Wan Pone é um homem que fez história no futebol nacional. Criou uma equipa com o seu nome e, num punhado de anos, fez sucesso ao nível dos distritos de Govuro e Inhassoro, em
Inhambane. Conquistou o provincial e “maltratou” equipas tidas como favoritas no “Moçambola”. Mas, um acidente de viação ceifou a vida de uma dezena de atletas desta colectividade. A partir de então, Wan Pone nunca mais foi o mesmo. Nunca mais se consolou. A sua vida ficou de avesso e, por isso, vive recatado e com a memória mergulhada em amargas lembranças.
O distrito de Govuro é duma exacerbada pacatez. Como diz a juventude, “por ali não se passa nada”. A carroça nova do vizinho ou a chegada de um forasteiro podem alimentar longas conversas, onde a verdade e a mentira caminham de mãos dadas e a trocar abraços até surgir a próxima novidade.
Foi neste meio quase sonolento e de conversa fiada que nos foi indicado por convivas de circunstância que este distrito produz bastante sal, parte do qual é exportado para alguns países vizinhos.
Disseram-nos que, se quiséssemos, poderíamos dar um pulo às imensas salinas ali existentes. “Pode ser que dê uma boa estória”, pensamos e pusemo-nos imediatamente em pé para negociarmos boleia, pois não dispúnhamos de meio de transporte próprio.
A vantagem de estar a circunvagar em meios pequenos como Nova Mambone, vila sede de Govuro, é de que até os pensamentos parecem ser audíveis, pois, em poucos minutos, conseguimos ter viatura com motorista e um guia, que nos levaram a circular pelas áreas de produção salina a troco do orgulho de levar jornalistas idos de Maputo, o que também vai alimentar outras conversas no bar mais badalado da vila.
Para começar, levaram-nos à Salina Nova Mambone, que, conforme relatos do guia improvisado e de outras fontes, foi inaugurada pelo saudoso Presidente Samora Machel, em 1981, tendo sido categorizada como Empresa Estatal.
Entretanto, passados alguns anos de revezes económicos, esta empresa passou para as mãos de Salema, que foi um dos empresários mais bem-sucedidos da província de Inhambane, com interesses na área pecuária, de transporte, venda de combustíveis, hotelaria e turismo, entre outras.
Fortunato Litsuri, actual gerente do empreendimento, descreveu para a nossa equipa de Reportagem que esta salina ocupa cerca de 500 hectares e, nos meses de pico de produção, que vão de Setembro a Dezembro, são contratados mais de 150 trabalhadores que produzem acima de 150 toneladas diárias de sal.
“Nos restantes meses a produção hiberna, porque chove ou não faz calor suficiente para permitir que a água evapore e cristalize. Quando isso acontece, ficamos com apenas 10 trabalhadores efectivos que asseguram a manutenção dos canteiros e produzem quantidades pequenas que são vendidas a retalho”, disse Fortunato.
Wan Pone na salina
Porque o nosso guia estava animado em querer elevar “bem alto o nome de Nova Mambone” nas páginas do nosso jornal, que para ele se chama “domingos”, percorremos outros tantos campos de produção, incluindo um que é propriedade da Igreja Católica local, mas, sem imaginarmos que o homem tinha um “trunfo na manga”.
Mais adiante, entramos num campo que, apesar de ser de dimensões pequenas quando comparado com o do Grupo Salema, a produção parecia mais séria e com os trabalhadores mais inspirados para o trabalho. Cerca de 30 mulheres enchiam, pesavam, coziam e arrumavam dezenas de sacos de sal num ritmo frenético e sob a vigilância de um jovem feito capataz.
Quando Jerónimo Muianga se aproximou de câmara fotográfica em riste, algumas mulheres tentaram ocultar os rostos e outras começaram a fazer poses de modelos, como se estivessem numa passarela de uma “salina fashion week”. “Continuem a fazer o vosso trabalho”, ordenou o olheiro, enquanto procurava saber quem éramos.
Depois das apresentações de praxe, aquele rapaz indicou que nos devíamos aproximar ao dono da empresa, para colhermos as informações que pretendíamos e apontou para uma viatura estacionada no meio do campo de produção. “O dono disto é aquele senhor”, apontou.
Enquanto rumávamos ao encontro do tal homem, o guia começou a esfregar as mãos, a celebrar o facto de estar a levar jornalistas ao encontro de um homem especial. “Agora sim. Vão se encontrar com Wan Pone. O homem é simpático, vai adorar a vossa presença e tem muita coisa para contar”, celebrou.
Por alguns instantes ficamos atónitos, pois, não percebemos de quem falava exactamente, mas, quando a viatura finalmente parou, vimos um homem adulto, com feições que a imprensa tinha explorado num passado recente. Era ele. O Wan Pone. Dono da equipa de futebol proveniente de Inhassoro, que fez sensação no “Moçambola” e que teve um final trágico. “Sejam bem-vindos rapazes. Pelos vistos são jornalistas. De onde?”, perguntou.
O guia estava eufórico pelo que deixámo-lo fazer as apresentações. “São jornalistas do jornal domingos”, retorquiu e nós soltamos a nossa gargalhada, enquanto corrigíamos aquele plural teimoso. Wan Pone também se riu e redobrou a saudação com um gracejo que deu origem a uma risada doce. “Estejam à vontade repórteres do jornal domingos”.
“Não tenho mais idade para o futebol!”
“Estou aqui a produzir sal, mas, a chuva que caiu há dias fez baixar a produção. Tenho 30 hectares, nos quais consigo tirar entre 200 a 300 toneladas nos meses de pico, com um efectivo de 200 trabalhadores, dos quais 100 são homens e outros 100 são mulheres. Mas, os trabalhadores efectivos são apenas 21”, disse.
Estava claro que a conversa sobre o sal tinha prazo de validade muito curto, porque não queríamos perder o ensejo de explorar a vida e obra deste homem que desapareceu do meio futebolístico nacional e se resguardou no interior de Govuro, a explorar as suas salinas e a orientar uma oficina de camiões.
“Agora dedico-me à exploração e comercialização de sal, e, quando não há trabalho nas salinas, fico na oficina a fazer a revisão aos meus cinco camiões. Vendo o sal aqui na província de Inhambane, mas a maior parte é levada para as províncias da região centro e norte, e consta que alguns compradores exportam para os países do interland”, disse.
Deixamos o sal para lá e colocamos as perguntas que não queriam calar. “Deixou o futebol ou está a preparar-se para uma aparição em grande estilo, perguntamos. “Não volto ao futebol por causa da minha idade. Já não combina. Não tenho mais idade para as agitações do futebol”, foi a resposta que colhemos.
Porque conhecemos muitos cidadãos muito mais velhos que continuam ligados às emoções do desporto, insistimos e a resposta foi melancólica. “Fujo, porque sem me aperceber começo a levar tudo a sério e isso não me faz bem. Afastei-me e não volto mais ao futebol. Chega!”.
Wan Pone afirmou que quando criou a equipa não esperava chegar ao “Moçambola” e as suas palavras são inequívocas. “Fui parar lá sem querer. Foi como um milagre. A equipa foi ganhando em pequenos torneios. Inscreveu-se na Associação Provincial de Futebol de Inhambane em 2002 e participou no “provincial”, onde também foi ganhando até chegar ao “Moçambola-2003”.
Recordou que quando esta experiência começou, a equipa era formada por trabalhadores das salinas localizadas na linha de fronteira entre os distritos de Inhassoro e Govuro, que se limitavam a chutar a bola para a frente e a inventar competições com equipas locais.
Depois de chegar ao escalão máximo do futebol nacional, Wan Pone disse que tinha conseguido reunir em redor da sua equipa milhares de adeptos que se surpreendiam com a equipa a cada jogo. Até meados de Abril de 2003, aquele clube já se encontrava no oitavo lugar da tabela classificativa, há cerca de 14 pontos do primeiro classificado.
Recordações inquietantes
O campeonato nacional corria de feição para a equipa e, depois de um jogo realizado em casa do Futebol Clube de Lichinga, no Niassa, todos voaram para Maputo, onde embarcaram num mini-bus de regresso a Maxixe, onde o grupo estava domiciliado para poder utilizar o campo municipal local, pois não existiam estádios aptos para a prática de futebol de primeiro escalão em Inhassoro ou Govuro.
Por volta das 19 horas do dia 21 de Abril de 2003, o grupo atravessava a região de Cumbana, no distrito de Jangamo, bem próximo do seu destino e a tragédia aconteceu. Ninguém sabe dizer ao certo se o motorista adormeceu, se o nevoeiro atrapalhou a visibilidade ou se o motorista estava convencido de que o camião que se visualizara à sua frente estava em marcha, quando na verdade estava parado.
Certo é que o mini-bus foi se encravar nos enormes tubos que o camião transportava que se destinavam à construção do gasoduto (Temane-Secunda). Alguns destes tubos atravessaram a cabine ceifando tragicamente a vida de pelo menos 10 atletas e outras duas pessoas que tinham pedido boleia.
“Aquela tragédia deixou-me de rastos. Marcou-me muito e até hoje lembro-me de todos os jogadores. É terrível”, afirma, acrescentando que “tentamos continuar por mais algum tempo, mas, sempre que viajássemos, os atletas que sobreviveram ficavam stressados e contagiavam os restantes e a equipa deixou de ser produtiva. Por isso afastei-me. Não posso mais”, disse visivelmente transtornado.
Depois desta triste experiência, alguns amigos ainda tentaram convencer Wan Pone a se associar ao Vilankulo Futebol Clube, mas, os convites e apelos foram inúteis. “Prefiro estar longe. Ofereci algum material àquele clube e fiquei de longe. Perdi a moral. Se tivesse tido algum apoio de gente que gosta de futebol e que não ligasse ao facto de a equipa ter o meu nome talvez continuasse”, disse.
Outro factor que concorre para o afastamento de Pone é o encargo que um jogador de futebol representa hoje, nomeadamente o contrato, prémios e salários que considera de incomportáveis para clubes que emergem a partir dos distritos.
Para sacudir a tristeza, Wan Pone busca forças num grande baú de recordações da juventude, onde se notabilizou como um dos melhores transportadores de mercadorias do país. Segundo conta, na carreira de camionista foi premiado (Emulação Socialista) em vários pontos do país pela sua participação na distribuição do abastecimento alimentar e não só.
Para alcançar tão distinto merecimento, consta que terá adquirido alguns camiões avariados e, fazendo-se valer da sua experiência como mecânico, reparou as avarias e formou uma frota de 30 camiões-cavalo. Da renda aqui amealhada, comprou e geriu vários bares tais como o antigo Sucupira, Snack Bar Viola Azul, Desportivo da Matola, entre outros localizados nas cidades de Maputo e Matola. Por outro lado, lembra que esteve ligado à prática do voleibol e do andebol.
Jorge Rungo