Por volta de 1978, rodou o mundo a notícia de que Moçambique havia, em resposta às incursões de Ian Smith, invadido a Rodésia do Sul (hoje Zimbabwe) com a aviação militar e, usando armas de destruição maciça, reduziu a cinzas o posto rodesiano de Cuchamano, tendo sido condenado por alguns sectores, por ter extravasado as regras internacionais.
Mais tarde soube-se que tudo era peta, pois tratou-se da acção de uma plataforma BM-21, tal como a seguir e, em exclusivo ao domingo, explica o Major Zeferino Amadeu Paiva, que participou no combate, que o encontramos nos corredores da Escola Central da Frelimo, na Matola.
Na altura, Zeferino Paiva, actual secretário provincial da Associação dos Combatentes da Luta de Libertação Nacional (ACCLIN), em Manica, era comandante do Primeiro Batalhão da Infantaria Motorizada, da 4ª Brigada, em Tete, comandada por Fernando Napulula Tocote, ainda quando as brigadas estavam no processo de formação.
O que terá acontecido mesmo?
Depois duma reciclagem em Nacala, em 1977/78, fui afecto para a formação daquela brigada. Antes e depois do chamado curso“25 de Setembro”, em Maputo, fui a Manica comandar quatro pelotões. Daqui tive a missão de Nacala, pois na altura estávamos para receber os bombardeiros “Mig-17” que na verdade têm a sua correspondente em terra, a Infantaria Motorizada.
Está a dizer que a formação teve lugar em Nacala?
Sim, durou uns 30 dias, para a complementariade inter-armas que era imperiosa para a formação das brigadas. Fomos a Tete, a partir da Beira,levando connosco os tanques T24 e BTR-152 e BT-60-PP. Saímos de comboio com uma paragem em Inhaminga e depois fomos até Tete, muito precisamente em Moatize. Estava-se em plena guerra de agressão da Rodésia do Sul, hoje Zimbabwe. Os rodesianos ter-se-ão apercebido e o exército moçambicano passou a ser uma séria ameaça. Ian Smith incomodava ininterruptamente, sob o pretexto de que estava a perseguir guerrilheiros zimbabweanos, da ZANU-PF, através do seu braço armado, as ZANLA, que estariam em Moçambique.
Moçambique estava a dar guarida aos guerrilheiros zimbabweanos…
Não era dar guarida, afinal um povo deve salvar o outro povo quando está em sofrimento, naquilo que o nosso processo de libertação nos ensinara a chamar solidariedade, sem a qual não nos sentiríamos nunca livres; enquanto nas nossas fronteiras havia quem clamava pela liberdade. Era preciso pôr em pé o internacionalismo no sentido mais concreto.Naquela altura bombardeava-nos, e em 1978 não era só em Tete, como no sul, particularmente em Gaza, digamos, toda a linha de fronteira. Estou-me a lembrar de Pafúri, Mapai, Chicualacuala, Combomune, entre outras regiões.
Mas no caso de Tete, o que aconteceu ali, na fronteira de Cuchamano?
Havia sinais de que o Smith pretendia invadir o nosso território, a partir dali. Antes que fossemos surpreendidos houve um competente reconhecimento através do General Zacarias, num grupo onde eu estava, na companhia de especialistas russos. Chegamos à fronteira, por volta das 16h30 e regressamos a cidade de Tete. No instante em que nos encontramos no posto fronteiriço, afinal, os soldados rodesianos viram-nos, a partir das suas trincheiras. Do nosso trabalho concluímos que a linha de fronteira estava toda minada. Nao se podia por um pé à frente, tudo estava impedido. Fomo-nos preparar em Tete.
Era desistência?
Não. O comandante Napulula ordena que a nossa reacção fosse forte, com aquela arma, BM-21, que entretanto só deveria ser usada com a anuência do comandante-em-chefe, em caso duma real e efectiva agressão. Estou a falar, portanto do chefe do Estado, na altura, Samora Moisés Machel. Não podia ser ninguém intermédio, muito menos um comandante de Brigada, a tomar a iniciativa.
Mas Napulula tomou a iniciativa…e qual foi o papel do Major Paiva?
Fui escalado, na qualidade de comandante do Primeiro Batalhão de Infantaria Motorizada, para avançar, que seria o de assalto. Quer dizer, estava combinado que entraríamos e dentro da accão o meu batalhão seria o responsável por entrar (assaltar). Pelas 17 horas chegou um avião inimigo de reconhecimento.Queríamos abatê-lo, mas depois desistimos, visto que com esse gesto chamaríamos atenção ao próprio inimigo, sobre qual seria a nossa posição e acção posterior. Abandonamos a ideia.
Anossa tropa se aproximou(lembre-se que tínhamos três pelotões de B10-do lado direito), portanto a Infantaria, que na verdade era todo o Primeiro Batalhão sob o meu comando. Precisávamos duma preparação, via sinal, que passasse por, pelo menos, um pequeno projéctil de correcção do fogo.
De quê estamos a falar, Major, quando nos referimos de correcção do fogo?
A Arma, a BM-21, estava a 23 quilómetros à nossa rectaguarda, onde um atirador competente estava à espera das indicações de quem estava próximo do alvo, que éramos nós. Estávamos em permanente contacto e queríamos certificar se acertaríamos em cheio.“Mandou” o projéctil e confirmou-nos que de facto a “andorinha” (projéctil) estava em cima.
Levou entre 2 a 3 minutos a passar o primeiro obus que foi cair na estrada que ia ao monte Daloe, do outro lado da fronteira. Fizemos a correcção, 004, à direita. O segundo projéctil foi cair directamente nas bombas de combustíveis, do outro lado do Cuchamano rodesiano e, imediatamente, explodiram e começaram a arder.
A seguir?
“Alvo capturado” foi a resposta que demos e ordenamos que então fosse em rajada. Meu irmão, aquilo foi “tsa, tsa, tsa,tsa,….” parecia de facto aviões a jacto! Daquele jeito nem esperávamos! Aquele quartel de Cuchamano, do lado da Rodésia, ficou, em poucos minutos, em cinzas! Eram as bombas de combustivel a arder, as casas a cair, as casernas a soterrarem-se, tudo a desfazer-se. Cada projéctil, digamos,normalmente, afecta 200 metros quadrados de raio.Agora, imagine 80 projécteis que usamos em Cuchamano, de duas rampas de lançamento, multiplicados por 200 metros quadrados de raio… de quanta área afectada estamos a falar?
Depois?
Foi difícil, digo, impossível, assaltar e só tivemos que esperar a partir deste lado da fronteira e informar imediatamente ao comandante: primeiro, que o fogo era intenso, segundo, que o campo estava completamente minado, não havia como passar para lá?
A artilharia dos rodesianos, as nossas armas, tudo ao mesmo tempo, o campo completamente minado, não havia por onde passar, sob o risco de perdermos muitos camaradas! Três B-10 e tudo aos ouvidos. O comandante acabou tomando a decisão de não assaltar e deter-nos-íamos a disparar as armas pesadas. Tínhamos que recolher. Saímos e chegamos à nossa Base que era o quartel, na cidade de Tete.
Qual foi a consequência, entre vocês?
Três dias depois, o comandante Napulula foi chamado a Maputo. Na verdade não era da sua tutela decidir que aquela arma fosse usada, mesmo durante a Luta Armada de Libertação Nacional nós usávamos uma arma de apenas um cano equiparável.
…e usaram na luta armada?
Usamos, sobretudo nos fins, em 1973, mesmo assim com a autorização do comandante-em-chefe, Samora Machel. Usamos em Chitima, o comandante era o General Tomé Eduardo e na cidade de Tete, esteve à frente o camarada Timaca e o General Hama Thai.
Então não houve nenhuma invasão a Cuchamano, da nossa parte…
Não. Mas todo o mundo gritou que o exército moçambicano tinha armas de destruição maciça, apesar de não estar em guerra convencional, ora isso, ora aquilo, ora aqueloutro… ene, ene, ene coisas, e que tínhamos usado aviões para bombardear a Rodésia, etc,etc,etc. Não era verdade, não era, não era aviação não, era BM-21.
Mas o que é BM-21?
Pode ser que haja quem explique melhor tecnicamente. Mas para nós, designávamos assim, àquela plataforma com 40 canos, cada uma das quais levando um projéctil, que no ponto de chegada atinge uma área de 200 metros quadrados de raio. Dantes, durante a Luta de Libertação, chamávamos B-11-p,e era de um cano.
O comandante Napulula chegou a ser punido pela indisciplina?
O comandante da 4- Brigada, Napulula, não terá sido punido, como chegou a alastrar-se, mas nunca mais foi a Tete, sendo que por questões de ordem militar foi repreendido, por se tratar duma arma a usar em casos de agressão de grande escala e contra uma maior concentração de forças invasoras.
Pedro Nacuo