Semana passada, o jornal domingo trouxe nas suas páginas Centrais uma reportagem sobre como são tratados pelo Conselho Municipal de Maputo os corpos abandonados nas morgues dos hospitais da capital do país e que por isso vão parar à vala comum no Cemitério de Lhanguene.
Eles são levados por camiões de lixo junto com o lixo comum.
Esta situação, segundo indica a reportagem, dura já há mais de seis meses sem que as autoridades vejam nisso, um problema, uma situação anormal para ser corrigida rapidamente.
É do tipo: morreste. És pobre. A tua família abandonou-te ou não te pode proporcionar um funeral condigno. Então estás lixado. És lixo e vais ser transportado como tal para ir parar à vala comum.
De acordo com o artigo, o camião que passou a transportar os cadáveres das morgues para a vala comum do Cemitério de Lhanguene não tem taipais na parte traseira e nem qualquer cobertura por cima. Circula assim pelas estradas da capital com corpos em decomposição, enfrentando o complicado trânsito nas ruas da capital.
“Nos engarrafamentos o camião pára. Viaturas em redor cortejam cadáveres sem saber. O cheiro fedorento irrita peões e automobilistas mas ninguém sabe ao certo qual é a sua origem. Seu sossego dura até o sol desaparecer. À noite, os cães entram em festa. Matilhas deslocam-se à vala comum e encontram alimento recém-chegado. Cada um escolhe um pedaço de corpo humano e delicia-se como pode. Não é de estranhar, por isso, que dia seguinte, um morador encontrou braço de uma criança morta arrastado para o seu quintal pelo cão da casa. O animal nada de especial fez do que trazer tacho para casa para se refastelar na maior tranquilidade. Corpo de uma senhora foi também arrastado pela matilha para a rua e já não estava completo. Foram os próprios habitantes nas redondezas que fizeram questão de levá-lo de volta à vala comum. Tudo isto acontece porque os corpos são depositados a baixa profundidade. Neste ponto alertamos para os riscos que isso pode causar à saúde pública. O cão, alimentando-se de carne humana putrefacta, pode configurar um vector de doenças de vária índole, pois coabita com as pessoas e por vezes partilha instrumentos de utilidade doméstica”, escreve o articulista no referido artigo.
Segundo as autoridades, tudo isto acontece porque o camião apropriado que fazia este tipo de trabalho se encontra avariado e como alternativa optou-se por utilizar um tipo de veículo não apropriado.
Ora, como o leitor se pode aperceber, isto não é normal. Este tratamento que estão a sujeitar os mortos não é digno nem condigno. Eles merecem todo o nosso respeito, independentemente de irem parar à vala comum ou não.
O facto de um morto ter sido abandonado ou não pela família, não faz dele um menos digno, pelo contrário, os vivos devem tratá-los com maior dignidade própria reservada á espécie humana, não só porque qualquer um poderá estar nessa contingência, mas também por dever moral.
“É do tipo: morreste. És pobre. A tua família abandonou-te ou não te pode proporcionar um funeral condigno. Então estás lixado. És lixo e vais ser transportado como tal para ir parar à vala comum”Já escrevemos aqui que para estes casos de corpos abandonados por famílias sem posses nas morgues, o Estado devia pensar em criar mecanismos de apoio, se calhar conjuntamente com as agências funerárias, que lucram que se fartam com a morte, de modo a fornecer-se caixões de baixo custo, que permitam aos familiares acompanharem o seu ente querido à última morada. Isto podia passar por criar uma taxa adequada para as agências funerárias poderem comparticipar nesses mecanismos ou activando outras formas com as seguradoras.
Também dizer que as nossas florestas são imensas e madeira não faltará ao Estado para dar essa dignidade que merece quem por cá viveu em concidadania com esta vasta comunidade que somos nós todos.
É obrigação do Estado criar condições públicas para que todo e qualquer cidadão possa realizar o seu direito constitucional que lhe garante o acesso a este tipo de serviços mediante as suas próprias condições socioeconómicas.
Recordamos que na altura em que foram lançadas as nacionalizações no sector da Saúde que abrangeram também as agências funerárias, o Presidente Samora indignou-se bastante com aquilo que designou de “negociatas com a morte”.
Com a abertura do país ao chamado mercado livre, estas negociatas voltaram com força. As agências funerárias estipulam o preço que querem pelos caixões e vendem-nos a preços muito acima do salário mínimo nacional.
Elas quase que competem para ver quem é mais desonesto, quem saca mais dinheiro dos enlutados que não têm outra saída senão de enterrar o seu familiar. Muitas vezes têm que recorrer a dívidas para suportar estes custos. Pior ainda, no meio desta selvajaria toda, os enlutados não sabem onde ir denunciar as arbitrariedades nesta área e não sabem quem de facto a inspeciona. Estão entregues apenas à sua morte e à sua sorte.
Nas morgues, além dos pagamentos das taxas devidamente estabelecidas para a conservação dos corpos, tem de se pagar outro de “refresco” para os que cuidam das gavetas, porque senão amanhã encontra o corpo do seu familiar atirado ao chão, a favor de quem deu “saguate”.
Fora isso, é preciso “refresco” para lavarem o corpo. Lavar, como quem diz, porque, muitas vezes, como já assistimos, cinco ou mais corpos são colocados numa mesa e depois regados com uma mangueira. Momentos depois são vestidos e levados para os caixões.
Depois, para além de ter pago antecipadamente na agência funerária o transporte da urna para o cemitério, tem de pagar “refresco” também ao motorista da agência que vai realizar o serviço, sob o risco de ficar ali na morgue horas a fio e ser o último a ser despachado, perdendo a hora marcada para o funeral, com a família e amigos desesperados no cemitério por conta do atraso.
Por isso, dizemos que não é possível defender nem do ponto de vista religioso, nem ético, muito menos moral que dois seres humanos mortos ou não sejam tratados de maneiras diferentes só porque um é pobre e outro tem posses. Isso não é defensável. Não podemos discriminar ou maltratar ninguém porque é pobre ou morreu pobre. O Estado não pode permitir a ocorrência deste tipo de coisas que acontecem quando alguém já partiu desta para outra e por isso nem tem como se defender. Quem morreu merece também todo o nosso respeito e dignidade.