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Raios e trovões: recanto da natureza e do feitiço

Por admin

Texto de Carol Banze e Fotos de Inácio Pereira

Nuvens, clarão, estrondo. Tudo acontece de forma concomitante. É a colisão de partículas acompanhadas de relâmpago e de trovoada. O barulho é assustador, porém inocente. O que mata, de facto, é o fulgor enganador: o raio.

 

O nosso país, pela sua localização geográfica, Costa Oriental de África, é dos mais vulneráveis à ocorrência de intempéries de vária ordem. Em média, de acordo com dados fornecidos pelo meteorologista do Departamento de Análise e Previsão do Tempo, do Instituto Nacional de Meteorologia (INAM), Flávio Monjane, tem ocorrido pelo menos mais de uma tempestade por época, por exemplo, durante a época chuvosa.

domingoquis perceber, de forma especial, o que está por detrás da ocorrência de raios, tendo em conta que existem divergências quanto ao motor desse evento. Explicações científicas e mitológicas são avançadas para justificar este fenómeno.

Baseado na ciência, Flávio Monjane explica-nos que a ocorrência do raio é resultado da colisão de nuvens acompanhada de um clarão, o relâmpago, e de um estrondo, a trovoada que, “muitas vezes assusta, no entanto não mata. O que mata é o próprio raio”, afirma o meteorologista.

Conforme aclara, tudo acontece quando nuvens com cargas iguais cruzam-se e chocam-se. Contra a ilusão da maioria, diz-nos que “o clarão, o barulho acontecem simultaneamente e está associado à mudança do tempo, quando se tem uma massa de ar com uma baixa em relação a temperatura que se fez sentir”. Geralmente, isto ocorre no final do dia.

ZONAS DE OCORRÊNCIA

Se de uma forma geral, a localização geográfica dita a ocorrência de certos fenómenos climáticos, há que ter em conta que as terras altas do interior, do sul e centro para o caso do nosso país, até mesmo a província de Nampula, no norte, são as mais propensas.

Entretanto, o Instituto Nacional de Meteorologia (INAM), como forma de contribuir para a atenuação dos danos, está a desenvolver um trabalho de montagem de detectores de relâmpagos. “São dispositivos importantes porque ajudam a mostrar a direcção da nuvem o que possibilitará efectuar avisos sobre onde poderá ocorrer o relâmpago e/ou o raio”, diz-nos o meteorologista Flávio Monjane.

VÍTIMAS

Em várias partes do mundo, tem-se feito o registo de mortes causadas pela ocorrência de raios. Em Moçambique, só nesta época chuvosa, perderam a vida pelo menos oito pessoas. “Muitas vezes, essas mortes ocorrem por desconhecimento de normas de prevenção. Só para exemplificar, não se deve ficar debaixo de árvores quando há mau tempo. É preciso perceber que o raio descarrega sob o ponto mais alto. Por vezes, em lugares abertos tais como praias, o raio descarrega sob o ponto mais alto que pode ser, na circunstância, uma pessoa, daí que nessas circunstâncias, apela-se para que as pessoas fiquem agachadas para não atraírem o raio”.

Questionado sobre a divulgação das medidas de segurança, Flávio Monjane avançou que algo tem sido feito – divulgação de cartazes; através da imprensa – ainda que reconheça que “não se mostra suficiente” e abrangente, porquanto nota-se um profundo desconhecimento sobre a matéria por parte da maioria da população.

Outrossim, avança a necessidade de se dar a conhecer que acções tais como “colocar um fio ligado a um objecto metálico implantado no ponto mais alto da casa e que desça até à terra onde deve ser enterrado com sal, funciona como um pára-raios, para além de que já existem aparelhos fabricados e à venda em casas comerciais ”.

MITOS E CRENÇAS

Do ponto de vista da ciência, o planeta Terra está sujeito à ocorrência de fenómenos climáticos. Trata-se de eventos que têm uma fundamentação científica. Contudo, tal princípio não se mostra suficiente para convencer certas pessoas, que, presas às crenças e mitos, afirmam categoricamente que o raio é coisa maquinada por pessoas “espertas”, com o intuito de pôr fim à vida dos seus semelhantes.

domingoquis colher a opinião do meteorologista Flávio Monjane que, prontamente, afirmou não perceber de que maneira um indivíduo poderia pôr em prática uma acção dessa natureza. “Não consigo acreditar que um ser vivo possa ter a capacidade de enviar um raio para matar o outro”.

De qualquer forma, e não negligenciando o posicionamento daquele técnico, encetamos uma volta por alguns locais do nosso país. Desta feita, em Inhambane e Maputo. O objectivo era auscultar a convicção de diferentes pessoas (anciãos e médicos tradicionais) sobre a matéria em destaque nesta reportagem.

O nosso foco estendeu-se também para quem viveu na pele ouno coraçãoas consequências da descarga de um raio.

KATEMBE: ONDE SE “TEM O RAIO E O RELÂMPAGO NA MÃO”

As narrativas de tradição oral são um meio de transmissão de histórias fantásticas, mas que reflectem de alguma forma a realidade. Elas têm a função de regrar as sociedades, transmitindo valores, ao mesmo tempo que relatam a forma como elas vivem e convivem dando ideias sobre as maneiras correctas de se estar e chamando atenção para o risco que se corre em caso de transgressão.

Conta-nos uma dessas histórias, a dado passo, que Ka Tembe é onde os moradores “têm o raio e o relâmpago na mão”. Interpretando, entende-se que, neste lugar, há quem sabe ‘brincar’, ou seja, fazer uso do raio para fins obscuros. E entre a ficção e a realidade, entende-se a fossilização dessa fama. Ka Tembe é um lugar temido.

Em conversa com a anciã Rosalina Khau, natural de Gaza, ela prefere cingir-se em “ouvi dizer que lá (na KaTembe)‘brinca-se’ com o raio, mas não tenho provas”, resguarda-se. Mesmo assim, defende que quando um raio descarrega “pode ser um raio bom ou um raio mau”. Vovó Rosalina alonga-se afirmando que o raio mau é aquele que mata. Até porque “existem pessoas que conhecem artimanhas para ‘actuar’ usando o raio. São conhecimentos que adquirem, quem sabe, em quem tem o poder de matar usando o raio”.

Intrigado, domingodirigiu-se a KaTembe. Lá encontrou Lizete José, médica tradicional, natural de Maputo e residente em Ka Tembe.

Formada em medicina tradicional há quase trinta anos, reafirma a fama que o lugar leva. Mas, “o que sei é que antigamente existia essa coisa de ‘utilizar’ o raio. Dizia-se nyamuntla hi ta klhanga ‘hoje vamos ‘brincar’. Nessa altura, as pessoas até se gabavam disso. Actualmente, não posso garantir que já não exista. No entanto, quase não se ouve falar disso.”.

Precavida, Lizete José afirma que quando começa a trovejar “entro na minha casinha pego num medicamento (apropriado), meto na boca e mastigo-o”. Esta medida visa evitar que seja atingida por algum raio malvado.

“Nós os médicos tradicionais”, continua, “damos raízes próprias para a pessoa se defender dos raios”. É que apesar de não ter observado uma acção decorrente da utilização do raio para fins malignos,refere que“não são poucas as vezes que se ouve dizer que ‘fulano ani tilo’ (fulano trabalha com raio)”.

Ainda na KaTembe, outro residente deste local, Maximiano Augusto, natural de Maputo, em Chamissava, aceitou conversar com a nossa reportagem. Reforça que antigamente as pessoas utilizavam o raio para “fazer coisas”.

Material para essas acções passava de uso medicamentos até utensílios como garrafas. “Essas garrafas eram trabalhadas para matar. Metia-se medicamento dentro delas e quando a temperatura favorecia, elas cumpriam a sua missão. Isso acontecia há muito muito tempo. Eu sou de Chamissava, os meus progenitores vivenciaram isso, falavam sobre o assunto, e recordo-me que se apontava muito para as zonas de Inhaca, Matutuíne, Machangulo como os lugares mais temidos”, disse.

E em KaTembe? Espevitamos. “Em KaTembe ouvem-se histórias. Distancia-se. O que se diz é que se trata de ‘coisas’ mandadas por curandeiros ou Nyangarumes (curandeiros sem pswikwembu, ‘demónios’, conhecedores de medicamentos). Isso faz com que nos dias de mau tempo haja precauções. Há que estar no interior das residências para evitar dissabores. Porém, acredito que quem não utiliza medicamentos para fazer mal aos outros não é atingido. Esse é o meu caso, então não me choca!” garante.

Apesar de tudo, Maximiano Augusto foi vítima de um mal-entendido no seu antigo local de trabalho por ser morador da KaTembe. Conta-nos que, certo dia, seu patrão mandou-o fazer um trabalho, o que desagradou um colega de trabalho, que por sinal era o seu chefe. “O meu chefe não gostou! Ele achava que eu caia no regalo do nosso patrão por ser morador da KaTembe. Nesse mesmo dia, coincidentemente, ele teve uma dor de cabeça. Sem hesitar, ligou-a a mim. Acusou-me de feitiçaria. De facto, os moradores da KaTembe são temidos. Infelizmente”, desabafou.

Mitos sobre trovoada em Gaza

O tempo tende a ser usado para apagar as estórias sobre tilu ‘raio’. Amélia Vembane, natural de Gaza, de 95 anos, mesmo afirmando que o raio pode ser utilizado para matar, empurra essa acção para um passado bem longínquo. “Isso era feito há muito tempo”.

Entretanto, narra que em Gaza alguém morreu de raio mandado. “A pessoa estava dentro da sua residência. Saiu para a casa de banho construída a uns metros da sua casa e foi atingida”.

Em seguida, Amélia Vembane chama atenção: “aqueles que sabem trabalhar com o raio fazem isso. E nem precisa ser curandeiro. Basta conhecer o medicamento para agir”. Aliás, contra todas as convicções, afirma que até o curandeiro que se supõe que tenha uma protecção, pela sua natureza, “pode cair nas malhas dos espertos”.

É por este motivo que Catarina da Silva Poiombo, médica tradicional, natural de Gaza, residente em Maputo, confessa que quando o céu se zanga, cria desassossego em si e, como se sabe, em qualquer um. Na verdade, tudo acontece porque “há raio bom e raio mau. O mau tem ligação com a maldade. Desce um xinyanga pfuli do céu (um objecto que cai quando o raio descarrega, conforme explica vovó Catarina)e os que sabem trabalhar com isso aproveitam-se para conseguir os seus intentos. Fazem-no usando, também, raizes”. Consequência, “há pessoas que morrem vítimas de raios encomendados. Perdi pessoas da família. Quatro pessoas: mãe, pai, avó e avô. Estavam debaixo de um coqueiro. E para limpar o infortúnio da família, para que não ocorra novamente, fez-se uma cerimónia. Matou-se galinhas e phahlou-se (cerimónia de evocação de espíritos) para limpar o local”.

Foi essa cerimónia feita na família identificada por P, de Inhambane. O chefe da família faleceu vítima de raio. A família P teve de arranjar um curandeiro para retirar o tilo da sua casa. Segundo afirmam, há especialistas nisso. Para além de matar galinhas para fazerem a lavagem da casa e das pessoas usando o sangue, fazem com que as pessoas bebam a água da bacia, onde supostamente é mergulhado o engenho. Esta história foi relatada por um filho, identificado como JP, natural de Inhambane. “Meu pai acabava de regressar do serviço. Trocou de roupa e foi parar à porta principal da casa. Estava com a minha madrasta e minha irmã, na altura criança de colo. De repente escureceu. Foi mesmo de repente. O raio descarregou naquele ponto da casa. Tirou a vida do meu pai. As pessoas que estavam com ele somente cairam. O raio, praticamente, não os causou danos físicos”.

Quanto aos motivos, “foi magia! Sem dúvida. Até porque ele disputava uma mulher com um mineiro. E esse mineiro já prometia revanche. E foi o que aconteceu”, garante.

MATOU UMA MULHER

E O RESPECTIVO GALO

Ainda em Inhambane, na vizinhança da família JP, uma mulher e seu galo morreram vítimas de raio “encomendado”. JP conta-nos que estavam reunidos “num xitique, e de repente”, e desta vez também foi de repente, “o céu fechou”. “A senhora e seu galo estavam debaixo da árvore. Uma mangueira. O raio bateu neles. Morreram ali”. Facto curioso é que a mulher tinha um bebé no colo, mas, segundo relatou JP o mesmo escapou ileso.

O povo, esse, encheu o peito para vociferar que não se tratava de algo normal. Mais uma vez, ao raio e seus utilizadores foram atribuídas mortes. Verdade ou não, as populações campesinas e algumas citadinas temem as brincadeiras feitas pelo ou a partir do raio.

E, facto a ter em conta, é que existe uma correspondência entre as mortes encomendadas e as explicações científicas. É que a maioria destes infortúnios ocorre debaixo de árvores, sendo que, a árvore é um ponto alto, importante atractivo para a descarga do raio. Mesmo assim, o mistério continua, e o raio continua sendo o recanto da natureza e do feitiço.

Texto de Carol Banze

Fotos de Inácio Pereira

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