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Violência doméstica: O pão nosso de cada dia

Por admin

O Jornal domingo publica nesta edição nas suas páginas centrais a estória de Maria Teresa Carlos, uma mulher camponesa vitimada por uma violência doméstica extrema. Perdeu um pé e uma mão, em virtude de o seu marido os ter despedaçado em frente dos filhos que apavorados não sabiam o que fazer para parar a loucura do pai.

Como o leitor já se deve ter apercebido, lendo a reportagem, alguns episódios desta estória assemelham-se a cenas de filmes de terror, mas são factos da vida real contados pela própria vítima e que engrossam a longa lista de casos de violência doméstica nas famílias moçambicanas.

Esta mulher foi duramente espancada e mutilada com golpes de catana, que resultaram na perda dos membros superior direito e inferior esquerdo, mas, como se sabe, não é a única neste nosso vasto território. Há outras estórias, em que atitudes insanas de homens, geralmente, homens, levam até a casos de homicídio, numa violação flagrante, da nossa Constituição e da Lei 10/2004, conhecida por Lei da Família, que nos seus artigos 1 e 4, afirma categoricamente que “a família é a célula base da sociedade, factor de socialização da pessoa humana” e que à família incumbe, em particular, “assegurar que não ocorram situações de descriminação, exploração, negligência, exercício abusivo de autoridade ou violência no seu seio”.

Dados oficiais do Instituto Nacional de Estatísticas (INE) apurados através de um inquérito nacional sobre a violência conjugal nas famílias moçambicanas revelam que a violência física ou sexual está cada vez a aumentar entre os casais, com destaque para as mulheres, apesar de uma tendência crescente entre os homens.

Segundo esses dados, 32% das mulheres, num universo de 14 mil famílias inquiridas, entre casais ou namorados, com idades entre 15 e 49 anos, dizem ter sofrido actos de violência física ou sexual por parte dos companheiros e apenas 12% dos homens admitiram ter sido vítimas das suas esposas.

O inquérito estudou o perfil das vítimas da violência conjugal e concluiu que, entre as mulheres, a média é igual independentemente do nível de instrução, idade ou estado civil.

O inquérito não avaliou os motivos do crescimento dos índices de violência entre os casais, contudo, há uma percepção comum, de que na maioria dos casos, as traições ou ciúmes, que por vezes terminam com morte de um dos parceiros, são a principal motivação.

No caso relatado hoje pelo domingo, a mutilação da vítima foi até premeditada e o caso chegou a ser julgado em tribunal e o carrasco condenado a cumprir uma pena de 20 anos de prisão e ao pagamento de uma indemnização à vítima. O jornal apurou que o homem não chegou a cumprir a pena nem sequer a indemnizar a vítima, estando o jornal a perseguir a estória para saber, o que terá acontecido.

A estória é trágica, como o são outras que acontecem por este país fora e que são liminarmente escondidas no seio da família, mas que merecem toda a nossa atenção e reflexão.

Fora estes casos trágicos, também é necessário realçar que há costumes, entre nós, que agridem a mulher, porque atingem directamente os seus direitos humanos: por exemplo, o costume da família do marido que, morto este, se apodera dos bens da sua companheira quando a união entre eles era apenas de facto; o costume do cunhado ter direito a relações sexuais com a mulher do seu defunto irmão; o costume da mulher ser obrigada a casar com um determinado parente; a excisão do clitóris, se bem que em zonas muito restritas.

Há também os casos de pancadaria e violação sexual. A violação sexual, dentro do casamento, ocorre com relativa frequência, porque não há condições para a mulher afirmar o seu querer, já que na maioria das vezes depende, para sobreviver ela e os filhos, do dinheiro do marido. A violência física e a crueldade mental são dados do nosso quotidiano.

OFórum Mulher vem-se desdobrando em iniciativas para encontrar caminho que ponha cobro a tais desmandos. Ainda recentemente, num debate televiso a cerca da paz no país, ouvimos a Dra. Graça Sambo, daquela organização da sociedade civil, a dizer (mais ou menos) que será muito difícil uma paz efectiva no país enquanto no seio das famílias continuar a haver muita violência. O que lhe podemos dizer é que nunca as mãos lhe doam na sua acção e cruzada contra a violência doméstica.

 

O Fórum Mulher esteve também na vanguarda, para que Assembleia da República aprovasse em 2009 a Lei sobre a Violência Doméstica contra a Mulher e Criança, que, entre outros aspectos, estipula o afastamento do agressor do lar, dando legitimidade de denúncia a qualquer pessoa, incluindo não familiares.

A Lei sobre a Violência Doméstica contra a Mulher e Criança obriga igualmente o cônjuge agressor à prestação de alimentos proporcionais à sua condição económica e às necessidades dos seus dependentes. O autor do crime de violência doméstica perde também sobre as suas vítimas o poder parental, tutela e curadoria.

 

Mas há ainda muito que fazer, sobretudo nas camadas mais jovens da população. O princípio dos princípios reside na educação, na formação, tendo o trabalho em igualdade de acesso e oportunidades, como a verdadeira rampa de lançamento. A tónica deve acentuar a educação e o trabalho, ou se quisermos, a educação em função do trabalho humano.

 

Há também a referir que as famílias precisam de combater estas cenas de violência, seja ela extrema ou não, e o sector feminino deve estar na vanguarda e não ser apanhada pelo chamado “complexo de Eva”, um complexo de culpa, assim traduzido: “se Eva não tivesse seduzido Adão, este não teria pecado”. Daqui a depreender-se que se deve, em consequência, actuar sobre a pobre da Eva, é conclusão certeira da premissa maior do silogismo.

 

O remédio, sublinhamos, vem da educação. Uma educação criativa e paciente. Educação que, no seu sentido etimológico, quer dizer, ajudar o homem a partir de dentro, levando a comportar-se por força de hábitos enraizados, mas enraizados no coração.

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