões de qualquer reforma de descentralização devem ser posicionadas de forma adequada”, indica Eduardo Chiziane.

Assim sendo, o representante da Ordem dos Advogados sugere que se deve orientar a discussão a volta de alguns elementos que estão associados aos grandes temas da descentralização, a começar pelo tipo de descentralização que se pretende introduzir para se apurar se é para reforçar a autonomia administrativa ou se resvala numa maior autonomia política.

Em segundo lugar, Chiziane questiona o tipo de entidade autónoma que se pretende criar pois, é sabido que houve uma certa hesitação porque no começo falava-se em regiões autónomas e, mais tarde, em províncias autónomas.

Também se interroga sobre a atribuição de competências e sobre a necessidade de se salvaguardar os interesses nacionais, por via do Estado unitário, e os interesses locais através da entidade autónoma.

Porém, aqui levanta-se um problema porque esses interesses locais podem ficar diluídos porque passarão a ser prosseguidos por uma entidade que é uma autarquia local de base que estaria dentro de uma autarquia local supramunicipal que seria de nível intermédio”, sublinhou.

Em terceiro lugar existe a questão do modelo de transferência de competências do Estado que não está clara se será gradual ou integral. A Ordem dos Advogados não entende também qual é o modelo institucional, o tipo de órgãos que está para ser introduzido, se o modelo institucional é ou não compatível com a nossa Constituição, qual é o tipo de tutela que se pretende adoptar, modelos de finanças locais que se pretendem introduzir, competências em matérias tributárias ou de transferências de recursos do Estado para os municípios, entre outros.

Parece que a proposta assenta mais na ideia do reforço dos poderes tributários da autarquia local, no caso vertente da autarquia provincial e esse aspecto merece a nossa consideração e discussão. Por outro lado, a proposta da Renamo parece não mostrar muito facínio por modelos ocidentais, pois sustentar-se na pretensão de se inventar instituições novas e únicas e, se admitirmos que essa será a solução, será preciso mais tempo para uma análise de um projecto deste tipo”.

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Economia institucional

A Ordem dos Advogados diz que é preciso verificar se a proposta da Renamo faz ou não o esquecimento do princípio da economicidade institucional pois, sabemos que é importante racionalizar recursos e evitar criar instituições novas.

Quando lemos o projecto encontramos várias instituições novas que vão surgir, nomeadamente assembleias de provinciais, presidentes dos conselhos provinciais, delegações autárquicas provinciais, conselheiros provinciais, conselho económico e social provincial, representante da administração central e dos serviços na autarquia provincial. O objectivo da análise não é julgar a pertinência dessas novas instituições, mas questionar se os aspectos de método ligados à sua criação foram ponderados”, dizem.

Os causídicos entendem que, regra geral, a proliferação e duplicação de instituições não é uma boa política. Dizem que isso afecta a transparência e obscurece a visão do cidadão na sua tentativa de entender como está organizado o Aparelho de Estado.

Para evitar esses efeitos perniciosos, apontam que o melhor método é reflectir sobre o impacto dessas novas instituições, nomeadamente analisar as vantagens esperadas, o impacto em termos de recursos humanos e as tendências financeiras que essas novas instituições podem representar.

Olhando para as funções das delegações autárquicas provinciais, conselheiros provinciais, conselho económico e social provincial, entre outros, devemos nos questionar sobre as vantagens esperadas com a sua institucionalização, o peso que elas terão sobre o orçamento autárquico e as necessidades adicionais em pessoal”, dizem.

Por outro lado, os advogados dizem que se podem levantar questões sobre a a constitucionalidade da criação do conselho provincial pois, o artigo 275 da Constituição número 1 apenas refere que as autarquias locais devem apenas dispor de órgão deliberativo e um órgão executivo que normalmente é o presidente da autarquia.

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Fundamentos para

a criação de autarquias

Será que as questões fundamentais para a criação das autarquias supranacionais foram debatidas ou consagradas nesta lei uma vez que as autarquias provinciais são supramunicipais que visam a prossecução daqueles interesses próprios das respectivas populações, que a lei considera que serão melhor geridos em áreas intermédias entre o escalão nacional e o escalão municipal?”

Para a Ordem dos Advogados, a questão que a sociedade deve se colocar ao lidar com esta matéria é “quais são os interesses públicos cujo nível optimo de decisão se situaria neste escalão intermédio porque há interesses públicos que são tratados ao nível das autarquias de base que já existem, há interesses que são tratados pelo Estado e outros que são continuados ao nível da administração local também do Estado”.

De uma forma geral, Eduardo Chiziane afirma que “quando olhamos para este projecto notamos que ele foi um pouco decalcado segundo a estrutura da Lei dos Órgãos Locais, esquecendo-se a diferenciação de âmbito territorial dos dois documentos”.

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Depois de aprovar, o que fazer?

Será que a fase posterior à aprovação do projecto foi pensada? Porque não basta aprovar esta lei. É preciso pensar naquilo a que alguns autores chamam de fase prospectiva, porque o trabalho do legislador não termina com a aprovação e publicação da lei”, disse Chiziane.

Para sair deste problema, a Ordem dos Advogados diz que é preciso fazer a adaptação do quadro legal das autarquias locais, que representaria um prolongamento inevitável e necessário do presente processo, e tal implicará, em termos normativos, a reformulação do pacote autárquico.

A última mexida de vulto que o pacote autárquico teve foi em 2007 e, porque uma nova mexida poderá ter implicações, o legislador deverá continuar a trabalhar para definir com detalhe o estatuto dos eleitos locais de nível provincial autárquico.

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Conformidade com a Constituição

Aqui é preciso saber se a forma de preparação este projecto respeita a questão do Estado unitário do país e há elementos suficientes para se afirmar que esta lei implicará alterações substanciais das normas da Constituição em matérias de princípios fundamentais, organização territorial do Estado, organização administrativa, reestruturação do poder local, entre outros” dizem os juristas nacionais.

Por outro lado, e à luz da Lei das Autarquias Provinciais os distritos, postos administrativos, localidades e povoações constituem unidades orgânicas da respectiva autarquia provincial e este projecto da Renamo altera profundamente o sistema administrativo actual que implicará uma eventual revisão da Constituição.

“Em matéria financeira, a consignação de 50 por cento das receitas da actividade mineira nas províncias com esse recurso também é um aspecto que temos que questionar se é conforme a nossa ordem constitucional porque representa um reforço do poder tributário autárquico e pode estar em conflito com o artigo da Constituição que trata dessa matéria”, concluem.

Jorge Rungo

jrungo@gmail.com

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