Reportagem

Como chamar “papá” a um pai que viola?

A violência sexual ultimamente parece morar dentro de casa, destacando-se os pais como violadores das próprias filhas. Estamos a falar de filhas com idade inferior a dez anos que sofrem agressões muitas vezes com cumplicidade de toda a família. O mundo parece que está mesmo perto do fim.

Para compreender este fenómeno, o chefe do Posto Policial de Hulene B, na cidade de Maputo, manda-nos ler a bíblia, concretamente o  II Timóteo 3:1-6.

Passamos a ler: “nos últimos dias, sobrevirão tempos trabalhosos; porque haverá homens amantes de si mesmos, avarentos, presunçosos, soberbos, blasfemos, desobedientes a pais e mães, ingratos, profanos, sem afecto natural, irreconciliáveis, caluniadores, incontinentes, cruéis, sem amor para com os bons, traidores, obstinados, orgulhosos, mais amigos de deleites do que amigos de Deus…”

A descrição relata a última agonia do mundo que revela homens sem escrúpulos, “cruéis”, capazes de tudo no seu último passeio pela terra.

Só desta forma podemos entender que uma menina de apenas dois anos de idade seja violada pelo próprio pai que acha que ela é capaz de ser sua mulher. Viola-a, alheio às dores da própria filha, aos gritos que ela solta e ao sangue que jorra em consequência da violência do acto.

Lina Munguambe, médica de Clínica Geral no Hospital Geral de Mavalane, em Maputo, conta-nos, revoltada, que esta criança sofreu prolapso vaginal devido a violência praticada pelo próprio progenitor. Ou seja: a menina quase perdia a vagina, pois foi grave a deformidade criada.

Mais difícil será entender a atitude da mãe ao certificar-se que o marido violou a filha: "Não quero que este caso chegue a Polícia", disse.

O quadro de violações, na esfera familiar, parece estar a criar uma nova "moda". Geralmente as vítimas sofrem no silêncio, pois receiam denunciar o próprio irmão ou o próprio pai.

Outra história assustadora ocorreu numa casa onde vive o pai, um rapaz e uma menina. A mãe falecera.

Porque o rapaz dormia com a irmã, de nove anos de idade, fez sexo com ela. Imaginem o que aconteceu: o pai, quando descobre isto, transfere a filha para o seu quarto e passa a ser ele o parceiro sexual.

Pai e filho passam, assim, a disputar a menina de nove anos com naturalidade monstruosa até que os vizinhos percebessem.

Não há melhor forma aceitar que de facto aqui a emenda foi pior que o soneto. O pai, ao invés de reprovar a atitude de um filho que violava a irmã, assumiu ele próprio o protagonismo selvagem, repetindo o erro.

Virgílio Ceia, médico legista que nos conta a história, ali no Hospital Geral de Mavalane, acrescenta que este não foi o único caso dos muitos que acompanhou. Uma menina de treze anos, igualmente órfã de mãe, primeiro foi abusada pelo irmão mais velho. Quando o pai percebeu que rolava qualquer coisa dentro de casa, também exigiu a sua parte.

Este tipo de desgraça, no seio familiar, por vezes traz gravidezes entre irmãos, entre primos e até país e filhas. Definitivamente, a nossa sociedade está, gradualmente, a perder valores, vivendo alheia a referências morais. A família que devia ser primeiro esteio da educação, está a modelar espelho paranóico do satanismo, tornando crianças as vítimas de sadismo, independentemente da idade. Isto em pleno Moçambique.

Passemos para outra história. Um violador, movido por crenças obscuras, violou uma criança de nove anos. A médica Lina Munguambe não tem dúvidas que ele sabia que estava a transmiti-lá vírus de SIDA. "Ele tomava medicamentos antiretrovirais e abusava a menina sem usar preservativo", conta.

Para este violador, dormir com uma criança virgem era meio caminho andado para se libertar do vírus. Ele seguia uma crença macabra ensaiada na vizinha Suazilândia, onde muitas crianças, bebés incluídos, foram violadas por homens adultos na chamada limpeza do HIV.

Não é tudo. Atalia Marcela Tovela é conhecida como menina que não para de chorar. Com 18 anos de idade, não conhecia homem e vivia com irmão do pai no bairro Hulene B, arredores da cidade de Maputo. O tio, Arlindo Manuel Tovela, separado da esposa, começou a convidar a sobrinha para visitá-lo no quarto.

Conta a menina que no primeiro dia a conversa teve como tema sugestivo: custo de vida e o que se pode fazer para enfrentá-lo.

No segundo dia, lá no quarto, o tio caprichou ainda mais no tema. Falariam sobre a pobreza e também de como as meninas de Maputo conviviam com o problema.

Este último tema carecia, segundo o tio, de aulas práticas. "Ele me perguntou se eu já era mulher, se sabia como me safar da vida difícil que vivemos nos dias de hoje. Eu respondi que não", conta Atalia.

O tio, sem delongas, puxou a sobrinha e fez dela mulher, recorrendo à força. Vamos poupar o leitor de pormenores. A verdade é que os dois mantiveram a relação forçada durante muito tempo.

Sobrinha e tio passaram a ser marido e mulher sem que Julieta Cossa, a mãe de Arlindo, percebesse que algo estranho estava a acontecer dentro de casa. Seriam os vizinhos a descobrir tudo, tendo avançado para a denúncia do caso no posto policial local.

Por compreender fica a frequência dos encontros num ambiente de violência. Atalia justifica-se recorrendo à pobreza que vive. "Ele me ameaçava em tirar-me de casa se eu contasse a história. Violou me nos dias 1,2,3,4,5,6 e 7 de Janeiro. Eu tinha que aceitar porque não tinha para onde ir", argumentou.

Julieta Cossa, a mãe do violador, faz coro no choro lado a lado com neta violada pelo filho. "Ele não tem vida regrada. Depende de álcool, por isso a mulher lhe fugiu. Agora desgracou esta criança", disse banhada em lágrimas.

O processo-crime está ainda na instrução, estando nas mãos da Polícia de Investigação Criminal (PIC). Segunda-feira, amanhã, Julieta Cossa e neta regressam à esquadra para conhecer a trajectória do caso até ao julgamento. 

DEZEMBRO: MÊS APOCALÍPTICO

Dezembro revelou-se mês cruel em termos de violações. O alarme soou através da Ministra da Saúde, Nazira Abdula que revelou um quadro negro durante a quadra festiva.

A governante salientou, que a violência sexual acentuou-se mais em crianças dos zero aos catorze anos, tendo-se registado 61 casos e 52 em adultos. O mesmo comportamento observou-se em igual período do ano anterior.

Em relação aos casos de violação sexual, registou-se um aumento em termos de valores absolutos no Hospital Central de Maputo (21), Hospital Geral de Mavalane (20), Hospital Geral José Macamo (49) e Hospital Central de Nampula (5).

No período 2015/2016 o Hospital Central de Maputo registou maior número de violações sexuais com 27 casos contra 6 casos do período anterior.

No geral comparando os dois últimos períodos registou-se um aumento de 91 para 113 casos, isto é , um aumento de 24 por cento.

Virgílio Ceia, Médico Legista no Hospital Geral de Mavalane,  descreve Dezembro como mês verdadeiramente apocalíptico no que toca a ocorrências relacionadas a crimes sexuais.

Explicou que noutros meses a média mensal tem variado entre 26 a 28 casos de violação. Contudo, em Até 15 de Dezembro, o hospital já tinha registado de 30 casos.

Curiosamente, desde então os números não têm parado de disparar, Janeiro registou 26 casos, quase um por dia.

Infelizmente as violações incidem sobretudo em raparigas entre os 10 e 14 anos. Segundo nosso entrevistado há registo de casos que envolvem crianças com 2,3, 4 anos de idade. "Há violadores que tem coragem de despir uma criança de 2 anos e fazer dela mulher", lamentou, ressalvando que muitos casos registados envolvem país, padrastos, tios.

No hospital de Mavalane existe o Centro de Atendimento Integrado às Vítimas de Violência, uma experiência que o Ministério da Saúde pretende expandir pelo país

As vítimas beneficiam de profilaxia após exposição ao risco durante a violação sexual, tudo num esforço que visa prevenir doenças sexualmente transmissíveis como sífilis e HIC/SIDA.

Por outro lado, o centro providencia pacotes de contracepção contra gravidezes indesejadas para adolescentes, jovens e adultos que passaram pela experiencia de vítimas.

Além disso, o médico legista recolhe provas visando a elaboração de laudo pericial encaminhado ao Ministério Público para instauração de processo-crime

Poucos casos vão a tribunal

. domingo publica molduras previstas para crimes sexuais

Curiosamente dos 1080 casos de violação sexual registados no ano passado em Mavalane, apenas 260 chegaram ao tribunal.

Tal realidade mostra que algo está a falhar sabido que em causa estão crimes públicos, que não dão lugar a negociação.

Tratando-se de crimes praticados na esfera familiar, muitas vezes as famílias optam por silenciá-los, cabendo ao Ministério Público o papel de levar o processo até ao julgamento.

Na ausência de julgamento, os violadores perpetuam a acção, pois sabem que contarão com protecção das famílias e as vítimas, que são crianças, são incapazes de levarem avante o processo.

Os crimes de violação de menores de dezasseis anos têm moldura penal bastante forte no quadro do novo Código Penal.

domingopublica alguns artigos que penalizam tais crimes.

Artigo 160

1. São hediondos os crimes praticados com extrema violência, crueldade, sem nenhum senso de compaixão ou misericórdia de seus agentes, causando profunda repugnância e aversão a sociedade.

2. Os crimes hediondos compreendem:

a) Homicídio praticado em actividades típicas de grupos de extermínio, ainda que cometido por um só agente;

b) Homicídio praticado como meio para consumar o roubo;

c) Homicídio praticado em consequência de violação de pessoa vulnerável;

d)Rapto seguido de morte da vítima;

e) Violação de menor de 12 anos;

f) Epidemia provocada por agente com resultado morte;

g) Falsificação e adulteração de produtos destinados a fins terapêuticos ou medicinais;

h) Terrorismo, quando praticado com recurso a violência física oupsicologica através de ataques localizados a elementos ou instalações de um governo ou população, de modo a incutir medo e terror;

i)Tortura, quando o agente impõe sofrimento físico ou psicológico por crueldade, intimidação, punição para obter uma confissão, informação ou simplesmente por prazer;

j) Genocídio quando o agente pratica assassinato deliberado a pessoas motivada por diferenças étnicas, nacionalidades, raciais um religiosas.

3. Os crimes referidos no número anterior são punidos com pena de prisão de vinte a vinte e quatro anos.

Artigo 218

Aquele que tiver coito com qualquer pessoa, contra sua vontade, por meio de violência física, de veemente intimidação, ou de qualquer fraude, que não constitua sedução, ou achando se a vítima privada do uso da razão, ou dos sentidos, comete o crime de violação, e será punido com pena de prisão maior de dois a oito anos.

Artigo 219

Aquele que violar menor de doze anos, posto que não proíbe nenhuma das circunstâncias declaradas no Artigo 218 , será punido com pena de vinte a vinte e quatro anos de prisão maior…

Artigo 220

Quem praticar qualquer acto de natureza sexual, com menor de dezasseis anos, com ou sem consentimento, que não implique cópula, é punido com pena de prisão de dois a oito anos.

Artigo 221

1. Todo o atentado contra o pudor de uma pessoa, que for cometido com violência, quer seja para satisfazer paixões lascivas, quer seja por outro qualquer motivo, será punido com prisão.

2. Se a pessoa ofendida for menor de dezasseis anos, a pena será em todo o caso à mesma, posto que se não prove a violência.

Artigo 222

Nos crimes de que trata está secção, as penas serão substituídas pelas imediatamente superiores, se:

a) O agente for ascendente, adoptante ou irmão da pessoa ofendida;

b) O agente for tutor, curador, mestre ou professor dessa pessoa, ou por qualquer título tiver autoridade sobre o ofendido ou for encarregado da sua educação, direcção ou guarda; ou for ministro de qualquer culto, ou servidor público de cujas funções dependa negócio ou pretensão da pessoa ofendida;

c)O agente for empregado doméstico da pessoa ofendida ou da sua família, ou, em razão da profissão, que exija título, tiver influência sobre a mesma pessoa ofendida;

d). Do crime resultar gravidez;

e) do crime resultar doença ou infecção de transmissão sexual;

f) Se a violação for cometida com ameaça de armado fogo ou branca;

g) Se a violação for cometida por pessoal pertencente às forças armadas, paramilitares, polícia ou segurança privada.

2. Verificando se a transmissão de HIV e SIDA pelo agente ao ofendido, nos crimes de que trata está secção, as penas agravadas nos termos do número anterior serão substituídas pelas imediatamente superiores.

Artigo 223

1. Nos crimes previstos nos artigos antecedentes não tem lugar o procedimento criminal sem prévia denúncia do ofendido, ou de seus pais ou adoptantes, avós, cônjuge ou pessoa com quem viva como tal, irmãos, tutores ou curadores, salvo nos casos seguintes:

a) Se pessoa ofendida for menor de dezasseis anos;

b) Se for cometida alguma violência qualificada pela lei como crime, cuja acusação não dependa da denúncia ou da acusação da parte;

c) Se a pessoa ofendida viver em estado de pobreza ou se achar a cargo de estabelecimento de beneficência.

2. Depois de dada a denúncia e instaurado o processo criminal, o perdão ou desistência da parte não susta o procedimento criminal.

Artigo 249

1. Aquele que, consciente do seu estado infeccioso, mantiver coito consentido ou não consentido, com mulher ou homem com quem tem ou teve uma relação, laços de parentesco ou consanguinidade ou com quem viva no mesmo espaço, transmitindo lhe doença ou infecção de transmissão sexual, e punido com pena de prisão maior de dois a oito anos, sendo a pena mínima elevada a três anos.

2. Se do coito resultar a transmissão de vírus de imunodeficiência adquirida, a pena é de oito a doze anos de prisão maior.

Menores de dez anos

apresentam se com hímen lacerado

Menores de dez anos são impiedosamente violadas por adultos. Porque ainda não tinham naturalmente iniciado a vida sexual, apresentam se nas enfermarias do Hospital Central de Maputo com o aparelho sexual desfigurado, quase sempre com homem lacerado.

Jacinto Silvéria, médica legista e chefe de Departamento de Medicina Legal no Hospital Central de Maputo, disse ao DOMINGO que estas criancas são forçadas, desta forma, a passarem por experiências de cirurgia para reverter a lesão.

A deformação do órgão genital das menores violadas muitas vezes atinge a zona do períneo e as vezes o próprio ânus.

Silveria afirmou que a violação de menores de dez anos está a preocupar aquela unidade sanitária, por sinal a maior o país. Sem apontar números, sublinhou que está a crescer o número de casos de assistência às vítimas nas enfermarias .

Lamentou a situação tendo em conta não só as lesões físicas, mas também traumas que no futuro poderão inibir a criança a desenvolver a sua sexualidade normalmente.

A nossa entrevistada explicou que no departamento que dirige tem sido providenciado acompanhamento psicológico as vítimas.

Acrescentou que casos de violacao sexual abrange igualmente outras faixas etárias, ocupando cada vez com maior frequência médicos nas enfermarias de Medicina, Ginecologia e até de Pediatria.

Garantiu que as vítimas recebem tratamento profiláctico contra HIV e no caso de adolescentes e adultos, quando necessário, e providenciado um pacote de contracepção, para que dá violação não resultem gravidezes indesejadas.

A Medicina Legal sempre produz laudo pericial relatando lesões contraídas no acto de violação, um documento que é encaminhado ao Ministério Público para instauração de processos crime aos indiciados.

VIOLAÇÕES SEXUAIS

Rede pela defesa de direitos

sexuais mostra indignação

A Rede pela Defesa de Direitos Sexuais e Reprodutivos mostra indignação com recrudescimento de crimes de natureza sexual no país sobretudo na recente quadra festiva.

A rede sublinha que o informe apresentado no dia 4 de Janeiro de 2016 pela Ministra da Saúde, NaziraAbdula, trouxe algumas estatísticas sobre a situação de trauma no país, estatísticas que foram chocantes.

“Chocaram-nos os130 casos de crimes de violação sexual atendidos nas unidades sanitárias a nível nacional”, dos quais “metade em menores de quinze anos”, inclusive em crianças de tenra idade, refere a organização.

Ressalvou que este número representa um aumento de cerca de 42% comparativamente ao mesmo período de 2014 (91 casos reportados).

A Rede pela Defesa dos Direitos Sexuais e Reprodutivos manifesta, perante estes dados, a sua repulsa, indignação  e alerta que estes números podem representar somente uma parte da real dimensão do problema, pois muitos casos são silenciados a nível doméstico, não chegandoàs autoridades sanitárias ou policiais. “Casosháque são resolvidos a nível costumeiro e por acordos familiares, como pagamentos de multasque fazem com que as estatísticas ora apresentadas estejam longe de elucidar o verdadeiro drama deste problema”, salienta a rede.

Acrescenta que perante tamanha monstruosidade não devemos ficar passivos, sendo responsabilidade de toda a sociedade agir.

De referir que Moçambique é signatário das principais convenções internacionais e regionais visando a protecção dos direitos das mulheres e crianças. A sua Constituição, no seu artigo 40, nº1, reconhece o direito à integridade física e moral das pessoas e a proibição da tortura ou tratamentos cruéis e desumanos. O Código Penal tipifica a violação sexual como crime público esemi-público.

Deste modo, a Rede de Defesa de Direitos Sexuais e reprodutivos defende a aplicação efectiva das leis que ponham fim à impunidade existente dos violadores assim como medidas de protecção e segurança preventivas que permitam às mulheres e raparigas viver em liberdade.

Bento Venâncio
bentok1000©yahoo.com.br

Fotos de Inácio Pereira

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