No continente africano, a mulher continua sendo vítima de inúmeras injustiças em nome de crenças e tradições que vêm sendo passadas de gerações em gerações, apesar do desenvolvimento a vários níveis. Muitos são os conceitos que assombram a figura da mulher.
domingo conversou com o académico Michele Hansugule, do Centro dos Direitos Humanos da Universidade de Pretória, que falou do papel da mulher africana no desenvolvimento do continente e dos desafios que ela enfrenta na luta pela sua autoafirmação.
A Africa está a registar avanços a diferentes níveis, e tem se notado abertura de espaço para participação da mulher. Que desafios persistem para a sua plena valorização?
Ainda não é reconhecida a importância da mulher nas diferentes áreas no seio da sociedade. Essa interpretação mostra que a mulher africana não usufrui das mesmas oportunidades que os indivíduos do sexo masculino no acesso à educação, ao emprego, à terra e ao crédito bancário, por exemplo. Isso significa que ainda que se modernize esta sociedade, a mulher será sempre colocada em segundo plano comparado com o homem porque no continente africano persiste a mentalidade de que o lugar da mulher é na cozinha, que a mulher não deve estar na mesma posição que o homem ou não pode beneficiar das mesmas oportunidades que o homem.
Significará que não existe vontade política dos governos no sentido de promover mudanças, através de políticas que protegem a mulher?
Existem vários tratados e convenções para protecção da mulher, e a maioria dos países africanos ratificou. Contudo, o grande problema é que são pouco aplicados. A mídia reporta diariamente casos de violência dos direitos humanos das mulheres em diferentes países africanos. Uma das dificuldades que o homem tem é de perceber que a mulher pode ocupar a mesma posição que ele porque tem capacidade para tal. A mulher é nossa mãe. É a mulher que nos traz ao mundo, faz-nos crescer, protege-nos, educa-nos. Mas quando crescemos esquecemo-nos tudo isso e criamos políticas machistas e complicadas que colocam a mulher em segundo plano.
De que forma se pode mudar este cenário?
A melhor forma de mudar esta realidade é reconhecer que a classe feminina tem potencial para criar um desenvolvimento sustentável na sociedade. Com base nisso estabelecer equilíbrio na atribuição de poderes ao homem e a mulher.
No que se refere às leis usadas nos países africanos, disse na sua exposição que os tribunais estão ameaçados pelas práticas tradicionais. Quer comentar?
Todas as decisões dos tribunais especialmente no nosso continente são fundamentalmente leis forenses. Nossas leis advêm das leis coloniais e estas não têm a concepção africana de justiça. Por exemplo vários países africanos assinam acordos de fim de conflito e um tempo depois retornam ao mesmo conflito porque não respeitam o acordo, a assinatura. Em África o juramento é mais forte e tem maior impacto que assinar um papel, porque nós acreditamos no juramento. Para nós africanos o acto de assinar não tem significado. Quantos africanos entendem o que é a justiça, o que são leis? As pessoas são ditas apenas que estão erradas porque feriram a lei e que vão cumprir penas de 5 ou 20 anos.
E como são solucionados os problemas na concepção africana de justiça?
Quando um líder tradicional reúne as partes para resolução de um conflito, muitas vezes o erro não volta a ser cometido porque a nossa forma de resolução privilegia primeiro a persuasão e a negociação. Ela não impõe, convence-lhe primeiro do porquê se está errado. Mas nós não aplicamos as nossas leis tradicionais porque somos produtos da colonização. Lembro- me que quando fui professor na Suíça a primeira crítica que recebi dos meus estudantes, foi quando lhes disse que a Zâmbia tornou-se independente em 1964, e que a lei que usávamos era inglesa. Eles questionavam porque é que nos considerávamos independentes se ainda usamos a lei de quem nos colonizou.
Uma das leis por que a mulher africana luta até hoje é a igualdade de direitos. Alcançaremos um dia essa igualdade?
Uma vez os líderes tradicionais perguntaram-me porque é que eu trazia o conceito de igualdade entre homens e mulheres. Disseram que não queriam igualdade porque a mulher nunca será igual a um homem e vice-versa. Eu disse-lhes que já me sentia satisfeitos pelo facto deles sentirem-se desafiados e terem uma mente crítica. Então pedi que me dessem um conceito adequado. Da explicação que eles me deram, o que eles querem chama-se equidade, o que na sua essência é igualdade.
Na sua apresentação falou que já foi vítima de uma prática tradicional e obrigado a assumir a sua cunhada como sua esposa, quer partilhar esse facto?
Quando meu irmão mais velho faleceu, eu estava na Europa a formar-me. Tive que retornar a minha comunidade para acompanhar a cerimónia. No fim de tudo, os líderes tradicionais reuniram-se comigo e disseram que consultaram os ancestrais e eles disseram que eu é que devia assumir a minha cunhada como esposa. Recusei-me, porque fui criado pelo meu irmão e pela minha cunhada. Ela era como uma mãe para mim. Eu estaria a ferir a dignidade dela como mulher e a minha também. Disseram que eu estava a estudar coisas dos europeus e me estava a esquecer da minha tradição. Expliquei que até na tradição europeia existem aspectos negativos e positivos, assim como a nossa também tem.
Estamos a desenvolver à custa da cultura dos outros povos como o europeu?
Fomos colonizados um dia por isso, temos alguns conceitos que não são puramente africanos. Mas é preciso entender que as tradições são diferentes. Cada povo tem a sua tradição. Hoje quando uma mulher perde o seu marido deve vestir roupa preta. Mas a pergunta é: Quem disse que quando se morre devemos vestir roupa preta? Importamos esta cultura.
Texto de Luísa Jorge
luisa.jorge@snoticicas.co.mz
Fotos de Adebayo Okeowo