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Não imagino a minha vida sem teatro

Por admin

“A lenda procura explicar aquilo que não pode ser explicado. Está ancorada na verdade, e deve acabar no inexplicável” – é assim que Kafka descreveu a transformação da lenda de Prometeu. Acredito profundamente que estas mesmas palavras deviam descrever o teatro.

E é este tipo de teatro, aquele que está ancorado na verdade e encontra o seu fim no inexplicável, que eu desejo a todos os que nele trabalham, os que se encontram no palco e os que constituem o público, e isto eu desejo de todo o meu coração. Este é um excerto do texto de Krzysztof Warlikowski, o autor do tradicional texto do dia mundial de teatro. O domingo, em jeito de homenagem aos eternos sonhadores, foi conversar com Jorge Vaz, um actor umblelicamente ligao aos grupos M´beu e Mutumbela Gogo para uma visita guiada ao seu baú de memórias. O resultado é esclarecedor. Há quem ainda faz arte por amor. Ingressou nas artes cenas por mero acaso, quando tinha cerca de 14 anos de idade. Já participou em mais de 20 peças e em outros tantos filmes.

Quem é Jorge Vaz?

Sou um jovem moçambicano, natural de Maputo. Devia chamar-me Jorge Benjamim Manjate, mas devido a questões familiares, tive de ser registado pela minha mãe apenas…

O que aconteceu exactamente?

Quando tinha de ser registado meu pai estava na tropa e a família dele não acreditava que eu fosse seu filho tendo ficado reticente em registar-me. Minha mãe tentou esperar mas ninguém mudou de ideia até que chegou a hora de ingressar para o ensino, onde eram necessários meus documentos. Aí ela viu-se sem saída e teve de registar-me sozinha pelo nome de Jorge Maria Vaz, filho de pai incógnito.

O TEATRO

Como e quando entra no teatro?

Recordo-me que tudo começou na época de ensino secundário, na Escola Secundária de Lhanguene, quando comecei a frequentar a igreja católica e a catequese.

Explique-se…

Na época em que estava na secundária, minha prima convidou-me para passar a ir a igreja e a catequese. Num dos sábados de catequese apresentou-me ao padre Daniel – um homem de quem nunca vou esquecer – que não sei exactamente o que passara em sua cabeça, mas naquele momento disse-me que estavam a organizar uma festa de São João Bosco e convidou-me a declamar poesia e ainda desafiou-me a participar duma peça teatral. Aceitei o desafio e fiz as duas coisas muito bem.

Já havia feito isso antes?

Não, mas aceitei o desafio. E tudo saiu muito bem e ele elogiou a minha prestação. Daí, passei a fazer mais vezes o teatro, e comecei a fazer também na escola, mas ainda não fazia com todo amor.

Quando ganha o gosto da “coisa”?

Quando comecei a estudar na Escola Secundária da Manyanga, pois havia um grupo, do qual era fã, o Zomola. Aí comecei a ver que a final de contas isso era um pouco mais daquilo que fazia. Sem contar que também já via na televisão grupos a brilharem então queria fazer mesma coisa.

Como fez para chegar no nível que almejava?

Uma primaminha, ao ver que estava a gostar de teatro, apresentou-me a uma conhecida sua que estava no grupo Mbeu (semente), na altura grupo juvenil do Mutumbela Gogo, para que me ajudasse a entrar também.

Conseguiu?

Sim, mas não foi fácil ficar logo a prior. É que antes de ser integrado no grupo aconselharam-me a ir assistir a maneira como os actores comportavam-se em palco. Ao fazer isso, num sábado de manhã, antes de entrar na sala onde estavam a ensaiar ouvi alguém a berrar; era o Evaristo Abreu encenador do grupo Mbeu, a chamar a atenção a alguns actores. Aquilo assustou-me, e disse afinal tal teatro é isso? Fugi…

Tinha desistido?

Sim. Mediante aqueles “gritos” que ouvi imaginei que as pessoas eram “torturadas” e não era o queria para mim.

Como mudou de ideia?

Passado algum tempo, vi a publicidade da peça “WaMpwundlha” que seria apresentada pelo grupo de teatro Mbeu, na televisão. Aquilo deu-me um nó, e vi que tinha sido fraco ao desistir de algo que gostava. Sendo assim, naquele mesmo instante repensei na minha atitude e decidi então voltar ao teatro mais determinado para que lá me mantivesse mesmo em caso de dificuldades.

Como fez para voltar?

A verdade é que ainda não havia sido integrado, então foi “fácil” entrar, pois apenas tive de falar com Evaristo Abreu apenas. Ele aceitou-me e a partir dai passei a ensaiar e comecei a preparar de raiz, com eles, a peça Ntsuva, jogo tradicional.

Então quando entrou no Mutumbela?

Numa primeira fase era chamado do Mbeu para Mutembela, apenas para substituir se alguém não faltasse. Recordo-me que a primeira vez que isso aconteceu foi quando a já falecida Guida Manja, por um tempo, teve de viajar, enquanto a peça “Missava” ainda estava em apresentação. Entregaram-me um texto e indicaram-me as passagens dela….

Como foi?

Numa primeira fase foi estranho fazer a personagem dela.

Porquê?

É que me haviam atribuído um papel de mulher, e nunca havia feito aquilo…

Conseguiu adaptar-se?

Tinha de fazer. Cheguei a perguntar a Manuela Soeiro se era mesmo aquele papel que tinha de fazer e ela respondeu que sim.Era tão novo e sem experiência nenhuma que aquele papel era esquisito para mim, mas fi-lo.

No final como foi?

Foi bom, apesar de tudo, estava ao lado de grandes figuras do Mutumbela, e era o mais novo em tudo, experiência, tamanho, idade, enfim mas lá ensaiamos e consegui adaptar-me.

Quando então ficou no Mutumbela definitivamente?

Chegou uma época em que já estava a ficar difícil trabalhar nos dois sítios. Os dois grupos faziam peças com regularidade. Então Manuela e outros decidiram que tínhamos, eu e um outro colega, de ficar definitivamente no Mutumbela e assim foi.

Quando é que isso aconteceu?

Deu-se em 1993.

Onde busca inspiração?

Bem eu me inspiro no meu dia-a-dia e no povo moçambicano, cada moçambicano na sua área, nos seus problemas e sucesso…  

“MENINOS DE NINGUÉM”

UMA ESCOLA

Qual é a peça que te marcou?

Acho que um dos meus maiores desafios quando entrei no Mutumbela foi a peça “Os Meninos de Ninguém”, um clássico da casa, pois essa foi a primeira vez que trabalhei de raiz com os grandes actores do grupo.Não tive uma alta participação pois minha personagem era ofuscada mas mesmo assim a peça marcou-me.Arrisco-me a dizer que essa peça alavancou-me e fez-me encarar teatro de forma muito mais séria, uma vez que o nível de trabalho foi grande.

Exibiram essa peça no ano passado também?

Sim, e o engraçado é que tivemos de repô-la 20 anos depois.Veja que não tínhamos texto da peça, tivemos de a reconstruir de cabeça e repusemos as cenas assim mesmo. Aqui tive um outro papel, mais preponderante, era Santinho. E creio que foi bom assim pois com esses anos todos na área deu para ficar de certo modo maduro.

Durante esses anos de carreira interpretou vários personagens. Qual a marcou mais?

Bem tenho vários personagens… o caso de “Hamlet” deu-me um trabalhão… Também lembro-me da minha personagem na peça “Irmãos de Sangue”, uma peça de grandes desafios para mim pois canto, danço, representei. Sem contar que começo com 7 anos de idade, fiquei adolescente, jovem, adulto, idoso e depois morri, ou seja evolui durante duas horas.

AMOR PELO DESPORTO

Sempre sonhou em fazer teatro?

Não.Sonhava em ser um grande atleta. Aliás até cheguei a ser futebolista e basquetista, até o teatro invadir meu coração. Mas uma vez a outra, sempre que posso, gosto de jogar e assistir aos jogos.

Passado todo tempo, arrepende-se dessa troca?

Não. Teatro já é tudo para mim, com o decorrer dos anos o bichinho cresceu. Faço de coração. Sem contar que se tivesse escolhido o futebol a essas alturas já não poderia jogar devido a idade. Como actor irei trabalhar até não mais me aguentar e agora é que encontro-me numa fase boa de crescimento pois quanto mais o tempo passa mais vou adquirindo experiência e maturidade, nisso.

O que faz um bom actor?

Humildade. É importante que um actor tenha umas boas bases, saber ouvir, mas a humildade, é a grande chave, pois sem ela não poderá suportar comer o pão que o diabo amassou, uma vez que aqui não vale a pena querer encontrar tudo de mão beijada sem batalhar.

Troque isso em“miudinhos”?

Recordo-me que quando entrei aqui era muito quieto em reuniões, não tinha de dizer nada naquele momento, e acho que é assim como tem que ser.

DEVE-SE RESPEITAR O TEATRO

Entrou no teatro por acaso, e já se passam mais de 20 anos. Fale-nos do que significa o teatro agora para si?

É a minha vida. Sem o teatro já não conseguiria mais nada. Ainda que voltasse ao desporto não apanharia a mesma alegria. Aqui já não saio mais. Sempre darei um contributo para o teatro, pois acredito que faço parte da sua estória aqui no país. E digo mais, admiro nosso trabalho, pois é muito árduo: temos de memorizar um texto, apresentar por uma ou duas horas, enquanto somos assistidos pelo público e ali não há que falhar, parar nada e depois retificar nada disso. É tudo naquela hora mesmo, e tem sair tudo bem o que não é fácil.

Por isso exigo que sejamos respeitados, valorizados, pois trazemos, teatro não é qualquer coisa como as pessoas dizem. Não é só subir no palco e fazer rir e logo missão cumprida, não. Teatro não tem nada a ver com isso, está muito acima disso. Tem a componente de educar, chamar a razão das pessoas, mostrar os perigos, alertar sobre coisas que acontecem.

Como avalia o teatro moçambicano actualmente?

O teatro está num bom estágio e a ser feito em todo país. Algumas pessoas não vêm isso pois apenas focam-se na cidade de Maputo, enquanto fora tem muito mais.

Em parte até culpo os Medias que têm uma parcela de culpa nisso pois não divulgam artes como teatro.

Como assim?

Há uma grande descriminação de algumas artes no país e acho que não deveria ser assim. Cultura não é feita apenas de música. As outras artes são marginalizadas e isso é errado, pois não devem haver artes madrastas. Cultura não é música é também o teatro, pintura, escultura, entre outras coisas que não são divulgadas em nossas televisões por exemplo.

E olha que também há promoção de mediocridades, considera-se alguém estrela só porque fez uma música, dramaturgo só por uma peça, e não é bem assim… é preciso que as pessoas provem que merecem os títulos que são ai atribuídos.

Como é a sua relação com os seus colegas?

É boa e aprendi muito deles. É claro que num grupo quando entras há aqueles que são mais receptivos, prontos a ajudar-te e outros logo de cara mostram que não querem amizade consigo, e em parte até é bom pois também faz-te querer lutar, então também passei por isso.

Como é o vosso trabalho de cooperação com grupos nacionais e estrangeiros?

Temos boas relações e cooperações fixas com alguns grupos de países como Alemanha, já fizemos a peça “Pão escuro e flores mortes”. Já tivemos uma co-produção com a Áustria na peça “Doors”, um enorme desafio pois tínhamos de montar uma peça em 30 dias, com operários duma fábrica. Já internamente temos trabalhado com alunos da Escola de Comunicação e Artes (ECA). Para além de actores de outros grupos.  

PLANOS

Quais são os seus planos actualmente?

Bem agora já comecei a escrever. Também ajudo na encenação, na montagem das peças e agora a minha maior ambição é escrever uma peça completa de teatro (livro), montar peças de raiz, tornar-me encenador e dramaturgo. Pretendo ainda continuar a formar os mais novos, trabalhar com eles nos palcos e cenários.

Já escreveu alguma peça?

Sim, alguns textos da peça Chapa-100-My love escrevi. Já ajudei também a montar algumas como “A vida louca de Monasse John”. Confissões de adolescentes, Chapa-100-My love.

Faz alguma outra coisa fora ao teatro?

Sim. Tenho colaborado com um grupo de música intitulado TP-50, represento, ou declamo poesia, ou tocando instrumento, ou fazendo coros, isso para dizer que o teatro me dá essas possibilidade de colaborar com outras áreas.

 

 

Legenda: Fotos de Jerónimo Muianga

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1 comment

Psychic Parties 2 de Setembro, 2023 - 14:23

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