Reportagem

O aborto, a médica-chefe e o juiz

A pacata vila de Nova Mambone, sede do distrito de Govuro, no norte da província de Inhambane, vive momentos invulgares. O abalo resulta de um aborto cometido por uma jovem de nome

 Rita M., que culminou com a detenção imediata de Celeste Maluate (mais conhecida por Lúcia), funcionária do centro de saúde local. De transmeio há contornos fora do vulgar dos quais pontificam intervenções do juiz distrital, Manuel Rafael, e da médica-chefe, Nádia Manjate, todos emaranhados num enredo rocambolesco de ódios, paixões, mentiras e verdades, mais ou menos ao estilo de novelas brasileiras.

Sábado. Vinte de Junho de 2013. A vila de Nova Mambone desperta tranquila com galos a cacarejarem, bois a mungirem, enquanto arrastam carroças carregadas de fardos de peixe seco, roupa e mercadoria diversa, crianças a correr pelos quintais, e homens e mulheres à procura do “pão cada dia”.

O sol afugenta a madrugada e os cães vadios (muitos cães mesmo) desaparecem das vias públicas. O mercado local, terminal de transportes e barracas ganham vida mas, sempre naquele compasso dengoso, de relaxamento pois, por ali, ninguém parece querer transpirar.

Aliás, em Mambone, a única coisa que corre célere são as notícias de tipo “João espancou a esposa ontem à noite”, “António bebeu e dormiu na rua”, “Maria foi surpreendida pelo marido aos afagos e beijos com o Mário”, com direito a juras e tudo. Ou seja, ali a notícia não dorme no caminho.

Mesmo a propósito, a nossa equipa posicionou-se temporariamente no centro da vila, na esplanada Matsakisse, que é uma mescla de mercearia, bar e pensão, e não tardou que as ocorrências começassem a ser relatadas em voz alta por um agente da polícia aparentemente ligado à investigação criminal.

Já neutralizámos o rapaz que tentou fazer um assalto à mão armada. Encontrámo-lo nas bandas de Doane. É alto, escuro, tem uma pistola e um sobretudo preto tal como a vítima descreveu”. O agente vociferou, enquanto cambaleava rumo ao balcão, onde pousou uma garrafa de cerveja com sonoridade. “Aceito mais uma cerveja”, disse.

Apesar de estar em serviço, o agente calçava umas velhas “pipocas” (chinelos) que deixavam o calcanhar inteiro em contacto com o chão, a camisa desabotoada até ao começo da barriga, a testa húmida de suor e um ar de valentia típico de quem tem a cabeça dominada por hectolitros de cerveja. “Não se surpreendam, aqui em Mambone isto é normal. Sabemos de tudo o que se passa assim mesmo”, disseram alguns convivas de ocasião.

“Quinino” no órgão genital

Naquela manhã, muitos não se deram conta da agitação que se viveu no centro de saúde local para onde se dirigiu a jovem Rita M., de cerca de 20 anos de idade e estudante da 12ª classe, algures no distrito de Machanga. Ela se contorcia de dores de morte resultantes de um aborto clandestino.

Entretanto, pouco depois, a notícia correu como um rastilho aceso e todos ficaram a saber que o pessoal médico encontrou dois pauzinhos, conhecidos por “quinino” (por serem muito amargos) dentro do órgão genital duma rapariga, por via dos quais se devia provocar o aborto de uma gravidez de cerca de três meses.

Não nos foi possível entrevistar a jovem, apesar de a termos visto recomposta na Cadeia Distrital de Govuro. Porém, o seu representante legal, Meque Machado, afirma que Rita M. confessa que recorreu inicialmente a comprimidos que não deram efeito e, passados alguns dias, espetou um medicamento tradicional no órgão genital que lhe causou dores intensas. “Depois disso dirigiu-se ao hospital onde o caso foi detectado”.

Machado revela ainda que a sua constituinte teria recebido comprimidos e o tal “quinino” das mãos de Celeste Maluate, servente hospitalar, a troco de mil meticais. Entretanto, e como seria de esperar, Celeste Maluate refuta o seu envolvimento no caso.

Esta jovem veio à minha casa pedir para que lhe ajudasse a localizar alguém que pudesse materializar o aborto. Limitei-me a dizer-lhe que devia ir ao hospital, porque tenho plena consciência de que a prática de aborto é crime”, disse.

Celeste acrescenta que quis saber como é que Rita chegou à sua casa e esta teria dito que “perguntou a algumas pessoas, onde poderia encontrar alguém que trabalha no hospital e a casa mais próxima que lhe foi indicada foi a minha. Nunca vi esta jovem antes. O pior é que ela nunca disse que fui eu que lhe administrei comprimidos ou raízes”.

Escuridão processual

Da descoberta do “quinino”, no Centro de Saúde de Doane, à detenção de Celeste Maluata paira alguma escuridão na medida em que ninguém assume a autoria da denúncia à Polícia e não se compreende a rapidez com que Celeste foi recolhida para a Cadeia Distrital de Govuro, sem antes responder a um processo disciplinar ou qualquer outro tipo de inquérito.

Prenderam-me do nada e fecharam-me aqui. Não estou a entender o que se passa. Não percebo nada de leis, mas, penso que primeiro investiga-se e depois é que se prende e não o contrário”, reitera.

Com vista a compreendermos a génese do caso, ouvimos o juiz distrital, Manuel Rafael, que disse que quem denunciou o caso foi um agente da polícia, cujo nome não revelou e que antes da detenção, todos os funcionários foram perfilados e a jovem Rita indicou a visada Celeste.

A nossa equipa de Reportagem também contactou o administrador do distrito de Govuro, Azarias Xavier, que disse que recebeu a comunicação da detenção de Celeste Maluate assinada por um médico tratado apenas por Mondlane e não por um agente da Polícia.

Perguntei como tinham feito a detenção e disseram-me que quem observou a jovem foi a médica-chefe, Nádia Manjate, que depois pediu a uma enfermeira para fazer análises, mas, a papelada vinha assinada pelo doutor Mondlane, que é um médico novo aqui no distrito”, disse Azarias Xavier.

A versão do juiz Manuel Rafael é também rebatida por Celeste Maluate, colegas, familiares e populares residentes de Nova Mambone, que reiteram que foi a médica-chefe, Nádia Manjate, quem ligou para o juiz distrital a solicitar a detenção imediata daquela funcionária.

Esta convicção generalizada resulta, em primeira estância do facto de a comunidade local estar convencida de que Manuel Rafael e Nádia Manjate mantêm um relacionamento bem adocicado e que extravasa os limites da simples amizade. “Isso é público e pensamos que deve ser por isso que a médica Nádia não cumpre a ordem de transferência que tem em mãos há três meses”, afirmam.

Em conversa com o administrador do distrito, este confirmou que Nádia Manjate tem em mãos a ordem de transferência há alguns meses e que o médico que a deve substituir já se encontra em Nova Mambone. Entretanto, e por razões múltiplas, a médica-chefe permanece no distrito, facto que está a gerar interpretações díspares por parte da comunidade local.

Outro elemento que concorre para o recrudescimento da ideia de que a detenção da servente Celeste pode ter outro tipo de motivação é o facto de a pela dupla médica-chefe/juiz distrital ter estado directamente envolvida na detenção de um motorista do Centro de Saúde de Doane.

Segundo relatos de populares, a médica-chefe, Nádia Manjate, terá ligado para o juiz Manuel Rafael a solicitar que ordenasse a detenção do referido motorista, porque este se encontrava a trocar copos num bar, em pleno horário de serviço. Cerca de 24 horas depois, ficou provado que, afinal, a cerveja que Nádia Manjate viu não era cerveja. Eram sim, um refresco. O motorista foi solto e o caso foi encerrado como se nunca tivesse acontecido.

Amores e paixões

Porque Celeste Maluate não se conforma, submeteu pedidos de liberdade condicional por Termo de Identidade e Residência (TIR) e por Caução, mas, ambos foram indeferidos por Manuel Rafael, que é juiz de instrução e simultaneamente juiz de causa, por ser único no distrito, o qual alega que Celeste poderia perturbar as investigações sobre o aborto.

O facto de Celeste ser uma funcionária com residência fixa e permanente naquela vila, ser mulher de idade (53 anos), a escassos dois anos da reforma na Função Pública, nunca ter tido um processo disciplinar ou outra forma de repreensão não foi suficiente para demover Manuel Rafael. “Indefiro o pedido”, sentenciou.

Aliás, na última quarta-feira, dia 21 de Agosto, o pai da ré Celeste faleceu e a família requereu novamente a libertação, ainda que temporária, mas, mais uma vez, recebeu um “não” redondo do juiz distrital.

A nossa Reportagem apurou que Celeste Maluate viria a ser solta para assistir ao funeral depois da indignação e intervenção de diferentes estruturas do distrito, que se dirigiram ao procurador distrital, Borgito Damião, e este anuiu a favor da libertação temporária daquela.

Entre as razões encontradas para manter aquela funcionária sob cárcere destaca-se o facto de se alegar que um dos filhos desta se terá aproximado da médica-chefe para entender as razões da detenção da mãe. O próprio juiz distrital afirmou para a nossa Reportagem que “a médica se sentiu ameaçada e apelou à intervenção das autoridades”.

O referido filho de Celeste Maluate é Leopoldo Achimo, professor, que conta que os agentes mandatados para executarem a ordem verbal de neutralização e captura entenderam que aquele era mais um excesso e não obedeceram à ordem até à data.

Não ameacei à médica. Só lhe perguntei o que tinha acontecido com a minha mãe, que é sua subordinada, e ela respondeu que não sabia que a minha mãe estava detida. Depois disso, fui-me embora. Minutos depois, recebi uma chamada da Polícia a dizer que estava a ser procurado”, afirmou Achimo.  

Dado curioso é que Leopoldo Achimo e Manuel Rafael já se vêm descabelando há algum tempo, porque coincidiram numa namorada, que, para a tristeza do juiz, virou esposa do jovem professor. Trata-se de Racília Luís que num dado momento foi vista a entrar na casa do juiz e, porque em Mambone “a notícia não dorme no caminho” houve um intenso bate-boca, empurrões e ranger de dentes entre os dois.

Mais uma vez, o juiz Manuel Rafael negou que tenha tido algum tipo de quezília com Leopoldo Achimo e acrescentou que do alto dos seus 62 anos de idade, da sua religiosidade, posição social e de chefe de família, jamais se envolveria em peleja baixa.

O juiz também nega que tenha algum tipo de amizade “açucarada” com a médica-chefe, que terá recebido instruções desta para deter Celeste Maluate, entre outros. O juiz nega tudo e só admite que assinou os documentos de legalização da detenção de Rita M. e Celeste Maluate.

Aliás, enquanto redigíamos esta reportagem, a nossa equipa recebeu chamadas telefónicas de um jornalista de um órgão dos chamados independentes que, apresentando-se como amigo do juiz Manuel Rafael, apelava para que sublinhássemos que “o juiz só se limitou a legalizar a detenção de Celeste Maluate e mais nada”.

Juiz contestado

em comício popular!

O que compromete a imagem do juiz Manuel Rafael no distrito de Govuro é o facto de este ter sido denunciado em comício popular dirigido pelo Chefe de Estado, Armando Guebuza, a 3 de Agosto de 2010. Naquela data, alguns populares subiram ao pódio para denunciar algumas diabruras supostamente cometidas por aquele juiz.

Entre os conjecturados atropelos, que até hoje permanecem na “garganta” de muitos, destaque vai para a atribuição de carros apreendidos no Posto de Controlo do Rio Save (que pertence ao distrito de Govuro) a amigos do juiz, não só em Mambone, como também em outros pontos da província de Inhambane. A título de exemplo, contaram à nossa equipa que a viatura de marca Toyota Vitz que usa a médica-chefe distrital, foi ofertada pelo juiz.

Quisemos tirar a limpo esta situação e Manuel Rafael negou que tenha sido uma oferta, mas, sim, uma atribuição mediante pedido escrito e com pagamentos feitos. “Ela requereu a viatura e pagou por ela. Não ofereci”, afirmou, pese embora seja de domínio público que, depois da denúncia feita ao Presidente da República, os carros apreendidos no Rio Save passaram a ser geridos pela Autoridade Tributária ao nível da cidade de Inhambane.

Procuramos ouvir a versão da médica-chefe, Nádia Manjate, que se dispôs a receber a nossa equipa de Reportagem somente no seu local de trabalho, das 7:30 as 15:30 horas. Por volta das 14 horas, fretamos uma viatura e nos dirigimos ao Centro de Saúde de Doane a toda a velocidade. Porém, já no local, a médica mandou dizer que estava ocupada e nunca mais se dignou a dar “um sinal de vida”, até ao fecho desta edição.

Localização de Govuro

O distrito de Govuro está situado na parte norte da província de Inhambane, em Moçambique. A sua sede é a povoação de Nova Mambone. Tem limites geográficos, a norte com o distrito de Machanga da, província de Sofala, a leste com o Oceano Índico, a sul com o distrito de Inhassoro e a oeste é limitado pelo distrito de Mabote.

O distrito de Govuro tem uma superfície de 4 500 quilómetros quadrados e uma população estimada em cerca de 36 mil habitantes. O distrito está dividido em dois postos administrativos, nomeadamente Nova Mambone, que compreende as localidades de Nova Mambone e Govuro, e o posto administrativo de Save é composto pelas localidades de Jofane, Luido, Machacame, Pande.

Jorge Rungo

jrungo@gmail.com

Fotos de Jerónimo Muianga

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