Abandonadas à sua sorte, os meninos da rua desde cedo aprendem a vida de adultos num cenário quase selvagem e num mundo sem regras. Não conhecem os seus direitos e nunca ouviram
falar deles. A propósito do dia 1 de Junho, domingo esteve com estas crianças e procurou saber de que forma passaram o Dia Internacional da Criança. Invariavelmente dão testemunhos de sofrimento que aparentam não ter fim.
No entroncamento das Avenidas Samora Machel e Josina Machel, cidade de Maputo, destaca-se um prédio inacabado que virou “hotel” para os “meninos de ninguém”.
As crianças vivem ali ao Deus dará, longe do conforto familiar e da sociedade. Estão arremessadas à desgraça absoluta num cenário temido pelos circunstantes que têm a viva sensação de que os residentes do “hotel” podem ser bandidos capazes de semear terror na calada da noite.
Nós também tínhamos a mesma ideia acerca daquelas crianças que experimentam na carne a vil expressão da pobreza e do abandono. Descobrimos, contudo, que são seres humanos igualmente com sonhos. Esperanças.
Em conversa com a nossa Reportagem revelam o outro lado de vidas que bem podiam ter outro rumo não fosse a atitude da Polícia que não os compreende.
Dizem eles que, vezes sem conta, alguns agentes correm com eles daquele local, numa maratona que inclui pulos, tipo perseguição de polícias e ladrões.
“Aqui não se tira fotografias. Quem são vocês? O que querem? Dizem que são jornalistas, então, mostrem documentos que provem isso”, assim mesmo a equipa de Reportagem do domingofoi recebida no “hotel” ou “Praça”, como os próprios denominam aquele prédio inacabado.
“ O nosso maior inimigo é a Polícia. Os polícias chegam aqui, perseguem-nos e recolhem-nos para a esquadra, onde, por vezes, no mesmo dia, nos libertam. O mais irritante é de nos roubarem comida. Se vierem agora, se apoderam desta carne de porco que estamos a assar. Não sabemos porquê não andam atrás dos ladrões de carros que pululam por esta Baixa toda”, dizem os mais velhos com cara de poucos amigos.
Ficamos a saber que as operações da Polícia naquele lugar têm sido feitas à luz de dia, alegadamente porque os agentes receiam represálias durante à noite.
“Oiçam, senhores jornalistas, os polícias são muito espertos. Só nos atacam de dia, porque sabem que de noite aqui não piam. De noite aqui ninguém entra que não seja da casa”, quem o diz é um indivíduo que aparenta ser perigoso, capaz de tudo.
A moça encarregue da panela ao lume intervém na conversa dizendo que “cuidado, jornalistas são amigos de polícias! Onde estão uns, os outros estão próximos”.
Para não sermos “corridos” do local, explicamos que não éramos da Polícia. A mesma moça, provavelmente esposa de um menino no interior de um quarto de papelões, estende a mão para receber o documento de jornalista que atentamente lê e confirma que estava a falar para a Imprensa.
“Idem falar com aquelas que são crianças. Connosco não. E nem experimentem tirar fotografias”, o alerta é bem vibrante, e é ordem expressa.
CONVERSA COM MENINOS DE NINGUÉM
Dirigimo-nos às crianças e com elas tiramos fotos para a posteridade num cenário “apimentado” pelo sabor da carne de porco a “rodopiar” no lume. Sentados no chão com as crianças tiramos o testemunho da sua história feita de farrapos e papelões, sobressaindo o frio no estômago, induzido pelo abandono claramente visível.
Junto à nossa equipa de Reportagem os meninos tiveram o prazer de comer pão com ovo frito e salada. Ficamos a saber que os mais novos se alimentam com o que resta dos mais velhos, em troca de prestação de serviços, como ir vender ou comprar cigarros. Seguem depoimentos à parte.
Não me sentia bem
vivendo com meus país
– Eduardo, 14 anos
Eduardo tem 14 anos. Está deitado à espera de comer qualquer coisa que não tem. Está com medo de falar muito. Diz que queria emprego, por isso passou a frequentar a Baixa, saído do Bairro de Chamanculo.
“Parei aqui porque estava à procura de emprego. Já não me sentia bem a viver com a minha mãe e o meu pai no Chamanculo. Estava a frequentar a sétima classe na Escola 4 de Outubro”, explica.
Questionado sobre a proveniência do dinheiro com que compram alimentos, Eduardo diz “vendemos cigarros.”
Nega que consumam drogas, como a soruma, mas confessa que consomem bebidas, com destaque para “Tentação”.
Depois falou duma realidade que por vezes o faz pensar em morrer cedo. “Apetece-me morrer. As mulheres aqui querem que eu ande com elas e eu não quero. Estou a viver momentos difíceis da minha vida por causa das mulheres que não as quero. Estou a viver aqui desde 2004”
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Um dia gostaria de sair daqui!
– Zacarias, 12 anos
Zacarias é um menino calmo. Há um ano que vive no “Hotel” da Baixa de Maputo. Vivia na Matola.
“Eu vivia na Matola. Não estudava. Tenho doze anos de idade” identifica-se Zacarias, já levantado do chão de cimento não liso onde dormia com a sua malta, depois de regressados da busca de sobrevivência na Rua Araújo, onde nas noites os mais fortes protegem as prostitutas que pululam pela Baixa toda.
Qual é o vosso ganha-pão? – uma pergunta que Zacarias responde dizendo que “aqueles grandes é que nos dão dinheiro. Buscamos água e outras coisas para eles”.
Zacarias também teme que a qualquer altura a Polícia apareça e entrem em fuga, pulando como macacos desesperados. “Os polícias é que nos chateiam. Costumam vir correr connosco. Levam-nos para a esquadra e depois nos libertam. Um dia gostaria de sair daqui, ir ficar em casa. A minha mãe morreu. O meu pai está vivo, é André, trabalha lá na Matola”.
Um seu amigo que o escuta diz que não é verdade que Zacarias queira voltar para casa, porque “ nenhum de nós deseja retornar à casa. Uns podem querer ir ficar num internato, mas nunca de lá para casa”
Vivia com a minha avó
– João, 10 anos
João é um miúdo esperto, que diz ter dez anos, mas parece ter mais. Fala deitado e por vezes coberto de qualquer coisa que chama de manta. Interessa-se pela conversa quando ouve falar de pão e ovos.
“Vivo aqui há três anos. Quem me trouxe é este puto”, aponta para um colega que vai sonecando.
João diz que também veio da Matola e que só fez a primeira classe. “Na escola só fiz a primeira classe. Vivia com a minha avó, que, infelizmente, já faleceu. Os meus pais vivem por aí.”
Da conversa com o João percebe-se que ele não tenciona voltar à casa. Quem o quer fora dali, que o leve para onde quiser menos para onde vivem os seus país.
“Estou bem aqui. Um dia gostaria de ser capitão de uma grande equipa de futebol”,sonha João, que na companhia de outros tem jogado futebol ali dentro do “Hotel”, que se assemelha a uma lixeira que espalha mau cheiro por todos os lados.
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Sou disputado
por dois irmãos
– Dércio, 15 anos
Dércio começa por nos contar que o seu pai não lhe dava dinheiro para lanche escolar e que bebia muito. Depois conta-nos a sua triste situação, que resulta do conflito amoroso entre o seu pai (tio) e o seu tio (pai).
“Vivo aqui há dois anos. Desentendi-me com o meu pai. Ele não dava dinheiro de lanche e preferia beber. Mas o que me fez fugir de casa não é isso”. Ficamos calados e atentos para ouvir na primeira pessoa o seu dilema.
“Eu sou vítima de conflito entre o meu pai e o irmão dele. Aconteceu que o meu pai engravidou a cunhada, que é a minha mãe. Depois de lobolar aquela que é a minha mãe, o meu tio deslocou-se para África do Sul. Aqui atrás, o seu irmão ficou a engravidar a sua mulher. Quando regressou da África encontrou a minha mãe grávida da qual nasci. Na verdade, eu sou filho daquele que engravidou a cunhada, mas aquele que lobolou a minha mãe diz que eu sou filho legítimo dele. Entre os dois se instalou uma confusão que não termina. Minha mãe fugiu e eu também. Espero que tenha entendido. O meu tio diz que sou filho dele e o meu pai diz que eu não sou filho do irmão dele.”
Quero ser “estrela” de futebol
Anderson tem algo a dizer, mas não diz que também quer falar. Está em pé a ouvir o que os outros dizem. Fica desesperado. Face a face com o jornalista, ouve dizer “e tu como chegaste aqui?”
“Sai do Bairro Patrice Lumumba para Baixa à procura de emprego, ao mesmo tempo que vendia qualquer coisa. Por vezes costumo ir visitar a minha avó. Não sei onde estão os meus pais. Estou bem aqui, a não ser que me levem para um sítio melhor. Em casa de familiares não quero.”
Anderson tem um sonho, que, até, é de muitos meninos como ele.
“Gostaria que me levassem para um clube de futebol. Gosto muito de jogar futebol e sei que sou talentoso. Eu ganharia muito dinheiro a jogar futebol. Gostaria que primeiro fosse do Desportivo de Maputo. Jogaria muito bem no ataque. Admiro Fernando Torres”.
Félix Cossa: menino adulto
Félix Cossa, 16 anos , iniciou o biscate de lavagem de viaturas na Baixa da cidade de Maputo há sensivelmente cinco meses. Esta foi a alternativa que encontrou para apoiar a renda familiar, enquanto busca o sonho de qualquer criança de sua idade: estudar.
Há seis meses, saiu do distrito de Macia, na província de Gaza, na companhia de sua irmã de 19 anos e veio parar em Maputo a convite do seu tio (irmão da mãe) com quem vive no bairro de Magoanine.
Em conversa com a nossa Reportagem, o menino Félix conta que a sua vida nunca foi um “mar de rosas”. Sua infância transformou-se em calvário logo aos dez anos de idade, quando perdeu o pai, em 2007.
Daí em diante a realidade no seio familiar mudou. Com a 8ªclasse, concluída no ano passado, Félix viu-se obrigado a abandonar os estudos, para experimentar vida de adulto.
“Tive que parar de estudar, quando meu tio paterno (que ajudava nas despesas de casa) deixou de assumir as contas sobretudo as escolares. Acho que ele já não tinha dinheiro”, desabafou.
Voltar ao banco da escola é uma das esperanças que alimenta dentro de si, mas enquanto essa realidade não se materializa afirma que continuará ajudando nas despesas caseiras.
Guarda algumas lembranças da Escola Secundária da Macia, onde iniciou o ensino básico. Das diferentes disciplinas revela que sempre simpatizou com os números. “Gosto de Matemática”, salienta.
Félix revela-se menino algo amuado, tímido, contudo a vida está a ensiná-lo a andar mais depressa. Ao longo da conversa com o domingo, interrompeu várias vezes o diálogo para correr atrás de clientes. Umas vezes para indicar algum ponto para estacionamento de viaturas e, amiúde, para proceder a cobrança do seu serviço.
Disse que a correria por ali é intensa. De chinelos de borracha, camisa de mangas curtas, calças azuis e um sorriso escondido, lavava uma viatura enquanto conversava com a nossa Reportagem.
“Saio de casa às 6 horas da manhã com o meu tio que também é polidor. Chegamos aqui às 7 horas e vou para o meu ponto de serviço”, disse, acrescentando quenos cinco meses que ali se encontra a labutar já conquistou clientela considerável.
“Já tenho alguns clientes fiéis por aqui e quando eles não têm dinheiro para pagar no momento, fazem-no no dia seguinte”, salientou.
Nos melhores dias, o menino Félix amealha diariamente 300 meticais, valor que é parcialmente investido nas refeições.
Devido ao constante contacto com a água e ao efeito do frio, o menor possui algumas rachas nas pontas dos dedos. Interrogado sobre as mesmas, atou as mãos nas costas e afirmou que não sentia nenhuma dor.
Segredou-nos que para além de ajudar na geração da renda familiar, o dinheiro que ganha no biscate está a alimentar uma conta-poupança. De quando em vez, diz dar-se ao luxo de comprar algumas peças de roupa nas lojas.
Questionado a respeito do custo da roupa, remata: “Não gosto de xicalamidade, prefiro juntar mais dinheiro e comprar roupa nova”.
Disse ainda que nada sabe a respeito dos direitos da criança, mas revelou interesse de ouvir alguém falar sobre os mesmos.
Em relação ao Dia Internacional da Criança, ontem assinalado, afirmou que não sabia onde iria passá-lo: se no seu local de trabalho ou em casa.
Manuel Meque e Luisa Jorge
Fotos de Jerónimo Muianga e Inácio Pereira