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O sonho virou pesadelo

Por admin

O Comando da Polícia da República de Moçambique, em Gaza, decidiu recentemente devolver as armas que se encontravam em poder dos fiscais do Parque Nacional do Limpopo (PNL) como 

forma de garantir a protecção total das espécies de flora e fauna bravia que ainda sobraram depois de cerca de um ano de intensa caça furtiva. Porém, a situação no terreno revela-se devastadora, dado que parte dos motivos que levaram à recolha das armas em finais de 2011 estão por resolver e há muitas armas em poder dos caçadores furtivos. Por outro lado, o reassentamento das famílias ali residentes continua um “bico-de-obra”, as relações de cooperação com o Kruger Park permanecem azedas, a fauna bravia atractiva anda sumida, enfim. O sonho de construir o Parque Transfronteiriço do Grande Limpopo virou um pesadelo.

 

Durante cerca de uma semana, a nossa equipa de Reportagem percorreu o distrito de Massingir, em Gaza, e teve a oportunidade de dialogar com dezenas de cidadãos, uns ligados à gestão do PNL e outros que só vêem as coisas a acontecer, mas todos com algo para contar sobre o que por ali se passa desde os finais de 2011, quando a porta para a caça furtiva ficou escancarada.

Escavámos a génese da situação e apurámos que em finais de Dezembro daquele ano, sem aviso-prévio, a administração desta área de conservação pagou os salários a todos os 174 trabalhadores, mas sem incluir o tão esperado décimo terceiro (salário), o que deixou a massa laborar estupefacta “porque sempre recebemos o salário e o décimo terceiro num pacote único”, revelaram vários guardas florestais por nós contactados.

Como era de esperar, houve murmúrios, mas, uma nota afixada algures no PNL indicava que o décimo terceiro seria pago durante o mês de Janeiro de 2012. Entretanto, conta-se que em Janeiro, sem motivo aparente, a mesma administração pagou o décimo terceiro aos fiscais florestais e faunísticos e não incluiu os restantes funcionários administrativos e de apoio.

Para agravar, os fiscais rebuscaram a velha conversa que vinham mantendo com a administração do PNL, segundo a qual passados cerca de 10 anos após o estabelecimento deste reservatório de fauna e flora, já se impunha uma harmonização salarial em relação aos demais funcionários do Estado.

Outro detalhe que veio engrossar a lista de reivindicações foi o subsídio de risco que até então era de cinco por cento, quando já se sabia que os fiscais afectos a outros parques e reservas nacionais ganhavam 20 por cento, pelo que faltam 15 por cento daquele subsídio.

Para a surpresa geral, a administração do parque terá anunciado que estava pronta a repor a legalidade, pelo menos no que tangia ao subsídio de risco. Porém, quando os números foram anunciados, os fiscais fizeram contas e perceberam que o reajuste era mais teatral do que real.

Cortaram o salário-base e deram-nos os 20 por cento. Quando fizemos as contas vimos que não havia mexida nenhuma. O salário era o mesmo de sempre, só separaram uma parte e deram o nome de 20 por cento”, contaram os fiscais com que estabelecemos contacto em diferentes lugares do vasto PNL.

 

Porta escancarada

 

Com as coisas colocadas desta maneira, os murmúrios se transformaram em gritaria, houve algazarra de toda a espécie e o reboliço atingiu proporções que escaparam ao controlo da administração. O diálogo foi literalmente “jogado ao lixo” e os punhos foram cerrados. “Queremos o nosso dinheiro”. Este passou a ser o lema da contenda.   

Porque o debate tinha descido de nível para puro “bate-boca”, vários fiscais posicionaram-se na entrada sul do PNL, junto à barragem de Massingir e ameaçaram impedir a entrada e saída de turistas, ao mesmo tempo que exigiam que todas as viaturas administrativas fossem estacionadas até ao esclarecimento do caso.    

Temendo o pior, a administração do PNL terá estabelecido contactos com a administração do distrito, Ministério do Turismo e Governo da Província de Gaza que, num ápice, enviaram um contingente policial que amainou os ânimos e recolheu todas as 22 armas que se encontravam em poder dos fiscais.

Dada a tensão que se vivia, os coordenadores das áreas mais sensíveis da gestão do parque foram afastados. Trata-se do Major na Reserva, Zínio Macamero, que coordenava o Programa Protecção e Segurança, Henriques Massango, coordenador do Programa de Reassentamento, Germano Maússe Dimande, do Programa de Ligação com as Comunidades. Júlio Vidigal, dos Recursos Humanos, entre outros. Aliás, a nova administração anda agora às voltas a procura da “pessoa certa” para lidar com o programa de protecção e segurança.

Porque “a notícia não dorme no caminho”, conforme reza o adágio, as mil e 200 famílias que vivem no interior desta área de conservação receberam a “prenda de Natal” que sempre desejaram. “Os fiscais estão sem comandante, desarmados e com três postos fixos de fiscalização desactivados”.

A partir de então, os tiros passaram a ser o “pão de cada dia” e a fauna começou a escapulir dos lugares onde era comum encontrá-la. As iniciativas de fiscalização passaram a ser veementemente rechaçada pelos jovens que tinham encontrado a chave do seu sucesso económico.

O que vais fazer? Tens arma por acaso? Meta-te na tua vida e deixe-nos à vontade”, diziam os caçadores perante fiscais cabisbaixos e humilhados por adolescentes e jovens que passaram a demonstrar que são portadores de armas e de bastante dinheiro resultante da caça e venda clandestina de troféus.

Os nomes das aldeias mais activas na caça furtiva são pronunciados de cor e salteado por todos os residentes de Massingir. “Mavodze, Machamba e Chimangue”. O próprio administrador do distrito, Artur Macamo, também reconhece. Algumas fontes arriscam que os mais bem-sucedidos são conhecidos por “Navara”, “Nhimpine” e “Machelane”, cujos sinais exteriores de riqueza são de deixar qualquer mortal de queixo caído.

 

Sonho trilateral desfeito

 

Sem fiscalização activa, o PNL foi transformado num curral onde quem quer vai literalmente buscar uns cornos de rinoceronte ou marfim para colocar no mercado e ganhar uma pipa de massa por cada quilograma da ponta de rinoceronte, e não se sabe quantas centenas de milhares de meticais por cada pé de marfim.

O novo administrador do “Limpopo”, António Abacar, que assumiu aquela posição há escassos três meses, disse à nossa Reportagem que “desde que aqui estou não oiço falar da presença de rinocerontes e já começa a haver uma crescente perseguição ao elefante, o que denuncia que provavelmente haja algum mercado para o marfim”.

António Abacar e seus pares da actual administração encontram dificuldades para quantificar as perdas que o país registou com a “liberalização” da caça furtiva. Aliás, preferem não se envolver nesse tipo de discussão. Mas, está claro que as perdas são estratosféricas.

Para Alberto Valói, Presidente do Comité de Comunidades do PNL, o actual estágio pode conduzir à redução das percentagens que o parque deve canalizar para as comunidades (20 por cento das receitas de entrada de turistas). “Os turistas não querem circular por territórios onde há problemas. Repare que agora se tornou muito difícil ver animais devido à intensa caça furtiva”, disse.

António Abacar assume que há constrangimentos, mas afirma que o decréscimo do número de turistas nestes primeiros meses do ano deriva das cheias que cortaram um dos acessos e também ao facto de o Posto Fronteiriço de Pafúri estar temporariamente encerrado. “Vamos realizar um senso animal aéreo este ano para apurarmos quantos animais ainda temos”, disse.

Mais do que abater animais, os caçadores furtivos espezinham todo o investimento feito a partir de 2001 por via da translocação de mais de uma dezena de rinocerontes, famílias inteiras de elefantes, zebras, entre outros animais a partir do Kruger Park, na África do Sul. Pensava-se, na época, que desta forma, Moçambique poderia começar a dinamizar o seu sector de turismo cinegético e posicionar-se no mundo como um destino turístico fantástico, dado que poderia conciliar o cinegético como o turismo de sol e praia.

Procuramos obter os valores despendidos desde 2001 em cada operação de identificação, neutralização, embarque, transporte, desembarque e ambientação dos animais do Kruger Park para o PNL e ninguém quis revelar. Todas as nossas fontes limitaram-se a dizer que “o investimento foi feito pelos sul-africanos, pelo que só eles sabem quanto gastaram”. Mas, num aspecto há consenso. “Foi muito dinheiro”.

É que este tipo de operações são feitas por gente altamente treinada, incluindo os transportadores, veterinários, anestesistas e construtores dos locais de ambientação, ou seja, dos santuários, porque os animais identificados para a translocação não podem ser feridos ou stressados durante o processo, sob pena de ocorrer uma tragédia para quem está por perto.

A par do governo sul-africano várias outras organizações internacionais apostaram no PNL e ali depositaram milhões de dólares, nomeadamente, o Banco Alemão conhecido por KfW, a organização Peace Parks Foundation (PPF), o próprio governo moçambicano, Banco Mundial, entre outros, porque era preciso começar a construir o parque a partir das “fundações”.

Como se sabe, até ao ano 2000 esta área era conhecida como Coutada 16, o mesmo que área destinada à conservação e caça desportiva. Por causa disso, as vias de acesso e demais infra-estruturas eram feitas para gente com espírito aventureiro.

Porque se acreditava que o PNL poderia crescer saudável, os governos de Moçambique, África do Sul e Zimbabwe até definiram que as linhas de fronteira que separam os três países seriam removidas para deixar a natureza fluir para onde bem entendesse, formando-se assim o Parque Transfronteiriço do Grande Limpopo.

 

Purificar fileiras

para devolver armas

 

É na sequência desta situação que o governo da província de Gaza, através do Comando Provincial da Polícia da República de Moçambique (PRM), entendeu que o melhor a fazer é devolver as armas aos fiscais. Mas, para não entregar as armas de bandeja, impôs que se purificasse as fileiras dos fiscais.

É que, ao longo de todo este tempo se constatou que alguns fiscais, agentes da Polícia e militares da Guarda Fronteira, que realizaram acções conjuntas de fiscalização no interior do parque, regressaram com sinais de estarem enredados com os caçadores furtivos.

Aliás, e conforme revelamos na nossa última edição, pelo menos seis comandantes, de nível distrital e provincial, e vários agentes da PRM e da Guarda Fronteira que tinham sido destacados para o PNL foram afastados de Massingir e da província de Gaza.

Da parte do governo sul-africano existe o sentimento de que Moçambique tem um campo aberto para a circulação de caçadores furtivos, quando o nosso problema reside nos meios financeiros e equipamento para fazer face à situação. Apesar disso, temos que começar a melhorar para criarmos alguma motivação com vista a obtenção de resultados positivos no domínio da fiscalização”, entende António Abacar.

Entre outros itens que visam a tal obtenção de resultados positivos na fiscalização, Abacar aponta a devolução das armas aos fiscais que é uma matéria que, segundo revelou, está a ser trabalhada. “O Comando Provincial da PRM está disposto a devolver as armas para se garantir que haja o mínimo de equipamento para os fiscais”, disse.

Porque a lista de fiscais supostamente mancomunados com a caça furtiva é bem conhecida, a nova administração do PNL entendeu mudar de estratégia. Fonte ligada ao processo aponta que foi efectuado um cadastro de fiscais, emitiu-se a Licença de Importação e a qualquer instante as armas poderão voltar a ser distribuídas.

Pensamos que os caçadores furtivos conhecem as nossas fragilidades, pelo que, com o apoio da Peace Parks Foundation, importámos 30 armas e a Polícia está a facilitar o processo. Passaremos a ter duas bases de vigilância, sendo uma no norte, mais concretamente em Mapai, e outra no sul, na sede do PNL que se localiza em Massingir. Estas bases vão contar com infra-estruturas básicas de acomodação, comunicação e logística diversa”, sublinhou.

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