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EM HOMENAGEM A UMA ÁRVORE SECULAR E A ENIGMÁTICA AISSA

Por admin

Vi uma árvore no meio da terra, cuja altura era grande; crescia a árvore e se tornava forte, de maneira que a sua altura chegava até aos céus e era vista até aos confins da terra.” Dn 4:11;

 

“Amigo é alguém que está envolvido/Com os nossos ideais e serve de alavanca/para que, juntos, os realizemos./Amigo não compete: soma forças e acrescenta.” (Poema de Fátima Irene).

Ainda por ocasião do 41º. Aniversário da Vila de Inharrime e, através do poema que serve de introdução, da Brasileira Fátima Irene, desejo render homenagem a duas amigas: uma árvore secular e, uma rapariga já há muito “defuntada”. Nos dias que correm, cada vez vão rareando os amigos. Porque, amigos leais e sinceros são como ouro. Eu, além da filha da minha sogra e daquela árvore secular, julgo não ter mais do que uns dois. Sim, a tal árvore é minha amiga. Outro dos meus amigos é Pedro. Um amigo de verdade. Muito instruído e bem-educado, poliglota, Pedrito (para mim), fala Emakhuwa, Txi Nyanja, Ki Swahili, Português, Inglês, Árabe, Francês e entende um pouco de Changana. E, mais do que todas as essas línguas, também entende a língua do silêncio. Depois que lhe apresentei à vetusta árvore instou-me para eu homenageá-la, segundo ele, a pedido da própria árvore. Uma árvore centenária, localizada bem no centro da minha Vila. Ninguém chega ou passa da Vila sem avistá-la. Além de antiga, é bastante grande de tal modo que, o seu caule para abraçá-la, seriam necessários seguramente por aí uns, cinco a seis homens. Calculo que deva ter por ai uns quinze metros de altura. Na minha adolescência, corria um mito à volta dela, rezando que ela comunicava-se com as pessoas. Pelo menos quando alguém a saudava, ela abanava os ramos como resposta satisfatória à saudação, mesmo em dias sem vento. Neste momento, ela (árvore) deve andar na casa dos duzentos anos.Pedrito insistiu muito comigo para que rendesse homenagem à dita cuja, através de uma simples página “necrológica”. Só que não é tarefa fácil falar tudo sobre aquela árvore, porque ela era uma Biblioteca com Livros em branco. Por isso, ela mexe muito comigo. Ela (árvore) testemunhou ao longo de todos estes anos, muito acontecimentos, impávida e serena. Pela sua localização, julgo que o lugar onde ela se encontra, devia ter sido em tempos que o próprio tempo não se lembra, o centro da floresta. Quem sabe, era a sede dos Ti Nyarri (búfalos) que muito abundavam na zona. DaquiIn’Nyarrini (lugar dos búfalos). (esclareço que, em TxiTxopi, uma das três línguas faladas na Vila, o morfema ou afixo “in”, dsigna dentro de. Exemplo, In’nyumba=dentro da palhota. (In’Nyarrinini=Inharrime). Um dos piores momentos que a árvore terá quiçá atravessado foi no princípio da década Sessenta do século passado, quando uma Empresaque se chamavaERMOQUE, encarregada de abrir a EN1 de Sul a Norte, trouxe de passagem pela nossa Vila, os primeiros monstros de ferro “Caterpillar” jamais vistos, e que o Povo chamava não sei porque “Mi tranapule”, sulcando terra, derrubando árvores e arbustos e desenterrando acidentalmente até, Urnas de defuntos desconhecidos, caso de um que foi desenterrado, inteirinho com o respectivo corpo duma jovem ainda fresco apesar de não se saber a que família pertencera nem quanto tempo estivera enterrado. A EN1, passa àcerca de Cem metros da Secular árvore. Todos chegamos a temer que ela (árvore) seria também atingida em parte. Para o alívio nosso e dela, tudo não passou de um susto. Antes da construção do Mercado local, ela (árvore) era oBazar oficial da Vila onde decorria toda a troca comercial, relativamente a bens de consumo: peixe (fresco, seco ou frito), massaroca, cebola, tomate, salgadinhos e biscoitos (Mikati). Foi debaixo daquela árvore que conheci a rapariga mais enigmática que alguma vez vi em toda a minha existência. Chamava-se Aissa. Filha de uma pobre negra viúva Islamizada, chefe de uma família constituída por três membros: Ela, a Aissa e um filho, (Ismael Nyatihalwane), que tinha como ocupação, concertar bicicletas que nessa altura eram muitas não só na Vila, mas em todo o Distrito. Mas o que constituía a renda basilar daquela família era a confecção e venda de tais biscoitos (Mikati), que eram bolinhos feitos à mão, ordinariamente de farinha de trigo, açúcar e ovos. Havia outro tipo de Mikati mais pesado chamados de Mi Kati-kalango, verdadeiro alimento completo que deixava uma pessoa saciada o dia inteiro, feitos de farinha de arroz moído, coco e açúcar. Eram mais caros, Um Escudo (1$00), o dobro dos outros. Dizia eu, Aissa surpreendia-me pela sua constituição física: Catorze anos, 1,50m por aí, rosto ingénuo e angelical, magra, com o corpo coberto duma espécie de SARÍ cor de leite, indumentária usada nessa altura por toda a mulher de origem asiática, Islamizada, deixando apenas visíveis as mãos, os pés e o rosto cor de lama, parecendo uma múmia egípcia, ambulante. Não sei porque, mas sempre que a via, lembrava-me um cadáver embalsamado e mesmo assim sentia-me muito atraído por ela. Cedo, tornei-me cliente daAissa, não só pelo gosto dos seus Mikati, mas sobretudo pelo seu aspecto enigmático: tranquila e serena como a árvore onde ela vendia, nunca a ouvi pronunciar uma só palavra. Dir-se-ia que ela fazia parte da árvore secular. Nunca consegui conceber a árvore sem Aissa. Devido a sua condição de pobre, Aissa não frequentava o ensino formal e apenas ia à Madraça, ali na Mesquita local. Ela estava sempre ali sentada no chão duro com a sua bacia deMikati, sorriso enigmático qual “Mona Lisa”. Até que, num fatídico dia de 1962, um maldito Manobrador duma daquelas máquinas, semi-analfabeto, apareceu com avultada soma de dinheiro oferecendo-se a acabar com a miséria daquela família em troca, a Aissa passaria a confeccionar refeições para ele. A pobre mãe não pensou duas vezes e entregou aAissa de bandeja. Sete meses após o sujo “negócio” Aissa morria na sala do parto. Ela e o fecto. Jaime, casado, pai de um casal, foio autor moral e material da morte da enigmática Aissa. Ela, falava pouco e baixinho, tal como o sussurro onomatopaico da Árvore Secular. A tudo isso, a árvore assistiu incapaz de nada fazer. Constou-me que durante a sua agonia, teria pronunciado o meu nome, o que me deixou muito perturbad. Mesmo hoje, quando ao pe da arvore, vem-me a figura da Aissa. Paz a sua alma! Longa vida para arvore.

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