Um “Glossário de Conceitos Políticos, Sociais e Desportivos”, foi lançado recentemente em Tete, numa iniciativa da Rádio Moçambique com apoio da Cooperação Austríaca para o Desenvolvimento.
Na ocasião, Daniel da Costa, jornalista e escritor, teve a responsabilidade de fazer a apresentação da obra. A riqueza da sua apresentação pode ser testemunhada nos seguintes texto excertos:
Foi em meados dos anos 70 que, pela primeira vez, tomei contacto com a palavra “bantu”. Estava eu a frequentar o ensino secundário e a professora de História, Rosamina Taibo, explicava então que nós, moçambicanos, somos descendentes dos “bantu”, povos originários da África Central que tinham migrado para o sul do continente à busca de melhores condições de vida: água abundante, terras férteis para a prática da agricultura e criação de gado.
Nos anos 80, voltei a cruzar-me com a questão ‘’Bantu”. Já estava na Universidade Eduardo Mondlane.
Por que estava eu a estudar as línguas bantu? Porque como futuros professores de línguas vivas em Moçambique, fosse português, francês ou inglês, não podíamos ignorar as interferências das línguas bantu, faladas pela maioria da população, no processo de aprendizagem das novas línguas pelos alunos.
Na realidade moçambicana, muitos alunos só tomam contacto com a língua oficial já na escola primária. A maioria das crianças moçambicanas raciocina, brinca, chora e sonha numa língua bantu antes de ser tirada da pastorícia e dar os primeiros passos na aprendizagem da língua portuguesa, muitas vezes já na entrada da adolescência, nos lugares onde a escola primária se implantou tarde.
As línguas bantu interferem na expressão de outras línguas, através do seu léxico, da pronúncia e da sintaxe.
Ao estudarmos a Linguística Bantu também nos apercebemos de que as elites políticas têm interesses fundamentados ao escolherem uma língua como oficial e outra para ser apenas de comunicação na família, na igreja, no cemitério, na roda do pombe.
Seja qual for o interesse que em Moçambique orientou essa escolha, o certo é que o acesso à instrução, ao trabalho, à informação, ao poder – só para dar alguns exemplos –, infelizmente, ainda não é para todos os moçambicanos, devido à língua.
Pelo simples facto de não dominarem a língua portuguesa, a nossa língua oficial, muitos são ainda os moçambicanos que se sentem social e economicamente excluídos. Predominantemente, os anúncios de emprego falam línguas europeias nem as nossas línguas moçambicanas são vistas como lugares privilegiados de ciência. As Casas do Povo não debatem os problemas do povo nas línguas do povo: nem a Assembleia da República nem as Assembleias Provinciais nem as Assembleias Municipais.
Pela forma como o Estado moçambicano tem estado a gerir a questão linguística, as famílias podem não sentir-se encorajadas a investir nas nossas línguas nacionais para desafiar o futuro com mais segurança e auto-estima.
Esta é uma das razões pelas quais os falantes das línguas bantu são vistos ainda como cidadãos de segunda pelas elites urbanas e figuram nas estatísticas oficiais como analfabetos. Reparem, surgem na estatística como analfabetos, mesmo que saibam ler e escrever a língua materna do seu grupo étnico, mesmo que saibam ler e escrever numa língua bantu.
É o caso de muitos moçambicanos que aprenderam as línguas transnacionais do outro lado da fronteira – no Malawi, na Zâmbia, no Zimbábwe ou África do Sul.
Com o advento da independência nacional, a Rádio Moçambique herdou a tradição das emissões em línguas nacionais não só do Rádio Clube de Moçambique, mas também da Rádio Pax, do Aeroclube da Beira e principalmente da Voz de Moçambique.
Abro aqui um parêntesis para dizer que a minha mãe, Luísa Xavier, integrava na Voz de Moçambique, na Beira, no início dos anos 70, o primeiro grupo de locutores da língua Ci-Nyúngwe. Do grupo faziam parte Isabel Gravata, Daniel Fermenga e Chico Ferrão, este último irmão do saudoso Padre Ferrão. Na frente do Ci-Sena, estava Cristina Marra e, que eu me lembre, na frente E-Chuabo, Helena Sunipa.
Hoje, ao usar as línguas nacionais moçambicanas nas suas emissões, a Rádio Moçambique está a prestar um serviço público de inegável valor cultural e de afirmação da nossa moçambicanidade.
Ao mesmo tempo que reabre o debate sobre o verdadeiro sentido da moçambicanidade, a Rádio Moçambique sobe mais uma fasquia com a publicação deste glossário. De que fasquia estamos aqui a falar? Com a publicação deste glossário, a Rádio mostra que é uma instituição inquieta, um órgão de informação que não se acomoda. A Rádio Moçambique entendeu que as línguas moçambicanas não deviam entrar “descalças” no recinto dos jogos da comunicação para o desenvolvimento. A Rádio Moçambique decidiu assim dar o seu modesto contributo cívico, equipando as línguas que usa com este glossário. Um glossário facilita ao profissional de comunicação a abordagem de assuntos políticos, económicos, sociais, científicos, culturais, etc. Restaura a dignidade das nossas línguas nacionais e padroniza a sua utilização pelos seus profissionais. A própria Rádio Moçambique consolida a sua liderança como modelo de língua para vários segmentos de falantes das línguas bantu.
Na verdade, este não é o primeiro glossário com que a Rádio Moçambique nos brinda. O primeiro, intitulado Glossário para a Educação Cívica, veio a lume em 1997. No mesmo ano, a Rádio Moçambique publicou o Glossário de Conceitos Político-Sociais. Este ano vem à estampa o Glossário de Conceitos Políticos, Sociais e Desportivos, abarcando 18 línguas e com 100 novas entradas. Mas as línguas que competem com as nossas não têm apenas glossários. A Rádio Moçambique, felizmente, sabe disso.