– Maria Teresa Carlos, duramente espancada e mutilada pelo próprio marido
domingo propõe-se a narrar páginas da vida de Maria Teresa Carlos, uma cidadã moçambicana de 59 anos. Alguns episódios da sua história assemelham-se a trechos de filmes de terror.
São factos ocorridos na vida real, que engrossam a lista de casos de violência doméstica nas famílias moçambicanas. Ela foi duramente espancada e mutilada com golpes de catana, que resultaram na perda dos membros superior direito e inferior esquerdo. Segue-se a sua triste estória.
Natural de Inhambane e residente em Morrungulo, distrito de Massinga, Maria Carlos teve uma infância comum numa criança do campo, em plena década de 50 do ano 1900. Ingressou tardiamente numa instituição de ensino, “talvez aos nove ou dez anos”, e estudou na Escola Primária São José de Morrungulo, hoje Escola Primária Completa de Morrungulo. Nessa instituição, a nossa personagem real frequentou da Pré-Primária até à 3ª classe.
Feita esta etapa, foi obrigada a parar de estudar por dificuldades financeiras dos seus pais, já que se tornou necessário transferi-la para Mangonha, a vinte quilómetros de Morrungulo, onde poderia avançar na sua formação, fazendo as classes seguintes.
Azar para Maria Carlos, pois as portas do abismo abriram-se a partir daquele momento. Restou-lhe um destino que transformou drasticamente a sua vida: a ida ao lar.
Decorria o ano de 1973, quando Maria Teresa Carlos, na altura com dezassete anos, tornou-se a escolhida de uma família originária da Massinga, lá para a zona do Rio das Pedras. O culpado desse destino foi um primo do homem que viria a se tornar seu marido. “O meu cunhado conheceu-me cá em Morrungulo, achou-me bonita, prendada, por essa razão propôs ao seu familiar que se casasse comigo”.
Conforme manda a regra, a família Matimbe apresentou-se e lobolou, ao que se seguiu a ida daquela mulher ao lar.
Uma vez que o seu marido vivia e trabalhava em Maputo, Maria percorreu quilómetros em direcção ao tormento. “Passei a viver em Maputo, no Bairro da Matola, em casa da minha cunhada que já acolhia o meu marido há algum tempo, já que até aquele momento ele não tinha residência própria”.
Mais tarde, o novo casal adquiriu um terreno na Cidade da Matola, na zona da antiga Empazol. Lá, construiu uma moradia, ao mesmo tempo que chegava o fruto dessa união: “Fiquei grávida, dei à luz a minha primeira filha, em 1974, que veio a falecer dois anos depois”. Nesta altura já se encontravam a residir no ninho por eles criado, e em 1977 veio ao mundo a segunda filha. Até aqui, nada fazia prever que o porvir seria cruel na vida desta senhora.
INÍCIO DO REBOLIÇO
Já no seu lar, Maria Carlos dedicava-se, unicamente, aos cuidados da casa, do marido e da filha. Seu marido, Belarmino Matimbe, não permitia que ela se ocupasse com outros afazeres que pudessem trazer algum ganho financeiro. “Não me deixava trabalhar. Somente ele metia dinheiro em casa. Trabalhou na Mobil antes de ingressar na tropa colonial. Mais tarde passou para a nossa tropa, na altura do governo de transição”. Após a desvinculação do exército, Belarmino foi colocado no Hospital Militar, em Boane, onde trabalhou como enfermeiro.
Enquanto isso, Maria contraria-o ao se empenhar na tarefa de trabalhar a terra ao seu redor, uma actividade que trouxe benefícios a olhos vistos. Rendido a esse sucesso, seu marido opta por se desligar do seu serviço para alinhar, lado a lado com a mulher, na actividade agrícola.
O trabalho decorria de forma satisfatória. As colheitas eram boas. Cultivava-se a cenoura, cebola, alface, o nabo, alho, entre outras culturas. Não faltava o pão em casa. Vieram mais filhos: em 1978 a terceira filha, em 1980, um rapaz, em 1983, mais uma menina e em 1987, a última.
Sucesso no trabalho, início de insucesso no lar, é o que se viveu a partir dos anos 80. “Ele era chato, batia em mim até por nada”.
Maria suportou. “Era pelos meus filhos”, aliás, eles também sentiam na pele a mão pesada do pai.
Aquele chefe de família era uma verdadeira personagem de filmes de terror. Certa vez, desceu a mão em sua esposa de forma “inesquecível”. O motivo era fútil. “Foi por me ter ausentado por algumas horas de casa, para cumprir a bicha no tempo do Abastecimento (consumo racionalizado na década de 80).Chamou-me de burra e irresponsável. Chegou a ordenar que eu saísse da nossa casa e da vida dele. Não aceitei. Fiz ouvidos de mercador”. Horas depois, era o marido de Maria a contradizer-se. “Ele recuou e decidiu-se pela minha permanência em casa. Por ingenuidade e por um amor sem sentido, fiquei”.
Tratava-se de um querença inexplicável, que passou a ser reprovada, inclusive, pela família do próprio marido. “Sugeriram que eu saísse do lar, quando certa vez bateu em mim com um objecto que deixou o meu osso exposto”. Este seria o sinal de que o vilão desta história não estava para brincadeiras. Por esse motivo, Maria Carlos tomou uma decisão: “pedi a autorização do meu marido para ir passar uns dias em casa dos meus sogros”.
Tratava-se de uma estratégia de fuga, no entanto desvendada pelo marido. “Ele suspeitou que eu quisesse fugir. Estranhamente, mostrou-se muito preocupado, demonstrou arrependimento e dispôs-se a fazer uma declaração pelo próprio punho, afirmando que jamais me violentaria. Dispensei o documento, confiei nele”.
Contudo, o arrependimento não tardou a chegar. As torturas recomeçaram quando o marido de Maria congeminou que uma das suas filhas, cujas feições físicas favorecem sua esposa, era fruto de uma traição. “Ele inventou uma história, segundo a qual eu tinha um caso extra-conjugal com alguém da minha família e que a nossa filha mais nova, que é excessivamente parecida comigo, era fruto desse caso. Certo dia, quis fazer o ajuste dessa conta. Trancou-me no quarto e jurou que espalharia o meu sangue para todos os lados”.
Maria estava entre a espada e a parede. Mas, a dado momento, libertou-se desta condição ao submeter um pedido que, estranhamente, foi despachado favoravelmente: “pedi que me deixasse ir a casa de banho. Ele aceitou. Abri a porta que levava à parte externa da casa”. Por alguns minutos, ficou livre. Contudo, foi sol de pouca dura. Ela assim o quis. “Fui e voltei. Preferia morrer em casa. Não fugi”, justificou-se.
De qualquer modo, tudo indica que aquele não era o dia escolhido pelo diabo para expelir o seu veneno letal, de tal forma que, transformado momentaneamente, o próprio marido de Maria ajoelhou-se, “para agradecer a Deus por não ter derramado sangue conforme tinha prometido”.
Era um homem envolto em contradições, irritado com o seu mundo. Na esteira disso, sua esposa decidiu-se pela mudança.
FUGI NA CALADA DA NOITE
Maria contou que certo dia, um acontecimento tão-somente banal como chamar o seu filho de tio tirou o seu marido do sério. Ela foi notificada a justificar o motivo pelo qual chamara seu menino de tio. “Meu marido ficou irritado por isso. Na verdade, eu chamava o meu filho de Tio, por ser “xará” de um membro da família”. Esse elemento da família era,curiosamente, primo do Belarmino. A paga por esse cometimento ficou marcada para a noite. Para escapar de mais uma sessão de tortura, Maria preparou a sua trouxa e escondeu-a nos arredores da sua residência. Uns trocados resultantes de pequenas vendas tornaram possível a sua liberdade. “Simulei que ia ao banho depois de servir o jantar aos meus filhos e ao meu marido. Desapareci dali directamente para casa do meu tio. Quando ele se apercebeu perseguiu-me. Na altura foi sugerida uma reunião com a participação dos membros das duas famílias: a minha e a dele”. O encontro foi realizado, no entanto, o resultado não alterou a decisão daquela mulher. O retorno à Inhambane, em 1994, foi inevitável.
Por algum tempo, experimentou uma nova vida, longe da violência, do terror. Nesse entremeio,“ele tentou aliciar-me para que eu voltasse a viver com ele em Maputo. Mandava-me cartas, dinheiro, comprava-me roupa…”, até que em 1995, Maria Carlos resolveu visitar seus filhos em Maputo, mais concretamente na toca do lobo (residência do seu marido).
AFIAR CATANA
PARA “MATAR UM PORCO”
Após viver alguns momentos de relativa acalmia, Maria Carlos voltou a Maputo para visitar os seus filhos que haviam ficado com seu marido, quando da sua decisão de se afastar dos maus-tratos. Com anuência do seu tio,“fui a Maputo para ver os miúdos. À minha chegada, vivemos momentos de felicidade pura”. Foram momentos de alegria apenas entre Maria e seus filhos.“O meu marido simplesmente fitava o olhar em mim e não me dirigia palavra. Nesse dia, ao cair da noite, dormi no quarto dos meus meninos”.
Ao amanhecer, mãe e filhos cumpriram um programa que tinha sido traçado. “Fomos à Baixa da cidade de Maputo, eu precisava fazer fotos para a emissão do Bilhete de Identidade”. Enquanto isso, o marido de Maria empenhava-se em criar condições para a ocorrência de cenas macabras normalmente vistas na ficção: mandou afiar uma catana numa máquina sob alegação de que queria matar um porco. “Nzi lava kuya dhaya khumba” (pretendo sacrificar um porco).
Sem saber o que lhe esperava, Maria regressou, no período da tarde, à casa do marido na companhia dos seus filhos.Tempo depois, “preparou-se o jantar e, após o cumprimento dessa refeição, meu marido ordenou que os nossos filhos se recolhessem, sob a alegação de que queria ter uma conversa comigo”. Os meninos obedeceram. Houve, a partir desse momento, uma troca de palavras entre marido e mulher. Era o início do calvário: “Meu marido puxou por um objecto e desferiu golpes cortantes em mim”. Era a catana preparada para “sacrificar um porco”. Tratava-se, afinal, de uma metáfora. O porco foi substituído por Maria. E diga-se em abono da verdade, lá no terreno, o instrumento funcionou sem deixar defeitos. Abriu feridas insanáveis na vida desta cidadã. Feridas físicas e emocionais.
Maria viu a sua mão voar, ao mesmo tempo que um jacto de sangue cobria a sua cara. “Cortou-me em várias partes do corpo com recurso à catana. Era um acto contínuo. De repente, vi a minha mão a voar e um jacto de sangue cobriu o meu rosto. Até os meus filhos tomaram esse banho de sangue”. O martírio não terminou aí. Aquele homem resolveu decepar outro membro da mãe dos seus filhos, a perna. “Nesse momento caí. Mas não me apercebi imediatamente que tinha ficado sem a perna”.
Ciente dos estragos que havia feito, Belarmino Matimbe encetou uma fuga deixando toda a gente aterrorizada e preocupada em prestar socorro à vítima.
O grito foi dado na esquadra mais próxima, localizada na cidade da Matola. Mas passado algum tempo, uma viatura particular prontificou-se a levar a vítima ao hospital. Enquanto se faziam essas movimentações, a vítima agonizava. “Eu sentia muito frio, sede e intensas dores. Foi terrível”, contou.
Para espanto de todos, o criminoso havia corrido para a mesma esquadra, onde se entregou e declarou que tinha matado a sua mulher. A polícia tomou as devidas precauções. Manteve-o preso.
Nessa altura a sua mulher já estava sendo transportada para o Hospital Central de Maputo, onde por longos meses lutou pela vida e pela sua recuperação.
VIDA DIFÍCIL
A cura dos ferimentos e a recuperação dos movimentos dos membros que lhe restaram (um braço e uma perna) levou mais de seis meses. “Após a alta hospitalar no processo de cura das fissuras, durante aproximadamente três meses, cumpri diariamente, durante pouco mais de três, exercícios de fisioterapia no HCM. Foi uma grande batalha, até que eu conseguisse pegar numa colher…”
Hoje em dia Maria vive em Inhambane e passa por dificuldades inerentes à sua condição física. Contudo, não se deixa vencer. Executa as tarefas domésticas com garra e determinação. A terra, fiel companheira, voltou a sentir a mão habilidosa de uma grande machambeira. Desta feita, somente uma mão é lançada à obra, de qualquer forma, suficiente para demonstrar quão se trata de uma mulher de fibra. “Vou à machamba, pego na enxada e trabalho a terra. Aprendi a utilizar a mão esquerda para várias funções. Em casa cozinho, lavo a minha roupa. Desenvolvi habilidades acima de tudo para ajudar a minha mãe que tem já uma idade avançada, no entanto, vezes sem conta é obrigada a auxiliar-me. Tem dias que o braço e a perna que me restaram não me deixam trabalhar. Doem muito. Chegam a inchar”. Maldição do destino. Maria, a bela moça e prendada, jamais imaginara que ao ser escolhida no longínquo ano de 1973 para se juntar àquele homem que, em algum momento julgou ser o amor da sua vida, estaria a promover a desgraça. Hoje, chora pela mutilação, mas sobretudo lamenta pela falta de justiça.
SENTENÇA NÃO CUMPRIDA
A vida de uma cidadã mudou drasticamente, consequência de um ataque cruel protagonizado pelo seu próprio marido. Depois de cometer o crime, Belarmino Abel Timbe foi preso e julgado.
Justificando a sua acção, afirmou que ao ver a sua esposa de volta, quando da visita aos filhos, julgou que quisesse ‘rouba-los’. Mesmo assim, a sentença ditou que este cidadão cumprisse 20 anos de prisão e pagasse um valor pecuniário como indemnização à vítima Maria Carlos.
Maria obteve esta informação de terceiros, uma vez que, por dificuldades de locomoção, não pôde chegar a tempo de experimentar o prazer de ouvir em que consistiria a penalização do seu agressor, pelo crime sórdido por ele cometido.
Esse seria um mal menor se a teoria tivesse passado para a prática. É que, de acordo com a vítima, o marido, Belarmino Timbe não completou sequer um ano de prisão. “Soube que ele ficou preso na Cadeia Civil e, mais tarde, foi transferido para a Cadeia de Máxima Segurança (BO). Mas, há informações que dão a indicação de que foi solto em menos de ano. A indemnização, igualmente, não passou do papel”, denunciou Maria Carlos.
Contrariada, a família da Maria Carlos chegou a decidir-se pelo seguimento do caso. No entanto, foi vencida pelo desânimo. Passado pouco mais de uma década, o criminoso Belarmino Timbe vive livre e solto, em parte certa, lá para as bandas de Mahubo, “rodeado de muitos cães e cabritos”. “A minha filha conhece a residência do seu pai, esteve lá há meses”, disse Maria Carlos, visivelmente ferida por dentro e por fora, como sói dizer-se. Trata-se de mutilações físicas e, ao mesmo tempo, psicológicas. Ninguém lhe paga por isso. Consequentemente, “sofro, sobretudo por passar por dificuldades financeiras. Vejam, por exemplo, a prótese que uso actualmente está a deteriorar-se. É necessário substituí-la por outra e eu não tenho dinheiro. Este material tem prazo de validade de dois anos”. A seu ver, estas dificuldades seriam minoradas se, ao menos, se obrigasse o cidadão Belarmino Timbe a pagar uma mensalidade. “Com esse dinheiro, pagaria as despesas de manutenção do meu estado físico e um empregado para me ajudar nas tarefas domésticas. A minha mãe está cansada. Tem uma idade avançada. Até de um meio de transporte preciso. A idade já pesa em mim também. Por vezes dói-me manter a prótese ligada ao meu corpo”, afirmou Maria Teresa Carlos.
Texto de Carol Banze
carolbanze@yahoo.com.br
Fotos de Jerónimo Muianga