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Miséria com “M” grande

Por admin

No velho e degradadíssimo Grande Hotel, localizado em pleno bairro da Ponta Gêa, um dos mais nobres da cidade da Beira, província de Sofala, vivem três mil e 700 pessoas, congregadas em cerca de 700 famílias, que disputam tudo o que é espaço que possa servir de casa, incluindo a antiga cozinha, lavandaria e corredores.

 Com fissuras por todos os cantos, lixo e odor nauseabundo a cada degrau, há quem cai lá de cima e morra.

A presença de forasteiros não é bem-vinda no Grande Hotel. Os residentes se mostram fartos da presença de jornalistas. Não vão com a cara de quem por ali deambula de câmara fotográfica ou de filmar a captar imagens sem “autorização”. Só de olhar para os anfitriões já se sente que algo vai dar para o torto.

Aliás, eles mesmos contam que o actual edil, ensaiou uma visita ao local, mas, teve que se fazer acompanhar por alguns moradores, porque o sentimento geral é de abandono e desprezo que gera manifestações imprevisíveis, como, aliás, nós mesmos experimentámos em quase todos os andares, corredores e átrios.

Depois de uma tímida aproximação de reconhecimento, num fim de tarde, entendemos fazer uma incursão por aquele edifício, mas, antes, oferecemos a nossa cabeça para um corte de cabelo que nos permitiria trocar uns dedos de conversa com um barbeiro local e, por essa via, termos as balizas de como trafegar por ali.

Felizmente, o barbeiro “mordeu a isca” e até “bateu com a língua nos dentes”, fornecendo-nos o nome de um dos residentes mais influentes, o João “Macondinho”, que vive ali há cerca de 20 anos e que responde por um dos blocos de quartos. Ele se intitula chefe da Unidade e diz que no seu Curriculum Vitae (CV) consta que foi chefe de 10 casas e de Quarteirão, pelo que não é um morador qualquer.  

Passados cinco minutos, encontramos João “Macondinho” numa das salas de cinema local. Na verdade, trata-se de casebres, onde se projectam filmes de pancadaria gratuita, a partir de televisores, aparelhos de DVD, amplificadores e colunas, tudo usado até à exaustão.

Porque o chefe da Unidade parecia incrédulo em relação à nossa identidade, tivemos que apresentar-lhe os Cartões de Trabalho que revirou, revirou, olhou para os nossos rostos, voltou a rever e, depois anuiu. “Está bom. Podemos entrar e conversar”. Dito isto, libertamos um “ufff” de alívio, porque alguns jovens já começavam a olhar-nos com desdém.

Caminhamos devagar para o interior do edifício e o mau cheiro se adensava a cada passo como se fosse a “comissão de recepção” a nos desejar as boas vindas àquele hotel de horrores. Cheirava a tudo. Água suja, urina, fezes, comida podre, lixo comum, mofo, enfim. Tudo misturado. Se aquele cheiro fosse comprimido numa botija, dava uma potente arma química, com um grande raio de destruição, pensámos.

Tudo destruído

Consta que foi um cidadão português de nome Saúl Brandão, na época dirigente da Companhia de Moçambique (hoje Grupo Entreposto), quem mandou construir aquele hotel. Relatos históricos indicam que a ideia era captar turistas que passavam pela cidade da Beira com destino ao Parque Nacional da Gorongosa, que era uma pérola de gestão de fauna e flora no país, no continente e no mundo.

Só que, a ideia colidiu com outros interesses, sobretudo do regime da antiga Rodésia (hoje Zimbabwe), que tinha um hotel com casino nas imediações das Quedas Vitória (Vitoria Falls), o que fez com que o projecto de se estabelecer o casino na cidade da Beira fosse chumbado pelo governo colonial em Portugal. Aliás, a par do chumbo, foi autorizada a construção do Hotel Embaixador da Beira que era um concorrente mais barato na construção, no capricho e nas diárias.

Com tudo a bater para o torto, o Grande Hotel não conseguiu fugir do destino traçado no seu “ADN”. Fechou várias vezes até encerrar em definitivo logo depois da festa de passagem do ano de 1980 para 1981. A partir dali, o prédio entrou num ciclo contrário ao de construção e só não desmorona, porque parece ter sido erguido para resistir à pobreza e miséria.

Subimos os primeiros degraus e olhámos em redor. Todas as paredes tinham as corres desbotadas, o tecto e os pilares denunciam a eminência do desabamento, pois alguns estão mais do que carcomidos. O reboco caiu há muito tempo, a tinta sumiu, os varões estão visíveis, enfim, o denominador comum era o cheiro, forte, daqueles que grudam na pele.

João “Macondinho” procurava fazer o papel de um excelente anfitrião e num esforço inútil de nos animar, contou por que lhe atribuíram a alcunha de “Macondinho”. “Casei com uma mulher maconde, de Mocímboa da Praia, em Cabo Delgado. É só por isso. Meu nome é João Gonçalves”.

Esboçamos um sorriso em jeito de retribuição pela explicação e voltamos a lançar o olhar para aquelas paredes que dão muito bem para a produção de um filme de terror. Ali, o papel dos cenógrafos seria minimizado. Bastaria meter actores, câmaras, luzes e… acção!

João “Macondinho”, aliás, Gonçalves, convidou-nos a prosseguirmos pela escadaria que nos levaria ao primeiro piso ao mesmo tempo que se queixava da falta de água, luz, saneamento, habitação, em suma, de viver como “sem tecto”, com outras centenas de famílias em condições sub-humanas.

Os degraus das escadas tinham um denominador comum. O parquet que os compunha foi arrancado provavelmente para servir de lenha, pelo que cada passo impunha um olhar atento ao chão. De corrimão nem se fala. A única pista que indiciava a sua passagem pelo local, são os buracos cravados no chão.

Quarto “tipo 3”

Alcançamos o primeiro piso e o nosso guia conduziu-nos por um dos corredores para mostrar os quartos transformados em flats. Em cada quarto vivem famílias inteiras e o que separa os pais dos filhos, nas noites, são lençóis ou capulanas que fazem o papel de paredes “intransponíveis”, para que os casais possam consumar os seus deveres conjugais, numa promiscuidade indescritível.

João Gonçalves encolhe os ombros e diz que “cada casal improvisa a sua vida nocturna, porque as condições que existem são estas. Houve quem conseguiu ficar com dois quartos e tem o privilégio de colocar os filhos de um lado e poder ter alguma privacidade no quarto do lado, mas, a maior parte vive assim mesmo”.

Para mudar de assunto, “Macondinho” pára e aponta para a porta com o número 122. “Os quartos estão todos numerados. Quando cheguei há 20 anos ainda havia sinais de que isto foi um hotel majestoso, mas, começou a faltar lenha e carvão e os residentes usaram o parquet. Faltou dinheiro e os móveis foram vendidos, e por aí em diante”.

Continuamos a caminhar e o colega de imagem, o Jerónimo Muianga parecia incansável nos cliques da sua câmara fotográfica até que foi “invadir” um corredor onde uma mulher ralava coco, sob o olhar atento de duas crianças. Quando aquela dona de casa terminou o processo, a criança mais nova sentou-se no ralador e pôs-se a imitá-la.

Jerónimo, animado em retractar tudo e todos só despertou para a realidade quando a senhora se rebelou. “O que se passa? Estás a filmar-nos para quê? Quem és tu? Saia já daqui…” barafustou continuamente a ponto de chamar a atenção de outros vizinhos que começaram a aparecer de todas as portas enfileiradas naquele corredor imundo e malcheiroso.

Perante aquele quadro, percebemos que “o bicho ia pegar” e recuamos para deixar João “Macondinho” fazer valer a sua influência e poder dissuasivo. Em escassos segundos, percebemos que seria difícil convencer aquela mulher enfurecida e que tudo fazia para agitar os restantes vizinhos. De mansinho, recuámos e embrenhamo-nos pela escadaria mais próxima que nos levou ao segundo andar onde o tumulto era menos audível.

Nascidos no Grande Hotel

Enquanto percorríamos aquele edifício e espreitávamos nesta e naquela porta ou janela improvisada, cruzamos com mulheres que vendiam em bancas montadas nos corredores. Crianças continuavam a correr para aqui e para ali atiradas na total inocência que as caracteriza. Foi neste clima que nos deparámos com um grupo de jovens naturais do “Grande Hotel”.

Como crianças grandes, estes jovens puseram-se a fazer poses diversas. Disseram que se chamavam Neco Adolfo José, Fernando Arlindo Uaferro e Délcio Gomes Quembo. Os outros só queriam que lhes fotografássemos para depois lhes passarmos as imagens. Anuímos com toda a certeza de que a nossa verdade tinha uma elevada dose de mentira.

Délcio Gomes quis saber quem éramos e, mal dissemos que éramos jornalistas, tratou de descrever tudo o que tínhamos visto e ouvido de João “Macondinho”, pessoa por quem revelou nutrir um afecto especial, tendo em conta as coisas boas e más que todos experimentam no seu quotidiano comum.

Nasci aqui há 25 anos e a “life” não é fácil. Vi este hotel a se degradar. Não temos onde viver. No começo, tínhamos energia eléctrica e água, mas, com a destruição a que o edifício esteve sujeito, só nos contentamos com o facto de não pagarmos renda de casa. O resto é sobreviver, meu irmão”, relatou.

Sempre cercado pelos amigos (vizinhos), Délcio disse que, no passado, os residentes faziam jornadas de limpeza e, quem se recusasse a participar, apanhava uns sopapos, mas, com o tempo, todos desistiram e o lixo se tornou mais um residente com direito a ocupar os espaços livres do edifício.

Sempre acompanhados pelo odor nauseabundo, escalámos o terceiro piso e fomos saudar o secretário do Quarteirão 7, que leva o curioso nome de Carlos Carlos None. “No dia em que este edifício vai ruir, será declarado Luto Nacional, porque mais de mil pessoas vão morrer de uma só vez, mas, agora que estamos vivos não nos ligam. Que nos dêem água, é só isso que pedimos. Água para beber”, disse à “queima-roupa”.

Carlos Carlos relatou que os residentes do Grande Hotel já receberam promessas de todos os gestores municipais do passado e do presente, mas nem água vai, nem água vem. “Temos cartas e mais cartas em nosso poder e já não nos respondem. Eu não peço muito. Só água, porque somos obrigados a acordar às quatro da manhã para procurar água como se estivéssemos nos confins do mundo”.

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