Poder-se-á pensar que desde que reiniciaram os ataques armados na Estrada Nacional Número Um (EN1), na região de Muxúnguè, distrito de Chibabava, em Sofala, só se vive de tensão militar,
armas apontadas para os civis e um temor generalizado. Puro engano! Muxúnguè não está em guerra. A vida flúi e entra em ebulição exactamente quando a noite cai. O medo é sacudido para bem longe. Celebra-se a vida a cada metro quadrado.
Fomos pernoitar em Muxúnguè por contingências de uma viagem feita por via terrestre, daquelas que sabem a aventura por incluírem furos nos pneus, acabar o combustível com o autocarro em andamento, acelerações e travagens estonteantes, entre outros.
Partimos de Quelimane, na Zambézia e, mal abandonámos o terminal da ROMOZA, o autocarro começou a revelar que tinhas graves problemas de “saúde”. Mesmo assim, a tripulação arrastou-o o quanto pôde até chegarmos ao interior da província de Sofala, mais concretamente na entrada do Parque Nacional da Gorongosa (PNG). Ali, o veículo parou e o motor ficou “mudo”.
Porque nestas circunstâncias todos simulam entender de mecânica, alguns passageiros aventaram a possibilidade de se tratar de uma avaria grave, dados os “soluços” que ocorreram antes da paragem final. Depois de um mexe aqui, aperta ali, espreitadela cá e acolá, a tripulação disse, sem vergonha na cara, que o autocarro estava sem um pingo de combustível.
Os passageiros começaram a soltar a língua chamando aquele automobilista de desleixado e irresponsável, pior porque o cenário em redor, composto por uma densa floresta, não deixava ninguém confortável.
Ademais, a placa de entrada do PNG estava ali ao lado, o que fazia crescer a ideia de que poderíamos estar a ser observados por algum animal feroz e faminto de tipo leão, leopardo ou hiena, que poderia estar a vaguear perdido do resto da manada e do respectivo “habitat”. Os mais pessimistas exigiam uma solução rápida para que não fôssemos “vítimas de…bandidos armados.”
No desespero alguns sentaram-se no chão e os que transitavam para norte ou sul abrandavam a marcha para entender o que teria acontecido. Uns perguntavam se “houve algum ataque”, outros queriam saber se houve algum acidente, enfim. Aliás, um grupo de turistas que abandonava o PNG passou por nós com rostos prenhes de curiosidade, mas seguiu o seu rumo sem mover palha em nosso benefício.
Tínhamos de esperar pelo ajudante da tripulação, que entretanto apanhara uma boleia para ir até à vila do distrito de Gorongosa adquirir uns 40 litros de diesel que nos permitiriam seguir viagem até Inchope. Ali sentimos na pele que “a espera enerva”, como bem diz o adágio. Os minutos pareciam estar congelados.
Quase todos os grupos, que se formaram por acaso, trocavam impressões sobre a possibilidade de surgir um leão e atacar-nos mas a grande maioria temia mais pelo aparecimento de homens armados da Renamo que, por vezes, assaltam carros naquelas paragens.
Cada ruído merecia a nossa total atenção. “Não vá o diabo tecê-las”, era a nossa prece. Nisto, dois carros novinhos da Polícia da República de Moçambique (PRM), cada um ocupado apenas pelo seu motorista, pararam. O homem que guiava o primeiro carro procurou pelo motorista do nosso autocarro e foram conversar longe. Pelos gestos ficou claro que estava a adverti-lo do perigo que os passageiros corriam naquele local. Depois partiram em direcção à vila de Gorongosa.
A seguir, um automobilista de origem asiática, que ia em direcção ao norte, gritou para nós: “Estão lixados, deste lado vem Dhlakama e desse lado vem leão” e lá se foi deixando-nos com o pânico adensado no meio daquela floresta.
Uma noite em Muxúnguè
Algum tempos depois apareceu o ajudante carregado de bidões e todos respirámos de alívio ao ouvir o motor roncar novamente. Embarcamos às pressas e rumamos em direcção ao sul, pois o nosso destino estava claro: Maputo.
Entretanto, poucos quilómetros depois da vila do Inchope o motorista anunciou que pernoitaríamos em Muxúnguè, porque a coluna das Forças de Intervenção Rápida (FIR) já tinha partido e não podíamos nos aventurar sozinhos feitos uns loucos.
“Se os homens armados da Renamo entendem atacar esta noite estamos perdidos. É desta que passamos para a história”, pensamos. A certeza de chegar ao nosso destino com saúde e vida esfumou-se por algum tempo e, inconscientemente, aguçámos a audição e visão para ver de onde a morte chegaria.
Como é natural nestas circunstâncias, lembramo-nos dos discursos inflamados vindos das hostes da Renamo, que há bastante tempo vem enunciando que pretendia dividir o país a partir do Rio Save, exactamente a uns quilómetros de Muxúnguè. A alma adoeceu e amaldiçoamos a ideia de embarcar naquela viagem.
Entretanto, mal chegados àquela vila percebemos que a população há muito que virou as costas à querela militar entre o Governo e a Renamo, que já resultou em mortes e destruição de viaturas de civis.
Por ali, a circulação em coluna escoltada pela Polícia de Intervenção Rápida (FIR), que acontece desde o raiar do sol até ao princípio da noite, deixou de ser sinónimo de ameaça de guerra, dada a tranquilidade com que a vida segue o seu rumo.
Quando a noite cai, autocarros, camiões, camionetas e viaturas ligeiras provenientes do norte e do sul concentram-se ali e os seus ocupantes desembarcam para desentorpecer os músculos e encontrar repouso. Em poucas horas a vila fica apinhada de gente de todas as origens e destinos. Come-se, bebe-se, fazem-se rodas para uma desinteressada cavaqueira.
O comércio ambulante e em bancas fixas fica animado e nos interrogamos. “Isto é que é o dito Muxúnguè?” Os comerciantes não perdem a oportunidade de vender mais e mais aos passageiros e automobilistas que ali pernoitam pois, ninguém se atreve a seguir viagem para sul ou para norte sozinho. Todos obedecem à máxima popular que reza que “mais vale prevenir do que remediar”.
Negócio do medo
Com as coisas postas desta maneira, muitos mergulham na vida nocturna que aquele destino oferece. Acomodam-se em estalagens formais e improvisadas, comem e bebem de tudo que as barracas fornecem e, como é de esperar, o ambiente é floreado pelas profissionais de sexo que, pelo jeito, têm clientela assegurada pela força das circunstâncias.
Enquanto percorremos a EN1 a pé para compreender como se vive por ali, ouvimos um jovem viajante questionar “por que é que temos que esperar até amanhecer para ir em coluna, se aqui já não há guerra?!” É que, a tranquilidade que por ali se vive cria a certeza de que o espectro da guerra foi “morto e enterrado”.
Ao contrário de outros pontos de controlo policial criados ao longo da EN1, como é o caso de Nhamapadza, no distrito de Marínguè, onde os vendedores ambulantes são proibidos de se aproximar das viaturas em trânsito, em Muxúnguè vende-se e compra-se tudo. E há quem ande feliz por este ano poder ganhar mais com a venda de ananás que nos últimos vinte anos.
“Não posso dizer que o susto de guerra é bom, mas este ambiente de insegurança ajuda-nos a vender um pouco mais porque quem chega aqui ao princípio da noite é obrigado a pernoitar e é óbvio que vai querer comer e beber antes de se deitar”,diz sorrindo uma vendedeira de barraca, já cansada de atender tantos clientes, alguns dos quais visivelmente ébrios.
Por razões económicas, alguns “pregam o olho” reclinados nos bancos dos autocarros mas para saborear este pequeno território só mesmo acordado e a circunvagar pelas barracas. Aliás, lá mais ao fundo, longe das tendas dos agentes da FIR, há barracas-discoteca onde jovens locais e forasteiros “sacodem o esqueleto” com engates à mistura.
A noite passa facilmente, mesmo com o frio de rachar que se faz sentir.
Naquelas discotecas assiste-se de tudo, desde grandes bebedeiras até cenas de pancadaria, envolvendo prostitutas que disputam clientes. Curiosamente, a polícia pouco ou nada faz perante estas pelejas. Estão ali por causa dos homens armados da Renamo e pelos vistos não querem perder o seu foco.
Diante de um forasteiro jovem, aquelas raparigas não escondem o seu descaramento e manifestam a sua disponibilidade na maior “cara de pau”. Revelam tranquilamente os valores que cobram, escolhem os locais para a consumação dos actos, garantem que não são portadoras de doenças venéreas e se dispõem a regatear o preço. É mesmo negócio.
O ambiente nocturno é tranquilizado pela ausência de polícia uniformizada nas ruas e muito menos de homens armados, estes últimos afugentados para bem longe pelos agentes da FIR. Quem domina a noite de Muxúnguè são jovens que se divertem à brava, quase sempre com garrafas e saquetas de bebidas alcoólicas à mão.
Enquanto esperámos pelo alvorecer vamos conversando e o tema central é a vida política nacional, mais concretamente se haverá mais guerra no país ou não. Cada um esgrime as suas convicções. Depois alguém entende questionar se os antigos guerrilheiros da Renamo, muitos deles já velhotes e aparentemente débeis, conseguiriam enfrentar e travar os jovens das Forças de Defesa e Segurança de Moçambique num confronto declarado.
Da mesa ao lado, onde até então a conversa girava em torno de negócios certos e falhados ouve-se alguém dizer: “atenção, o macaco velho pula mais e melhor que o macaco novo.” Olhamos com atenção para a mesa de onde veio a resposta e ficamos com a impressão de que poderíamos estar a dialogar com “macacos velhos” disfarçados de viajantes. Instintivamente, levantamo-nos em simultâneo e fomos procurar outro ponto para trocar ideias.
O dia amanhece com os elementos da FIR a se movimentarem de um lado para o outro, com as armas rigorosa e estilosamente empunhadas. Os carros blindados são postos em aquecimento, um pouco como acontece nos filmes de guerra. É a hora de preparar a coluna e arrancar para o Rio Save.
Em Muxúnguè ficam as “catorzinhas” e connosco seguem os “catorzinhos”, alcunha dada aos jovens polícias e militares que cumprem suas missões ao longo da EN1 como quartel no Muxúnguè, que, afinal, não é outro país dentro de Moçambique. Na verdade, nunca existiu e nunca existirá um país chamado Muxúnguè.
Manuel Meque