Um agente da Polícia da República de Moçambique (PRM) morto, dois civis feridos e parte da população refugiada nas matas e nas ilhas das cercanias é o resultado do pandemónio que se está a viver na localidade de Pangane, posto administrativo de Mucojo, interior do distrito de Macomia, em Cabo Delgado.
A Unidade de Intervenção Rápida (UIR) foi chamada a acudir a situação e o clima se mantêm tenso, havendo populares que ameaçam pôr termo à vida dos agentes da Lei e Ordem.
A rotina dos residentes de Pangane, uma pacata localidade costeira do distrito de Macomia, na parte central de Cabo Delgado, com cerca de oito mil habitantes está às avessas desde a quinta-feira passada.
Os líderes religiosos locais decidiram banir por completo a venda de bebidas alcoólicas nos estabelecimentos comerciais e hoteleiros ali existentes porque a religião muçulmana, que é predominante na zona, é contrária à venda e consumo deste tipo de bebidas.
Por outro lado, o banimento é justificado pelo comportamento inapropriado que, supostamente, os consumidores, muitos deles jovens, apresentam quando estão embriagados. Faltam ao respeito, insultam à toa na via pública, entre outras práticas que atentam contra as famílias e a religião.
A operação de recolha de bebidas terá sido dirigida por um líder religioso, cujo nome não conseguimos apurar, que se fazia acompanhar por um grupo não especificado de jovens, os quais “apreenderam” produtos e dinheiro vivo estimado em 42.110 meticais em pelo menos cinco estabelecimentos.
Aliás, um dos alvos da campanha promovida pelos líderes religiosos de Pangane foi o Pangamar, a única unidade hoteleira de tipo pensão que existe por ali, e que terá reforçado e melhorado o stock quando lhe confirmamos a reserva de acomodação para duas noites, nomeadamente, quarta e quinta-feira da semana passada.
Os líderes religiosos entenderam desencadear a dita operação na terça-feira, na véspera da nossa chegada ao local, a ponto de não sobrar uma garrafa para amostra. Congeladores e prateleiras foram esvaziadas e, inclusive, recebemos relatos de que terão sido apreendidos quatro bidões de 20 litros de aguardente que foram deitados ao chão.
DETENÇÃO DO LÍDER RELIGIOSO
Mamade Abdade, que faz parte do grupo de líderes religiosos de Pagane disse à nossa Reportagem que os vendedores de bebidas alcoólicas foram avisados há cerca de dois meses de que, querendo prosseguir com o negócio, deviam fazê-lo longe desta localidade, “mas eles continuaram”.
Mamade sublinhou que o administrador do distrito visitou Pangane e foi informado em encontro popular sobre a preocupação dos líderes religiosos e este terá remetido a tomada de uma medida por parte do chefe da localidade, Humberto Almasse.
“Porque de lá a esta parte nada foi feito, avisamos aos vendedores para retirarem os produtos numa semana. Também não vimos esboçado nenhum esforço, pelo que desencadeamos esta operação. Fizemos o registo das quantidades e orientamos aos donos para irem vender fora da localidade”, disse.
Rachid Cadre, líder comunitário de Pangane, confirmou à nossa equipa de Reportagem que o ambiente por ali anda tenso há algum tempo porque os líderes religiosos entendem que não se deve vender e consumir álcool nesta comunidade, porque há desvios comportamentais e a religião predominante não permite. Daí a recolha das bebidas.
Porque esta operação não agradou aos vendedores, estes terão endereçado as suas queixas às autoridades policiais que, na manhã de quinta-feira receberam o reforço de agentes idos do posto administrativo de Mucojo para investigar as motivações dos líderes religiosos e responsabilizá-los pelos prejuízos causados, sobretudo na perspetiva financeira.
Depois de algumas diligências, um líder religioso foi identificado como chefe do grupo de jovens que recolheu as bebidas. Eram 09 horas da manhã de quinta-feira quando os agentes da polícia o localizaram e recolheram-no. Por mero acaso, este episódio aconteceu na nossa presença, pois nos encontrávamos no quintal da casa de Humberto Almasse que nos falava sobre a vida em Pangane. O aludido líder religioso, quando se deu conta da presença da polícia naquela vila, tratou de buscar refugio na casa do chefe da localidade e dois agentes foram ao seu encalce.
Na sequência da detenção daquele dirigente espiritual, tido como bastante influente naquela comunidade, a população, enfurecida, se aglomerou na estrada e bloqueou a passagem da polícia. Sitiada, a polícia se viu na contingência de disparar consecutivamente para o ar. Debalde.
No lugar de abrir passagem para a viatura da Polícia, os populares se aproximavam cada vez mais até que um destes conseguiu alcançar um agente e segurou na sua arma. O tumulto agudizou e, pelo meio, um agente foi atingido por uma faca e caiu inerte e sem vida e dois jovens ficaram feridos.
Porque o ambiente se tornou turvo, um contingente da Unidade de Intervenção Rápida foi destacado para o local para resgatar o corpo da vítima mortal e recolher os dois feridos para receberem assistência na unidade sanitária de Macomia.
Mesmo assim, a população reagiu contra esta operação e a UIR só logrou parte dos seus intentos depois de mais alguns tiros para o ar. O corpo do agente foi recolhido, mas os dois feridos foram conduzidos pela população para as matas.
LOCALIDADE FORA DO COMUM
Na manhã de sexta-feira, cerca de 24 horas depois daquela sublevação, o ambiente em Pangane continuava tenso. Parte da população continuava refugiada nas matas, e outros que foram buscar refúgio nas muitas ilhas das cercanias continuavam por lá.
Entretanto, os poucos que permaneceram nas suas casas continuavam a propagandear ameaças contra os agentes da polícia. O chefe da localidade, Humberto Almasse dedicou horas a tentar convencer a população a regressar às suas casas para que a vida regresse rapidamente à normalidade. Mas, todo o esforço deu poucos frutos.
Mas, a vida em Pangane nunca foi de todo pacata, uma vez que quase tudo o que por ali se faz obedece a regras emanadas pelos líderes religiosos que, pelo que pudemos testemunhar, não comungam os mesmos ideais das autoridades do Estado.
Por exemplo, apurámos que o chefe da localidade é permanentemente apupado na via pública e até mesmo em casa, por gente de todas as idades, supostamente por ser cristão, não ser natural de Pangane (vive ali desde 2010), e, pior, ser da etnia maconde, quando a maioria é muaní ou kimuâni. Porque todos estes elementos são passados de boca em boca a toda a hora, “as crianças repetem o que os pais dizem. Atiram areia quando o chefe passa e mandam embora. O que assusta é que ninguém as repreende”, apurámos.
Outro dado que salta à vista de quem chega à Pangane é que a estrada de acesso serpenteia milhares de coqueiros que abundam por ali. Quem conduz parece estar a jogar um “vídeo game”. A explicação para este facto é a mais estranha possível. “A população não admite que seja abatido um único coqueiro para a construção de seja qual for a infra-estrutura, inclusive escola e centro de saúde”, confirma o próprio chefe da localidade.
Olhamos em redor e observamos que a maior parte dos coqueiros só se mantem em pé porque o seu dia de desabar ainda não chegou. Ao próximo vendaval centenas virão abaixo, porque são árvores tão velhas que já não dão nenhum fruto. Mesmo assim, a população finca-pé. “São nossas árvores, e pronto”.
Ainda em relação àquela estrada, constatamos que o Programa de Promoção de Pesca Artesanal (ProPESCA) entendeu reabilitar os seis quilómetros de estrada que ligam Mucojo a Pangane para facilitar o escoamento dos abundantes recursos pesqueiros produzidos em Pangane e o escoamento de produtos de primeira necessidade.
Entretanto, no lugar de colaborar, um certo cidadão local entendeu que os cerca de 100 metros de estrada que atravessam o seu palmar não podiam ser reabilitados. Conforme apurámos, aquele proprietário alegou que não queria saibro (areia vermelha) “no seu território”.
Porque todos os esforços empreendidos pelas autoridades do Estado para demovê-lo redundaram em fracasso, aquele pedaço de estrada continua com areal que dificulta a circulação de viaturas ligeiras. Diz-se que o tal cidadão factura com a situação, pois ele se mobiliza para remover as viaturas que ali se atolam a troco de dinheiro.
“Para termos a estrada até aqui foi necessário um intenso trabalho e está claro que ainda temos muito que fazer para melhorarmos o traçado”, disse Humberto Almasse.
Também impressiona o facto de a população se recusar a deitar abaixo alguns coqueiros para dar lugar à construção de um centro de saúde. Como consequência disso, quem adoece em Pangane só pode ser assistido em Mucojo, que dista cerca de seis quilómetros e, por isso, fica sujeito a despesas de transporte que, de outro modo, seria dispensáveis.
Ainda a propósito dos coqueiros, a nossa Reportagem apurou que o ProPESCA enfrentou momentos amargos para montar um Posto de Transformação (PT) de energia eléctrica simplesmente porque o líder religioso que hoje está detido levantou-se numa reunião de consulta comunitária para exigir o pagamento de absurdos 35 mil meticais pelo abate de um dos seus coqueiros.
Fontes ligadas ao processo afiançam que o “PT” foi montado na localidade depois de intenso bate-boca com os técnicos daquele programa, que conquistaram algum apoio de parte da comunidade que, de forma tímida, foi murmurando que o seu líder “estava a meter água”.
Pangane é um lugar tão fora de comum a ponto de representantes da Igreja Assembleia de Deus terem ensaiado implantar um templo por ali. Conta-se que quando chegaram, ninguém lhes ligou nenhuma. A comunidade ficou a olhar para os cristãos por cerca de dois meses, por isso estes refizeram as malas e desandaram dali.
De igual modo, na entrada de Pangane ainda são visíveis algumas infra-estruturas turísticas que estavam a ser implantadas por um investidor de origem italiana. Porque houve um certo desatino com alguns populares, que cobravam por coqueiros que se encontravam dentro daquela área, o investidor também desandou e o projecto morreu.