Cinquenta cadáveres vão parar à vala comum todas as semanas no Cemitério de Lhanguene, em Maputo. A falta de dinheiro para realização de funeral condigno parece justificar este cenário assombroso.
A nossa Reportagem voltou à rua e apurou que alguns familiares, quando se apercebem que corpos de seus ente queridos já vão ao buraco comum, aproximam-se discretamente da viatura funerária e acenam para o último adeus.
Morreu a mãe de João Cabral. Porque a morte “não avisa”, encontrou o homem falido, sem tostão no bolso.
Cabral juntou familiares e apelou para a contribuição. Saíram uns 6 500 meticais. O amor pela mãe fez o homem caprichar no esboço da última morada desta. Evitou o caixão mais barato, optando pelo dos 5 600 meticais.
O dinheiro da contribuição familiar minguou logo no primeiro gesto. Por pagar faltava o transporte da urna ao cemitério (1 200 meticais).
Escusado será dizer que Cabral ficou sem dinheiro para “chapa”, tratamento da certidão de óbito e compra de comida para tanta gente que veio consolar a família neste momento de perda.
O homem começou a endividar-se. No dia do funeral, deslocou-se à morgue. Os funcionários exigiram uns 300 meticais para se lavar o corpo da falecida mãe.
Conta-nos que o tal banho que deram ao corpo da falecida mãe não passou, na verdade, de uma rega colectiva de corpos com uma mangueira de pressão como, de resto, são lavadas viaturas nas estações de serviço.
Entregou às roupas e lá se vestiu a mãe. Quando pensava que todo o sofrimento tinha acabado, entram em cena o motorista da funerária que, mesmo tendo recebido o dinheiro de transporte da urna ao cemitério, exige valor extra para não haver atraso.
Cabral paga pelas luvas do motorista e finalmente parte ao cemitério de Michafutene. Os coveiros também querem valor extra para prestação de serviço digno, sem atrasos.
Terminada a cerimónia, Cabral é homem endividado. Não tem mais dinheiro para suportar mais despesas, não sendo de estranhar o aviso que transmite aos presentes: tudo acaba aqui. Não haverá cerimónia de oitavo dia.
VOLTANDO À MORGUE
DO HOSPITAL CENTRAL DE MAPUTO
Existe provérbio em changana (língua do Sul de Moçambique) que diz: o boi não sente o peso de seus próprios chifres.
Rebatido aos humanos, o ditado popular defende que um pai não pode nunca ser incapaz de cuidar do seu próprio filho ou de alguém próximo na linhagem familiar.
Porque hoje vivemos tempos difíceis, constatamos situações bizarras de abandono de doentes nas unidades sanitárias, doentes que quando morrem ninguém os reclama, acabando quase todos por cair na vala comum.
Semana antepassada, visitamos a morgue do Hospital Central de Maputo. O camião funerário (o tal que também carrega lixo) estava recolhendo corpos não reclamados para o buraco comum.
De longe vimos familiares choramingando. Outros até se deslocaram ao cemitério para atirar uma flor ali onde dezenas de corpo são despejados de uma só vez, feitos sacos.
A explicação que obtivemos foi a seguinte: as famílias não suportam as despesas que Cabral cobriu com as exéquias da mãe.
Movidos por esta triste realidade, deslocamo-nos à algumas funerárias para apurar quanto custa enterrar um morto.
Apuramos que o caixão mais barato custa dois mil e quinhentos meticais, havendo urnas que vão de três mil até os cinquenta mil meticais. O valor do caixão não inclui o transporte da morgue ao cemitério.
Simulamos um falecimento de alguém na nossa família. O nosso repórter saiu da morgue com ar triste, quase chorando. Em pouco tempo viu-se rodeado de motoristas de várias agências funerárias que se acotovelam à porta do hospital.
A busca de clientes rebate sentimentos ao último plano, e a venda de serviços funerários é feita como se se fizesse promoção de preço de rebuçados.
O repórter é empurrado de um lado para o outro. Várias opções são colocadas. Porque o suposto familiar devia passar por Xipamanine para última despedida, cobraram 1200 adicionais pelo transporte.
Quanto à urna disseram: “Para ti não vale a pena comprar a de preço baixo. Leva esta de 5. 600 meticais ou aquela de 12 500. Já negociaste com o pessoal da morgue? Vê-la… o seu corpo do seu familiar pode ser maltratado…”
Parece encenação. Não é não. Temos fotografias que provam tudo isto. As funerárias têm agentes na porta do hospital e da morgue, agentes que exibem catálogos com vários caixões e vários preços.
Escusado será dizer que não compramos caixão nenhum, mas percebemos que quando a morte nos bate a porta acarreta consigo dor, e, como se isso não bastasse, candonga na prestação de serviços na morgue, nas funerárias e nos cemitérios.
Fomos à Funerária Moçambicana. O respectivo director, Manuel Camejo, disse à nossa reportagem que o preço dos caixões não é elevado. Dois mil e quinhentos e mil meticais (o preço mínimo) não é muito. O problema é que o povo não tem dinheiro, disse.
Explicou que, na verdade, a falta de dinheiro é que faz com que semanalmente 40 a 50 corpos vão à vala comum, abandonados pelas famílias.
O nosso entrevistado disse ainda que, movido por circunstâncias variadas, tem feito funerais sem exigir dinheiro. Famílias vem aqui chorar. Explicam que não têm dinheiro e eu ajudo. Mas não posso fazer funerais gratuitos para todos, sublinha.
Apareceu-me aqui um jovem que em pouco tempo perdeu a tia, o pai e a mãe. Tive que apoiar, rematou.
E lançou um apelo ao Conselho Municipal de Maputo para adoptar o modelo de funerais maometanos para evitar a vala comum. Os maometanos não metem corpo no caixão quando este vai à última morada.
Disponibilizou-se a oferecer duas urnas ao município para que sejam usadas apenas na transladação do corpo da morgue à vala comum. O município só pagaría o transporte ao cemitério, referiu, acrescentando: isto é mais decente do que entulhar corpos em sacos, um em cima do outro. Esta é a única alternativa para se acabar com a vala comum.
Município ensaia caixões de baixo custo
O Conselho Municipal de Maputo vai implementar programa de uso de caixões de baixo custo para munícipes de baixa renda. O objectivo é promover funerais condignos e minimização de despejos na vala comum.
Refira-se que no quadro da transferência de competências do Governo central aos municípios, estes passaram a velar pelos cuidados primários, na área de Saúde.
Foi neste âmbito que o município de Maputo passou a gerir as morgues de alguns hospitais, sob enorme pressão de cadáveres não reclamados.
Constatamos que há muita gente que vai a vala comum mesmo com familiares, disse-nos, visivelmente revoltada, Nurbai Calú, Vereadora de Saúde no Conselho Municipal de Maputo.
Explicou que alguns corpos não reclamados são de pessoas que quando em vida recebiam visitas nas unidades sanitárias. No dia da remoção do corpo, às vezes vemos alguns destes familiares a se despedirem, de longe, ressalvou.
A nossa entrevistada sublinhou que ao edilidade, sensibilizada por estas ocorrências, pretende criar condições financeiras para beneficiar famílias de baixa renda .
Salientou que o Município de Maputo já dispõe de uma viatura funerária, afecta à morgue do Hospital Central de Maputo que assegurará a transladação de corpos até ao cemitério.
Os caixões ecológicos, de baixo custo, são, numa primeira fase, fornecidas no quadro de uma parceria com uma empresa sul-africana. O Município de Maputo assegurará a continuidade do programa.
A nossa entrevistada revelou que brevemente serão instaladas câmaras frigoríficas na morgue existente no Cemitério de Michafutene, em Maputo, e corpos reclamados por famílias de baixa renda poderão ser conservados lá até realização de funerais condignos.
Texto de Bento Venâncio