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O êxito no ar forja-se em terra- Capitão Samuel Paque

Por admin

Pilotar um “Mig 21” não está ao alcance de todos. O Capitão Samuel Arnaldo Paque, piloto-aviador, nascido em Morrumbene, província de Inhambane, conta nesta entrevista a sua trajectória de quase 30 anos na direcção de caça-bombardeiros.

 Dele ficamos a saber as especificidades e curiosidades que envolvem a pilotagem militar. Conversa imperdível.

Como é que entrou para as Forças Armadas?

Entrei para as Forças Armadas pela porta do Colégio Militar, na Ilha de Moçambique.

Em que ano?

Em 1983. Tinha a oitava classe. Fiquei lá durante dois anos. Depois houve um grupo, do qual fiz parte, seleccionado para continuar os estudos na então União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS). Para tal, fomos colocados na Escola Militar Samora Machel, em Nampula, onde fomos sujeitos às primeiras inspecções médicas. Por sorte, não tive nenhum problema. Depois viemos para Maputo, concretamente para a Base Aérea de Mavalane, onde permanecemos cerca de 15 dias e no dia 9 de Novembro de 1984 partimos para a ex-URSS.

Lá chegados?…

Tivemos a felicidade de coincidir com as festividades da Revolução de Outubro. Cinco dias depois partimos para a Ásia, para uma região chamada Kante, onde fiz o meu vestibular. Lá tivemos de realizar novas inspecções médicas. Alguns reprovaram nesses testes, pois incluíam avaliação com equipamento médico que nós, aqui em Moçambique, ainda não tínhamos, como uma câmara-teste para apurar até que ponto a pessoa aguentava ficar um certo período de tempo sem respirar oxigénio puro. E porque para o curso arrancar era necessário ter um número determinado de instruendos foi-se buscar o pessoal que estava a trabalhar nos helicópteros e que, como nós, conseguiam ficar algum tempo privadoS de oxigénio puro.

Quer dizer que…

Em Moçambique a selecção foi mediante os resultados obtidos sem equipamento de aptidão física de ponta. Portanto, era imprescindível realizar novos testes, com equipamento moderno, porque voar nos caças exige, muitas das vezes, “andar” a altas altitudes.

O vosso grupo era composto por quantos elementos?

Trinta elementos. Em 1986, passamos para uma outra unidade, apelidada Tokomati. Fizemos lá o curso com o primeiro avião, um L39. É engraçado que nós não passamos por aqueles aviões que já tínhamos aqui em Moçambique. Como costumamos dizer, “nós saímos da aldeia, sem nunca ter visto avião na vida, e passamos para aquele aparelho supersónico, L39 (risos) ”. Fui dos últimos a voar, porque o meu instrutor tinha ido para a Checoslováquia. Mudar de instrutor não me pareceu boa ideia: Aprender teoria com um e praticar com outro, não. Fiquei à espera. Mas confesso que em algum momento pensei que jamais voaria.

Nessa altura, já sentia alguma atracção pela Força Aérea?

Comecei a sentir a paixão quando cheguei à Base de Mavalane, antes de ir a URSS, pois foi aqui onde comecei a ver aviões. Via aqueles Helicópteros e Antonovs estacionados na placa. Alguns filmes que assisti aumentaram em mim a paixão pela aviação. Aliás, no Colégio Militar assistíamos a filmes Russos sobre a II Guerra Mundial.

PRIMEIRO VOO

… SOZINHO

Quando é que começou a voar?

Comecei no dia 26 de Maio de 1986, na companhia do instrutor, e no dia 19 de Junho voei sozinho, pela primeira vez.  

Qual foi a sensação?

É difícil explicar exactamente o que a pessoa sente, mas antes destacar que não estava previsto que voasse naquele dia. O segundo comandante da unidade disse-me que eu estava pronto, mas não tinha horas suficientes para voar. Entramos no avião, ele pegou num romance e disse-me que ficaria concentrado na leitura e que o avião era meu e podia dirigi-lo à vontade.

Uahu?!

Sim. Liguei os motores, fizemos o primeiro e o segundo circuitos e depois aterramos. Ainda a rolarmos para à placa, o meu instrutor perguntou-me se, por acaso, ele me desse o avião eu seria capaz de tripula-lo sozinho. Respondi-lhe que sim. Que era capaz. Chegamos à placa, reabastecemos o avião, e ele disse que o avião era meu a partir daquele momento. Os meus colegas daqui de Moçambique não sabiam que eu ia voar sozinho naquele dia. Tanto é que eu não tinha preparado nada.

Como quê? Era preciso preparar alguma coisa?

Não tinha preparado as coisas do ritual: um volume de cigarros para oferecer ao controlador de voo, outro volume para aqueles que trabalham com a caixa negra e mais um para o engenheiro da placa. Era tradição. Mas eu não tinha absolutamente nada.  

Oferecer cigarros era gratificação?

Não. Sempre que se faz o primeiro voo sozinho tem-se um gesto a que nós chamamos reconhecimento.

Sentiu medo no seu primeiro voo?

Não, não tive medo. Estava muito sossegado. O meu indicativo era 02. Sai normalmente. Lá onde fica(va)m os pilotos havia um altifalante para ouvir a radiofonia dos outros. Todos ficaram estupefactos quando ouviram o meu nome a ser pronunciado e questionaram sobre o meu indicativo. Perguntaram porque é que eu estava a voar sozinho se ainda não estava preparado. Serenamente fui a pista, entrei no avião e… descolei o L39. Quando aterrei fui recebido pelos colegas com admiração e houve quem perguntasse porque não os avisara antecipadamente que ia voar. Depois assinou-se o livro de felicitações. Uma espécie de ritual quando alguém voa sozinho pela primeira vez.

Quando desceu com o avião, o que é que sentiu?

Quando fiz o primeiro circuito, depois da segunda volta, comecei a recordar-me de onde saíra. Lá da minha aldeia. Não era possível a uma pessoa que sairá de onde eu provinha estar naquele lugar a pilotar uma máquina daquelas.

Qual é a sua aldeia? 

Sou de Barane, distrito de Morrumbene, província de Inhambane. Tirei a luva e comecei a olhar para a minha pele e toquei-a enquanto me questionava se era eu mesmo que estava ali (risos). Não cabia em mim de contentamento. Não queria acreditar que tal feito tinha sido protagonizado por mim. Imaginava onde nasci. Sou gago por natureza. E diziam que nunca tinham formado um gago naquela unidade (mais uma vaga de risos).

Essa é boa. E a seguir a esse episódio?

No dia 4 de Abril de 1986, o General Hector perguntou-me quando é que eu sentia dificuldades para falar. Disse-lhe que era quando ficava nervoso. Foi insistindo com provocações para ver até que ponto eu podia ficar chateado. Mandou-me controlar o voo. Por norma, no primeiro voo quem deve falar é o instrutor, mas no meu caso foi diferente. Quem estava a dar as informações era eu mesmo. Fiz o voo, aterrei, e ele veio me receber. Disse-me que devia voar. De seguida perguntou-me se conhecia Samora Machel. Respondi-lhe afirmativamente. Acrescentei que Samora era meu Marechal. Então ele revelou-me que Samora Machel não gostava de brincadeira e fora ele que me mandara para ali. Advertiu-me que me devia preparar. Por sinal eu tinha boas notas.

Quando foi para a Rússia qual era o seu nível académico?

Nona classe.

Hoje fala-se da era de aviões inteligentes, com sistemas baseados em computadores. Nessa altura, os aviões também já o eram?

Talvez existisse, mas nós desconhecíamos. O que posso dizer é que onde estávamos não existiam.

O sistema dos aviões que estavam em Moçambique assentava em computador?

Era diferente do que existe agora.

Quais as diferenças entre os aparelhos daquela época e os da agora no que toca a formação de pilotos?

Bem, nós fomos formados fora do país. Agora estamos em condições de formar os pilotos aqui em Moçambique. Temos a Escola Prática de Aviação e o L39. Dali já se pode ensinar a pilotar o maior avião de combate que temos cá, que é o Mig21. Na altura não tínhamos essas máquinas.

MIG – 21

Quanto tempo se leva a formar um piloto de “caça”?

Cerca de dois anos. A pessoa precisa de aprender a teoria, pelo menos uns três meses, depois a parte prática, que pode ir até aos seis meses. Mais tarde, concluída a primeira etapa e assimilada a parte teórica salta-se para a prática, isto é, aprende-se a tripular o Mig 21.

Agora tem se dedicado à instrução?

Sim.

Como é que descreve a entrega dos jovens?

O que está a acontecer agora é que os jovens têm muito “background” sobre a aviação, o que nós na altura não tínhamos. No nosso tempo só víamos o avião a passar. Agora os jovens antes de entrar para a aviação já têm um simulador no computador. Sabem determinadas coisas o que lhes facilita a aprendizagem.

No seu tempo, como era feita a formação?

No nosso tempo a única coisa que tínhamos era o simulador. A pessoa entrava na cabine e ligava como se estivesse a accionar um avião normal. Não tínhamos acesso, como os jovens de hoje têm, ao computador. Por exemplo, eu tenho no meu computador um simulador de Mig 21 que o meu filho mais novo baixou. Um dia ele me mostrou e demonstrou de como é que se tripula no computador. Tem apenas 12 anos. Eu me perguntei onde é que eu estava e o que fazia com aquela idade (risos).

Como é que reage a sua família quando sabe que vai para uma missão?

Ficam de certo modo com algum stress, porque vêem a minha preocupação quando estou em casa. Depois tenho que dormir no mínimo oito horas de tempo. A noite tenho que imperativamente dormir.

Como é que conheceu a sua esposa?

Quando voltei a Moçambique fui colocado em Nacala. Conheci a minha esposa lá, no tempo da guerra. Só nos víamos por pouco tempo, por volta das 17.00 horas, uma vez que na altura trabalhávamos das 7 às 17 horas. Ela passava da Messe por pouco tempo, cerca das 17.30 horas, porque às 18.00 horas eu tinha de ir dormir.

Dormir a essa hora?

Sim. Aliás, o médico vinha ver se eu estava a dormir ou não. Recordo-me de um episódio que aconteceu connosco.

Conte-nos…

Foi aquando da primeira visita que ela me fez. Quando ela estava a entrar, chegou o oficial-dia para me chamar, porque tinha uma missão para Nampula. O oficial disse que o comandante já estava na base à minha espera. Sai de imediato e fui cumprir a missão por três meses. Só falávamos ao telefone. Mesmo agora, sempre que saio a família não sabe se volto ou não. A minha esposa agora está em Nacala e eu aqui em serviço. Liga-me duas vezes todos os dias e mostra-se, sempre, preocupada.      

Há uma curiosidade que mexe com as pessoas, que é a de saber qual é a velocidade máxima de um caça?  

A velocidade depende do tipo de caça, mas atinge, à vontade, os dois mil e tal quilómetros por hora.

Durante o período da paz não voou?

Ninguém voou em Moçambique. 

Depois de mais de 20 anos sem voar, foi-lhe difícil retomar?

Não, não foi difícil. Mas, na verdade, eu pensava que tudo já tinha sido esquecido. No tempo do então ministro da Defesa, o actual Presidente da República, Filipe Nyusi, mandaram-me chamar de Nacala. Vim para aqui e entregaram-me um grupo de jovens saídos da Academia para ir voar com eles na Roménia. Fomos até lá e fizemos de novo inspecções médicas.

E como se saíram?

Saímo-nos bem e começámos a voar num novo aparelho que eu nunca tinha tripulado na minha vida. Era um avião a hélice. Voei sozinho e completei uns 15 voos. Nós tínhamos uma missão de certo modo difícil, porque num lapso de tempo bastante curto tínhamos que saber tudo sobre vários tipos de aviões. O meu instrutor recebeu a missão do então director-geral para verificar se eu estava em condições de voar num avião supersónico. Antes do voo tivemos que fazer uma preparação preliminar, sobre o que é que se ia fazer. O primeiro voo é de familiarização, apenas. Era só para reconhecer a rota e conhecer as regiões de pilotagem, mas não foi isso que sucedeu.

O que é que se passou?

Fomos directamente para uma zona específica e, chegados lá, deu-me instruções para comunicar a torre de controlo. Disse que o espaço era meu e que devia começar com o trabalho. Perguntou-me se me recordava daquilo que havia feito há 27 anos. Fiz uma picada de 40 graus, seguida de uma cabragem de 40 graus, entre outros exercícios. Quando aterramos, ele disse em tom brincalhão que “preto é duro”, uma vez que passado muito tempo sem voar e, em nenhum momento, queixei-me de algum mal-estar.

Pilotar um Mig-21 provoca, digamos, uma sensação especial?

Sim, sim. 

Consegue descrever?

Costumamos dizer que pilotar um Mig-21 não é um trabalho, é um sentimento. Se já esteve num baloiço, quando ele se movimenta de um lado para o outro, é difícil explicar o que se sente naquele momento. O mesmo acontece em relação ao Mig. A sensação é muito boa. Por isso queremos muito mais. Por isso é que estamos aqui. Fazemos aquelas acrobacias, exactamente por causa da sensação que se sente. Você quando está no ar tem que ter um sentimento de um bebé ou de uma criança que salta de um lado para o outro a rodar um pneu. Quer dizer, tens que deixar todos aqueles problemas que você tem em casa e estar concentrado.

Muita gente quando vê um Mig a voar fica admirada. Aquela velocidade não mete medo?

Não mete medo, nada.

Um Mig não é um carro que muita gente conduz. Sente isso?

É diferente daquilo que você sente quando está em terra. O que se sente em terra é o barulho, que depois mexe contigo. Eu, lá em cima, não sinto muito aquele barulho. Para mim, os voos mais engraçados são aqueles que se fazem a baixa altitude.

O que é que acontece a essa altitude?

As coisas parecem se movimentar muito rapidamente. Às vezes vês as coisas assim na vertical. É difícil definir a altura em que as coisas se encontram mas, de antemão, você já definiu a estrutura de um certo objecto. Quando voamos a baixa altitude, você vê as coisas reais, aproximadas. Quando está muito alto, fica-se com a sensação de que o avião não está a voar a muita velocidade, enquanto na verdade tem. Quando estás a 100 ou 200 metros da terra, você vê as coisas muito rápidas.

TRIPULAR UM CAÇA

NÃO É TAREFA FÁCIL

Quer dizer que o piloto de um caça tem que estar muito atento?

Sim. Para você ir para os caças não é tarefa fácil, não. Em primeiro lugar você fica privado de muita coisa.

Privado de quê por exemplo?

Por exemplo, no passado dia 24 de Junho não pudemos ir ver o espectáculo porque tínhamos que estar a descansar. No próprio dia 25, depois de cumprida a missão não pudemos participar na festa porque tínhamos de descansar porque no dia seguinte havia outros trabalhos.

Então, nem têm tempo para a vida social?

Aquele espaço que nos dão deve ser dedicado à família. É necessário ter uma família que te entenda, que saiba apoiar.

Que experiência é que pode transmitir destes 29 anos de pilotagem?

É muita! É o que estou a passar para os mais novos. Agora, o que estou a fazer é transmitir aquilo que aprendi, para que façam como eu fiz, que até hoje ainda não tive um acidente tanto na descolagem, como na aterragem, bem como no ar. Isso é resultado de muita entrega. Como eu dizia, o êxito no ar forja-se em terra. Para os que são casados devem ter o apoio da família. Por exemplo, saber separar os problemas.

Como o quê?

Quando falta caril em casa, a esposa não tem que ligar para a base para comunicar, porque isso desmoraliza.

Também acho. Tem outros aspectos cruciais?

O que tenho a fazer é transmitir aquilo que sei, sobretudo aspectos de disciplina, porque aquele aparelho é uma arma e mesmo sem nenhuma munição ele mata e não mata só ao piloto. Aquilo que se demonstra em terra é para fazer no ar e não há que exceder. Se eu digo que a mínima altitude é mil metros, terá que ser essa altitude. Não é porque você tem uma namorada na Matola, que terá que sair daqui e sobrevoar a Matola para impressionar (risos).

Durante o voo levam convosco o celular?

Não. Lá existe um equipamento que não permite usar o telemóvel. Se levar, tem que estar desligado. Em princípio não é permitido. Não posso levar nada nos bolsos, porque se esse objecto cai, o piloto pode se distrair. Por exemplo, se levasse telefone e este caísse durante o tempo de manobrar o avião no ar, poderia embater nos vidros da cabine. O anel e o relógio também ficam em terra. Eu tenho que estar ali bem apertado aos cintos. Nada me pode relaxar a atenção. O espaço é pequeno e eu tenho que estar à vontade para me mexer naquele lugar. São poucas coisas que levo, como uma faca porque posso precisar de me ejectar do avião.

Nunca precisou de se ejectar?

Não, graças a Deus!

Bombardeei uma base inimiga

Todo o piloto de caças que entra em combate tem a sua estória. Pedimos ao nosso piloto para que no falasse sobre essa página.

Em algum momento esteve envolvido numa operação de combate?

Sim, em 1990. De todos os pilotos que Moçambique tem, eu sou dos mais novos pilotos operacionais dos Migs.

O que é que bombardeou? Uma base?

Sim. Era uma base do inimigo. Foi aqui na zona Sul.

Disparou o quê? Um míssil ou largou bombas?

Bombas.

O que é que sentiu depois de as largar?

Não foi assim muito diferente do que fazemos nos treinos do polígono. A responsabilidade é a mesma, porque ali um mínimo deslize é fatal. Chegamos lá, eu e o actual comandante da Base de Nacala, que era o meu líder na altura, baixamos de altitude, reconhecemos o alvo e abatemos.

Que cuidados deve ter numa situação dessas?

Aprimeira coisa que é preciso saber é se estámos a voar numa altitude certa ou não, pois se você baixar demais corre o risco de ser atingido pelos estilhaços. Controlamos o tempo, quando se deu ordem de fogo, foi fogo. Primeiro foi ele e de seguida fui eu. Mas há aquela sensação de… quer dizer, é um bocado difícil explicar, … porque é uma coisa que se sente. Nem todas as coisas que sentimos conseguimos expressar. Depois fizemos uns voos rasantes e voltamos aqui para a base.

Depois não sentiu remorsos por ter atingido vidas humanas?

Eu não estava a bombardear Maputo. Não bombardeei um lugar onde havia população civil. Fui para aquelas pessoas que, não só mataram a minha gente, mas também porque se tratava do inimigo. Se você não atingir primeiro é ele que te atinge. Posso, por exemplo, perguntar-te o que pensaste quando em 2013 houve aquela situação do G-20 nos bairros periféricos de Maputo? É muito complicado. Quem está no gabinete ou em casa, nunca pensa nisso, pensa que a guerra é um absurdo. Quem está dentro é treinado para enfrentar situações difíceis. Não é treinado para estar no computador. Preciso realçar que naqueles tempos, nós fazíamos as coisas por amor à camisola. Eu tenho o meu ídolo, que é Samora Machel, por causa daquele aprumo. Recordo-me quando marchávamos ali no colégio. Era uma sensação muito difícil de explicar. Tínhamos também o nosso vice-comandante na altura, José Mandra, que possuía um aprumo excepcional. Para voar, eu tinha o meu instrutor, o Menete, era uma pessoa excepcional, que deixava fazer as coisas à vontade. Havia algumas pessoas que eu gostaria de ser como elas. Isso tudo leva a pessoa a navegar num imaginário difícil de contar.

Estaria preparado neste momento para uma nova missão de combate, a exemplo daquelas que acontecem no Afeganistão? 

Se consigo voar é porque estaria. Eu gosto de voar num caça-bombardeiro. Gosto de voar. Todo o piloto de combate é uma pessoa que se deixa, que se liberta. Não é possível ter um avião de combate só para fazer demonstrações. Nossa missão é de lidar com uma situação real. A partir do momento que você entra no avião é para combater. Talvez haja uma situação mais difícil em combate que é a de operar aquela máquina. Sem ir para o combate, podes morrer sozinho se não lidares bem com o aparelho. Por isso, a partir do momento que você entra no avião está praticamente em combate.

É um orgulho fazer show aéreo

No passado dia 25 de Junho, a maré humana que se deslocou ao Estádio da Machava galvanizou-se com as piruetas que os pilotos dos Migs. O que muita boa gente não sabe é que por detrás de tudo aquilo há segredos.

Quando fazem aquelas acrobacias em dias festivos, qual é a sensação de um piloto naquele momento?

A primeira coisa é o orgulho de você estar destacado para fazer aquele tipo de missões. Não são todos que estão preparados. Nós somos treinados para fazer vários tipos de missão, mas ir para aquele tipo de demonstração é uma grande responsabilidade, porque tudo pode acontecer. Tudo tem que ser treinado até ao pormenor. Uma noite antes, você fica a pensar como é que vai ser o dia seguinte. Saber como é que a temperatura estará. Se o tempo não estiver bom é um problema, como foi o caso do dia 25 de Junho passado. Tivemos que descolar para verificar o estado do tempo. Havia o problema de fumos libertados pelas fábricas que atingiram à zona do Estádio da Machava, o que dificultava a visibilidade. Acabamos fazendo arranjos para ver como íamos proceder se a situação não se alterasse, sobretudo para aquela altitude que tínhamos definido para voar. Felizmente, na altura doshow, a situação estava minimizada. A fumaça tinha se dissipado e o vento havia abrandado. Tudo correu bem.

Durante o show, qual é a imagem com que ficou do Estádio da Machava?

Quando fiz o primeiro voo de reconhecimento estavam a começar a chegar as pessoas, por volta das 9.00 horas. A ala Oeste/Poente tinha gente e a Este/Nascente tinha poucas pessoas. Até a hora que saímos aquilo estava muito colorido, muito bonito mesmo. Foi pena não termos tido a possibilidade de fotografar o espaço, porque esquecemo-nos da máquina de fotografar. Mesmo os que foram de helicóptero não registaram as imagens porque também não tinham a máquina. Depois era mais fácil fotografar a partir do helicóptero do que do Mig, porque estávamos a voar na posição de três aviões e ai não havia tempo para nada. Ali qualquer falha seria fatal porque estávamos a voar todos juntos.

Há pouco tempo estava a fazer umas demonstrações com aparelhos de madeira.Pode-nos explicar em que consiste aquele ensaio?

Trata-se de um modelo. É um material que nós usamos para fazer perceber ao instruendo como é que temos que agir e como é que temos que fazer a manobra no ar. A gente primeiro faz a demonstração em terra para depois praticar no ar. Há limites da zona que você tem que ocupar e trabalhar nesse espaço. No caso do dia 25, éramos três e tivemos que treinar as posições e os movimentos. Um a frente e os outros dois dos lados.

Vocês comunicam-se durante os movimentos?

Primeiro é em terra. Exemplificamos como é que você há-de ver o outro avião no ar. Quando estivermos no ar, todos temos de nos movimentar conforme ensaiamos.

Quem é Samuel Paque?

Samuel Arnaldo Paque é natural de Barane, distrito de Morrumbene,  província de Inhambane. Nascido a 7 de Abril de 1968, fez os estudos primários na região onde nasceu e o ensino secundário na cidade de Inhambane, na Escola Secundaria Emília Daússe.

Foi por admiração a um oficial que estava afecto na província de Inhambane, sobretudo por questões de aprumo em vestes militares, que Paque desejou – e conseguiu – ingressar na carreira militar. Inscreveu-se na Escola Militar Samora Machel, em Nampula, mas acabou transferido para o colégio Militar por ser miúdo. Não foi o único mandado para aquele estabelecimento que segundo confessou nunca tinha ouvido falar. Em 1991 contraiu matrimónio, uma relação conjugal que viria resultar no nascimento de cinco filhos. Infelizmente o mais velho perdeu a vida na sequência de um acidente rodoviário. 

Fotos de Jerónimo Muianga

Texto de Benjamim Wilson

 

benjamim_wilson@yahoo.com.br

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