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Localidade sem lei

Por admin

Sangage é uma localidade costeira do distrito de Angoche, província de Nampula. É conhecida pelos seus dotes pesqueiros que superam largamente a concorrência provincial. Entretanto, os seus cerca de 14 mil habitantes parecem seguir um rumo pré-histórico.

 Quando se zangam, ainda que por um falso motivo, não hesitam em partir tudo. Matam, ferem, destroem o património alheio, afugentam forasteiros e inventam “fantasmas”. Não há polícia a milhas e ninguém ousa “pôr o guiso ao gato”. Ali reina o “olho por olho, dente por dente”.

Há dias assistimos a um pandemónio na localidade de Pangane, distrito de Macomia, em Cabo Delgado, resultante da decisão das autoridades religiosas de recolher e destruir bebidas alcoólicas que se encontravam à venda por ali. Publicamos a reportagem nas páginas 2 e 3 da edição da semana passada.

Durante a semana finda, deslocamo-nos à comunidade de Sangage que, à semelhança da de Pangane, se deixa guiar por princípios que roçam ao descabido, como é o caso de não investir na educação formal dos filhos.

Os próprios residentes confirmam que essa não é uma prioridade para eles. Num encontro que tivemos com mulheres que integram o Conselho Comunitário de Pescas (CCP) desta localidade, elas mesmas afirmaram que não mandam os filhos à escola porque “é distante”. Pura mentira.

Resultado disso é que apenas uma meia dúzia de adultos, jovens e crianças se expressa na língua oficial do país, o português. As escolas andam às moscas. Estuda quem quer. Não surpreende, por isso que a compreensão dos fenómenos sociais seja deficiente.

Outra prova de que algo vai muito mal em Sangage caiu-nos aos ouvidos por acaso quando abordamos o presidente do CCP, Agostinho Muhumua para saber se tinha conhecimento da existência de programas de financiamento à pesca que são promovidos pelo Fundo de Fomento Pesqueiro, entre outras entidades. Agostinho disse que sabia.

Entretanto, quando procuramos entender por que é que a comunidade de pescadores manifesta ignorância total sobre o assunto, ele disse que “disseram a mim e não tive indicações de que tivesse a obrigação de contar isso aos outros”, como quem diz essa informação é para consumo do chefe e não para partilhar por aí.

No quadro dessa deficiência de entendimento e análise, do nada, se promovem rixas que descabam em feridos, destruições e até morte. Pior se o visado for “viente” ou “vindouro”, como eles apelidam a quem não é nativo.

A situação que se vive em Sangage é tão grave que os poucos iluminados que por ali andam são “convidados” a socos e pontapés a desandarem dali, simplesmente porque se está a viver uma época de fofoca da mais original, aquela fofoca genuína, que embriaga como aguardente de primeira.

A população daqui vive aos murmúrios. Murmuram muito. Não há nada que eles dizem e que tem a certeza. Só falam o que ouviram dizer e quem disse nunca tem nome. É o vulto”, disse Paulino Puchar, chefe da localidade, ele que também é vítima de algumas destas atitudes.

A lista de vítimas dessa mexeriquice em Sangage começa do próprio chefe da localidade que não é respeitado por ninguém. Pior porque ainda vive numa cabana, pois a residência ainda está a ser construída. “Que autoridade ele pode ter se vive numa casa pior do que a do pescador mais desastrado daqui. A população não o respeita”, disse Afide Zubair, o simpático régulo de Sangage.

Aliás, o próprio régulo disse ser vítima de escárnio e maldizer, misturadas com ameaças. É que, um pequeno número de residentes da localidade já beneficia de corrente eléctrica da rede nacional, mas o régulo ainda aguarda pelo projecto de expansão, pois reside a uns 100 metros do ponto onde se pode fazer uma conexão. Se seria necessário investir em postes, linhas, entre outros.

Alguns dizem na minha cara que sou um rei sem majestade, uma vez que os súbditos vivem melhor que eu. E repare que tenho casa de alvenaria feita há dezenas de anos. Estou a habituar-me a conviver com o desprezo”, disse.

“SEM REI NEM ROQUE”

Como prova de Sangage precisa de “tratamento intensivo”, alguns residentes revelaram que recentemente um casal brigou feio e o marido, movido não se sabe por que caipirice espancou a esposa até à morte. Mas, porque não há posto policial nas imediações, o assunto terminou como começou. Na paz. O assassino vive tranquilo a se espreguiçar algures.

O régulo e o chefe da localidade também vivem angustiados e preocupados com o facto de a fofoca ser uma espécie de praga local. “O problema de fofoca é grave. Não vale a pena. É isso que estraga tudo por aqui”, sublinham. Aliás, esta preocupação também aflige ao chefe do posto Marítimo, Francisco Aly que resume afirmando que “é terrível”.

Entre as invenções mais recentes, tem a propalada existência de uns tais “homens puxa-sangue”, figuras que podem ser equiparadas a vampiros, que supostamente andam pelas sombras e atacam ao primeiro distraído que encontram.

Esta criação popular, própria para roteiro de filme de ficção, geralmente anda de mãos dadas com uma outra que se relaciona com o contágio pelo vibrião que causa a cólera. A população diz que esta doença é espalhada por funcionários do sector da Saúde e, por isso, persegue-os, neutraliza-os, espanca e destrói todos os seus bens. Por vezes fazem tudo isso e ainda matam.

O chefe da localidade descreve o ambiente como aterrador, uma vez que há poucas semanas, um grupo de populares, movidos por uma estranha fúria destruíram a residência de Luís Anselmo, que é um extensionista, e queimaram toda a papelada que este usa para registar a actividade piscatória desenvolvida pela própria população.

Na mesma toada, perseguiram o chefe da localidade de motorizada e atropelaram-no com alguma violência, a ponto de este cair e passar algum tempo inconsciente. Porque o momento é de reboliço puro, um secretário do bairro e cobrador de impostos foram vítimas de espancamento.

Porque o clima ainda não amainou o extensionista Luís Anselmo ainda revive a imagem de destruição da sua casa. Sem a sua base de dados, este jovem forneceu-nos informações sobre a produção pesqueira recorrendo a um caderno improvisado e à sua memória que parece intacta.

Num encontro com os representantes de duas associações de pescadores, Luís ofereceu-se para ser tradutor e quase lhe caíram lágrimas quando uma mulher de meia-idade pediu a palavra para nos dizer que a comunidade precisa de assistência urgente do Estado, porque há muita fofoca que levou a que destruíssem a casa do extensionista por razões que ninguém consegue tornar palpáveis.

Apuramos igualmente que, afinal Luís não é o primeiro extensionista que se vê na contingência jogar a toalha ao chão e se afastar daquela localidade com saúde e vida, deixando para trás uma iniciativa do governo que visa estimular a actividade pesqueira em benefício da própria comunidade.

Não conseguimos localizar o cobrador de impostos e o secretário do bairro espancados, mas apuramos que estas duas figuras foram seviciadas porque são muito activas na colaboração com o pessoal de saúde. “Bateram-lhes porque alguém disse que estes dois tinham cólera e malária guardada em casa pronta para contaminar a todos na localidade”, disse Paulino Puchar, chefe do Posto.

Porque a criatividade para a maldade é fértil em Sangage, o régulo contou que num dado momento em que se intensificaram as ameaças contra si, circularam informações segundo as quais eu teria fugido, “mas eu nunca vou sair daqui. Jamais deixarei este lugar. Aqui também é minha terra. Temos que aprender a viver e a conviver”, disse.

Apesar do esplendor paisagístico que Sangage apresenta, enquanto estávamos por ali não ouvimos falar em algo que se relacione com a actividade turística, lodges, resorts ou algo do género, nada. Também não vimos um local que lembre um restaurante ou ponto para acomodação.

Mesmo assim a beleza do local é de matar, sobretudo porque apresenta dunas que resultam da erosão eólica que é coadjuvada pela exploração de areias pesadas. Estas dunas estão a “engolir” a vegetação e formam paisagem única.

Também tem um farol que oferece uma vista incrível do mar, dos mangais, das casas que formam a sede da localidade, enfim. Sangage tem potencial adormecido e que com algum investimento na educação poderia se transformar num verdadeiro polo turístico com melhor impacto social e económico do que é hoje.

Escola em segundo plano

A localidade de Sangage, em Nampula, tem muitas semelhanças com a de Pangane, em Cabo Delgado. Ambas estão na costa, tem uma intensa influência islâmica, a população vive da pesca, a agricultura não tem expressão, o sector de Educação é desprezado e basta que alguém diga que “Fulano ou Sicrano não presta” para que o mesmo seja perseguido até às últimas consequências.

A influência muçulmana é tão forte que contam-se as mulheres que se apresentam em público com a cabeça destapada, sem a burca. Até meninas de tenra idade cobrem-se com aquela peça de roupa e só deixam o rosto, as mãos e os pés (a partir do tornozelo). Reza o ditado que “de pequeno se torce o pepino).

Salta à vista o facto de a maior parte das crianças, jovens e adultos não se expressar em português para lá do “Bom dia”. Depois desta curta frase, acabou. Começa o dilema de precisar de um tradutor para manter viva alguma comunicação.

Perante esta realidade, procuramos saber se existe alguma escola por ali. O régulo, o chefe da localidade, o chefe do posto marítimo e o extensionista confirmaram que existem quatro escolas primárias feitas de material convencional, das quais duas são do primeiro grau (leccionam da 1ª à 5ª classe) e outras duas escolas primárias completas (da 1ª à 7ª classe).

Entretanto, os pais e encarregados de educação não fazem grande esforço para ver os filhos e educandos sentados o ano inteiro na escola. “As crianças vão à escola massivamente nos primeiros três meses do ano lectivo. Depois começam a descontinuar”, disse Paulino Puchar.

Procuramos entender as razões do abandono escolar e deparamo-nos com uma explicação semelhante à de Pangane. “Muitos valorizam a Madrassa e a pesca. Aliás, parece haver um esforço para “matar” as aulas nas sextas-feiras”, sublinhou.

Com efeito, consta que houve um esforço de alguns membros da comunidade visando travar a pesca infantil, mas os resultados não terão resultado em frutos de vulto. “É difícil fazer com que as crianças estudem porque os pais não demonstram vontade de vê-las na escola”, disse Francisco Aly.

Enquanto percorríamos o trajecto de Sangage de regresso à cidade de Angoche observamos que a Escola Primária Armando Guebuza, que se localiza numa das margens da via, tinha ares de abandonada. Eram 10 horas e 30 minutos e não se via vivalma.

Jorge Rungo

 

jrungo@gmail.com

Fotos de Jerónimo Muianga

 

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