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Desnutridos com comida à farta

Por admin

Texto de Jorge Rungo e Fotos de Jorge Rungo e Jerónimo Muianga
Cerca de um milhão de habitantes da província de Tete sofre de desnutrição crónica, que se caracteriza pelo baixo peso para a idade, quando a província produz e quase oferece comida de bandeja às populações dos países vizinhos. O quadro resulta, de entre outros, dos hábitos alimentares e falta e vias de acesso para as zonas de maior produção.

Três agências das Nações Unidas, nomeadamente o Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrário (FIDA), Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO) e o Programa Mundial de Alimentos (PMA) indicam que a desnutrição crónica afecta a cerca de um milhão de pessoas em Tete (cerca 45 por cento) de um total de dois milhões e quinhentos habitantes que a província possui.

As autoridades locais, ligadas aos sectores da Saúde e Agricultura confirmam o facto, e até acrescentam cinco por cento às estimativas das Nações Unidas. Descrevem que o problema não é a falta de disponibilidade de alimentos, porque comida há em abundância. Aliás, o governo daquela província afirma a pés juntos que “a situação de segurança alimentar é boa”.

Porém, o Secretariado Técnico para a Segurança Alimentar e Nutricional (SETSAN) indica que “a taxa de desnutrição crónica (baixo peso para a idade) é de 50,7 por cento em crianças menores de cinco anos. A desnutrição aguda (baixo peso para a altura) é de oito por cento

Neste quesito, Tete não está sozinha. As províncias de Manica, Zambézia, Niassa, Nampula e Cabo Delgado, onde igualmente se produz muito, não há ameaças de insegurança alimentar. Entretanto, as taxas de desnutrição crónica são elevadas pois, quatro em cada dez crianças sofrem deste mal.

O que coloca a população de Tete nesta triste posição é o facto de esta ter adoptado uma alimentação sem nutrientes essenciais, o que leva a que crianças, mulheres grávidas, idosos e pessoas com doenças crónicas tenham perda de peso, falta de força e energia para tarefas rotineiras, e anemia com frequência.

Outras características da desnutrição crónica apontadas pelas autoridades sanitárias são a incapacidade de concentração para estudos ou trabalho, irritabilidade, crescimento atrofiado, inchaço na barriga, na face e nas pernas, assim como a mudança da textura da pele e cabelos amarelados.

Segundo o director provincial de Agricultura de Tete, Américo Manuel, o problema tem o seu fulcro nos hábitos alimentares e na debilidade das vias de acesso que ligam as zonas mais produtivas, nomeadamente os distritos do norte da província, aos lugares onde a produção de alimentos agrícolas é fraquinha, o equivalente aos distritos do sul.

COMIDA PARA DAR E VENDER

Mas, a atipicidade de Tete não reside somente nisso. Onde a agricultura dá pouco a natureza ofereceu condições para a produção pecuária de fazer inveja. Tem carne e leite quanto baste e, coincidentemente é de carne, leite e pegv–ixe que as vítimas de desnutrição crónica mais precisam.

De peixe, em condições normais, ninguém se devia queixar naquela província porque o rio Zambeze e seus afluentes esbanjam esta importante fonte de proteína animal que chega a ser exportada para a República Democrática do Congo, parte de Angola, Burundi, Zâmbia, Zimbabwe e Malawi. Mas, a população local come peixe seco.

Conforme apurámos, um dos locais onde a produção agrícola é inequívoca é o distrito de Tsangano, mas a via que serviria para o escoamento da produção para o resto da província apresenta 44 quilómetros de estrada (do desvio de Mphulo até Tsangano) que só dão para aventureiros.

Porque se trata de um assunto que o governo malawiano conhece muito bem, este aproveitou as fraquezas existentes do lado de cá e construiu uma estrada asfaltada que vai dar à fronteira. Aliás, esta realidade pode ser vista ao longo dos pontos de acesso do Malawi, Zâmbia e Zimbabwe.

Sem vias de acesso para vender os produtos alimentares para o lado de cá, os camponeses moçambicanos entregam o milho, batata reno, cebola, tomate, ou melhor, vegetais, leguminosas, cereais, entre outros “a preço de banana”.

O que soa a contrassenso em Tete é que os distritos de Marávia, Angónia, Macanga e Tsangano, localizados no norte da província, também tidas como regiões de alta altitude, produzem milho, feijão, batata reno e doce, hortícolas, soja, paprica, trigo, tabaco e fritas diversas, incluindo uvas.

No resto da província faz-se mapira, mexoeira, algodão, arroz, algum tabaco, amendoim e feijão, mas onde a produção agrícola é expressiva é no norte. Conforme referimos antes, apesar da parte sul não ser famosa no capítulo agrícola, é aqui onde reside o potencial pecuário que contribui com 30 por cento de efectivos bovinos e 18 por cento da produção pecuária nacional.

Só o distrito de Changara, que fica no sul, reúne cerca de 42 mil cabeças de bovinos, das mais de 200 mil que existem em 15 distritos daquela província, seguido do distrito de Moatize que possui mais de 30 mil bovinos. Entretanto, não existem hábitos de consumo de leite ou mesmo de carne bovina.

Sobre a produção de caprinos cada um faz as estimativas que entende, mas a realidade não deixa ninguém enganado. Há cabritos por todos os cantos, o que em parte terá concorrido para o estabelecimento de uma empresa do ramo pecuário, na vila de Moatize, que, inclusive estabeleceu a marca comercial “Tetito”, que é uma mescla de Tete e Cabrito.

Cinquenta milhões para combate à desnutrição

Conforme apurámos, na campanha agrícola 2013/2014 a província de Tete teve a melhor produção nacional, o que mesmo assim, não provocou alterações de vulto no gráfico de desnutrição crónica porque, em primeiro lugar, persistem hábitos alimentares que não ajudam.

Américo Manuel aponta que a base da alimentação da maior parte da população local é o milho que é triturado para a remoção do farelo e depois colocado de molho durante dois dias. De seguida, o milho é posto a secar ao sol e levado a moer.

A farinha daí resultante já não possui a necessária informação nutricional porque esta ficou diluída na água naqueles dois dias. Fica apenas o sabor que até é muito agradável, mas o que conta nos alimentos não é apenas o sabor, disse.

Em termos comparativos, Américo Manuel aponta que a província de Inhambane apresenta um índice de desnutrição crónica de 36 por cento, quando é menos produtivo, em termos agrícolas, quando comparado com Tete.

Por outro lado, é uma província com uma maior incidência de insegurança alimentar. O que explica esta taxa é o facto da população de Inhambane ter hábitos alimentares com nutrientes diversificados”, sublinhou.

Para corrigir este e tantos outros hábitos alimentares, o governo de Tete buscou apoios junto da Agência Dinamarquesa para a Cooperação (DANIDA) que concedeu cerca de 50 milhões de meticais para serem aplicados ao longo deste ano em diferentes frentes.

Porque o assunto merece a atenção de todos, foi constituída uma comissão multissectorial, aquilo a que os ingleses chamam de “task force”, e os brasileiros dizem ser “força tarefa” que envolve os sectores da Educação, Saúde e Obras Públicas.

Este colectivo de quadros do governo procura caminhos para reverter a desnutrição crónica através de actos de sensibilização junto de adolescentes e jovens para a prevenção da gravidez precoce, criação de hortas escolares, incentivos para as boas práticas agrícolas e apro-processamento.

Precisamos reverter rapidamente este quadro porque Tete produz o suficiente para a sua população, mas tem problemas de desnutrição. Isso não faz o menor sentido. Para o alcance deste objectivo precisamos vencer o desafio do agro-processamento do milho, batata e da carne que produzimos em abundância”, concluiu Américo Manuel.

Cabrito de Tete

é marca comercial

“Tetito” é o nome que ostenta a carne do cabrito de Tete que está a ser processada e vendida por uma empresa de capitais portugueses estabelecida recentemente na sede do distrito de Moatize, cujo objectivo é abastecer o mercado nacional nos segmentos de hotelaria de luxo, mercados de primeira e também o mercado informal.

Dados fornecidos pelo director provincial de Agricultura, Américo Manuel, o estabelecimento daquela marca comercial, com o incentivo do governo provincial, tem por objectivo animar o investimento na área do processamento de carne caprina e bovina, bem como de outros produtos que constituem “bandeiras” da província do sector pecuário e agrário, como é o caso da batata reno, milho e do peixe-pende.

Com um investimento estimado em cerca de 700 mil euros, a Canel Grupo, de capitais portugueses, estabeleceu uma cadeia integrada que vai desde a compra dos cabritos e bovinos, abate, processamento, transporte e distribuição, o que já constitui um orgulho para a província, segundo Américo Manuel.

Manuel Nunes, gestor da iniciativa, o projecto “Tetito” surgiu no auge do “boom” dos investimentos do sector do carvão, altura em que o mundo empresarial tinha os olhos postos na província de Tete. “Porém, a realidade que encontrámos mudou e hoje trabalhamos orientados para a verdadeira realidade da província”, disse.

Para o estabelecimento deste projecto, Manuel Nunes refere que foi desenvolvida uma imagem de marca e o produto é embalado em sacos personalizados, tendo em vista igualar o processamento do cabrito ao da carne bovina. “Colocamos à disposição dos clientes todas partes que se possam imaginar do cabrito em separado”, disse.

Como forma de popularizar e, quiçá, internacionalizar a marca, Nunes afirma que estão em curso os preparativos da empresa para participar na edição que se avizinha da Feira Internacional de Maputo (FACIM) que acredita que é uma importante plataforma de negócios.

No que se refere aos planos para o futuro, o nosso interlocutor apontou que aquela empresa pretende materializar um plano de expansão que contempla o estabelecimento de uma unidade de processamento e venda na cidade de Pemba, província de Cabo Delgado, tendo como base a província de Tete porque, “esta tem imenso potencial pecuário”.

Jorge Rungo

 

jrungo@gmail.com

Fotos de Jorge Rungo e Jerónimo Muianga

 

 

 

 

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