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Não basta ser médico, é preciso ser humano

Por admin

Noorjehay Magid, médica e responsável clínica do Programa Dream de combate ao HIV em Moçambique

Por detrás da bata branca de Noorjehay Magid está uma mulher de fé e com uma forte veia humanitária. Exerce sua profissão agarrada à ideia segundo a qual “não basta ser médico para tratar de um doente, é preciso ter sensibilidade humana”.

Com o reconhecimento, vieram dois prémios: A Mulher do Ano, em 2006 na Itália e o Klaus-Hemmerler na Alemanha no presente ano, pelo seu trabalho humanitário na área do HIV e Sida. Decidiu tornar-se médica aos dez anos de idade, realizando o desejo de seu avô, sua referência de vida.

Conte-nos a sua estória, afirma que o seu avô a influenciou na escolha da sua profissão?

Sim. Quando eu tinha 10 anos de idade, o meu avô ficou internado no actual Hospital Central de Maputo (HCM), depois de sofrer um Acidente Vascular Cerebral (AVC). Lá recebeu, de uma médica chamada Manuela Santos, um tratamento que o deixou bem impressionado, de tal maneira que numa das visitas que efectuamos ao seu leito hospitalar reuniu-nos e manifestou o desejo de ver um dos seus netos a formar-se em medicina e, par disso, queria que ajudasse os doentes necessitados. Entretanto, algo mais prendeu a atenção do meu avô e motivou admiração: o facto de ter sido atendido por uma mulher, ou seja, ter visto uma mulher nesta profissão.

O que causou a admiração?

É que na tradição indiana a mulher, a nossa, a partir de certa idade, a mulher deve constituir família. Era muito rígida. De qualquer forma, aquela constatação o fez perceber que afinal as mulheres podiam assumir outros papéis na sociedade.

Certamente, esses preceitos ameaçaram a sua formação…

Interferiram. Eu sou de uma família muito religiosa e conservadora. Tanto é que tenho o diploma da 4ª classe e daí só tive o meu diploma de médica. Na altura era assim, as mulheres muçulmanas tinham que estudar até à 4ª classe e depois paravam para casar. O meu destino também era esse mas com algum apoio familiar e a minha determinação e firmeza formei-me. E vejam que diferentemente de hoje, na altura em que estudei não havia muitas muçulmanas nas escolas.

Donde retirou tanta força para marchar contra corrente?

Da minha mãe. Ela lutou contra tudo e todos para que eu me formasse e me tornasse a pessoa que sou hoje.

PREMIAÇÃO

PELO TRABALHO HUMANITÁRIO

Ganhou dois prémios: A Mulher do Ano, em 2006 na Itália e o Klaus-Hemmerler na Alemanha, pelo seu trabalho humanitário na área do HIV e Sida. Esta é a prova de que o desejo do seu avô foi concretizado…

Sim. E eu não esperava. Ah, se ele estivesse em vida, sentiria muito orgulho. Mas permita que eu estenda o mérito aos meus colegas de trabalho e aos pacientes que, por seu turno, lutam pela vida.

Ainda existe tabu e estigma à volta da doença?

Primeiramente, deixa-me dizer que fui a primeira médica a trabalhar com a Comunidade Santo Egídio para iniciar com o tratamento antirretroviral no país em 2001. Hoje o tabu e o estigma reduziram drasticamente. Antes era terrível. Eu era avisada no ouvido que na enfermariax e cama y tem um doente com HIV e Sida precisando de assistência. Sem antirretrovirais no Sistema Nacional de Saúde eu registava cerca de 5 óbitos por dia. Quando se introduziu antirretroviral em 2004 as coisas começaram a tomar outro rumo. Hoje as pessoas fazem o teste e acompanhamento. Entretanto, destaque-se que tratar um seropositivo não se deve restringir à administração de medicamentos, é preciso que eles encontrem no seu médico um ser humano que possa ouvi-los quando precisam.

Cinco óbitos diários? Era frustrante…

Sem dúvida. Eu aplicava tudo o que aprendi na faculdade, mas ainda assim as mortes eram frequentes.

Doutora, a mulher continua a ser a maior vítima do HIV e Sida no país?

Infelizmente sim. Mas hoje os relatórios são bastante animadores, por exemplo no que diz respeito à transmissão vertical. Para nossa satisfação, no ano passado (2015), no Centro Dream da Comunidade Santo Egídio não nasceu nenhuma criança contaminada, ou seja, todas parturientes seropositivas tiveram seus bebés seronegativos, isto graças ao acompanhamento médico das mulheres grávidas vivendo com o HIV. Hoje é inconcebível que uma criança nasça seropositiva porque existe tratamento.

No acompanhamento da gravidez, que dificuldades as mulheres seropositivas apresentam?

Receiam que sejam obrigadas a revelar o seu estado serológico. E, evidentemente, damos a conhecer que isso está ao critério delas. Podem contar como não. Os mais importantes é que estejam conscientes do seu estado de saúde.

UMA MULHER DE FÉ

Tem algum ritual, algo que faça religiosamente todos os dias?

Oro muito e dedico maior parte do tempo no trabalho. Os meus números de telemóvel estão acessíveis aos meus doentes 24 horas por dia. Eles sabem que podem- me ligar ou mandar mensagem. Quando estou fora do país falamos pelo Whatshapp.

É uma mulher de fé?

Sempre fui, e trabalho com diferentes congregações religiosas: com as irmãs do Centro de Reabilitação Psico-Social das Mahotas; ajudo na formação sobre o HIV e Sida na Comunidade religiosa Dom Bosco e no Colégio Feminino da Katembe. Duas vezes ao ano, vou à Casa da Alegria instituição social pertencente as irmãs de Madre Teresa de Calcutá.

algum episódio que ficará para sempre na sua mente:

Em 2006, quando no Hospital Geral da Machava, tinha uma paciente de 17 anos que ia sempre à consulta com a mãe, que também erapositiva. Nas vésperas do Natal eis que comparece à consulta sozinha. Ela acabara de perder a mãe. As enfermeiras colocaram-na como última da fila, para que eu pudesse dedicar o tempo que fosse necessário àquela jovem. Uma vez no gabinete médico, sugeri-lhe que escolhesse uma das bonecas que eu tinha ali expostas. Ela rejeitou. Depois, aproximou-se de mim e disse que, apenas, queria a mãe dela de volta. Foi chocante! Ela só chorava.

Tem muitos pacientes. A sua acessibilidade não lhe tira o direito de estar com a sua família?

Não. Tenho o meu tempo para estar com a minha família também. É nela que recarrego as energias para o trabalho.

Quem é Noorjehay Magid?

Noorjehay Magid é natural de Maputo. É a mais velha de dois irmãos. Vem de uma família de origem e tradição indiana. Doutora Noorjehay é uma mulher de um sorriso fácil e espontâneo o que a torna extremamente simpática. 

Cresceu numa família conservador o que faz dela mulher de convicções fortes. A componente religiosa sempre a acompanhou. Tanto é que facilmente se envolve, desde cedo, em actos de cariz social. Desde 2007 participa anualmente da oração da Paz realizado pela Comunidade de Santo Egídio todos na Europa. Esta Oração de Paz é feita desde 1986. Iniciou na Itália pelo Papa João Paulo II.

Formou-se em Medicina pela Universidade Eduardo Mondlane tendo- se licenciado em 1998. Iniciou a sua carreira de médica no Sistema Nacional de Saúde, onde se encontra a prestar serviços até o momento. Em paralelo, trabalha com a Comunidade de Santo Egídio desde 2001, e actualmente é responsável clínica do Programa Dream de combate ao HIV e Sida.

Luísa Jorge
luísajorge@snoticias.co.mz

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