As declarações de amor à paz e ao diálogo, reiteradas em Gorongoza por Afonso Dhlakama, diante de concorrida imprensa, nacional e estrangeira, devem ser cuidadosamente examinadas por
todos. Existem quatro pontos essenciais que distinguem, de forma excepcional, o líder da Renamo.
O primeiroponto é que ele assumiu, final e publicamente, a autoria moral e material dos ataques que ceifaram vidas de compatriotas nossos ao longo do troço Save – Muxungue, aliviando-nos do embaraço vocabular que tínhamos em distinguir entre “bandidos armados” e “oportunistas descontentes”, vindos da própria Renamo.
Está de parabéns, contudo, por ter dado o comando aos seus homens para o término dos ataques armados. Não imagina, presidente Dhlakama, o bem que fez ao país e ao nosso povo.
No entanto, por muito que custe a muitos acreditar, a Renamo prefere desaparecer politicamente do mapa democrático moçambicano, mas continuar a existir militarmente no país, porque o ofício beligerante é a sua marca genética e, por conseguinte, o seu instrumento de intimidação e de poder.
No contexto actual em que se encontra, de fragilização política contínua, não interessa à Renamo e a Afonso Dhlakama participar em nenhum evento eleitoral, porque sabe que vai perder as eleições, num jogo de votação limpo e transparente.
Nos últimos 10 anos, digamos, a Renamo nunca fez trabalho político conhecido para ganhar seja lá o que for em Moçambique. A estratégia em curso, de semear confusão, à luz de uma teoria de conspiração e caça às bruxas, é favorável à Renamo, porque permite a este partido criar no país um clima de violência, instabilidade e tensão, susceptível de impedir a realização de eleições.
E, não havendo eleições, e apesar de os seus homens estarem a matar pessoas civis e indefesas, Dhlakama estaria acomodado para forçar um diálogo de partilha de poder com o Presidente Guebuza, com vista a instalar um governo de unidade nacional. O Jornal Notícias do dia 4 de Julho cita Dhlakama a afirmar que “se o Chefe do Estado, Armando Guebuza, terminar o mandato sem que sejam convocadas eleições, o seu partido vai exigir um Governo de Transição”. Portanto, que não hajam dúvidas sobre as reais intenções políticas do líder da Renamo.
Na concepção do líder da Renamo, cujo desgaste físico e de liderança já é notório, esta partilha seria bipolar, ou seja, apenas entre a Frelimo e a Renamo. O MDM e os outros partidos que se lixem!
Em democracia saudável, como todos sabemos, as coisas não são bem assim e alguém precisa de dizer isso a Afonso Dhlakama, aparentemente pouco dado à maçada de leituras sobre assuntos constitucionais e regimentais.
Osegundo ponto que me mereceu atenção na conferência de imprensa de Gorongoza é a reivindicação excessiva que Dhlakama chama para si sobre a sua suposta “abertura” ao diálogo.
Temos todo o direito de questionar essa sua abertura e aqui talvez importa primeiro refrescar a memória aos nossos compatriotas. Por duas vezes, em 2001 e 2012, o Presidente da República, Armando Guebuza, não teve problemas nenhuns em deslocar-se a Nampula para encontrar-se e dialogar directamente com o líder da Renamo.
No segundo encontro entre ambos, que teve lugar em Abril de 2012, vimos, em conferência de imprensa em que só ele falou, um Dhlakama bastante eufórico a destacar como grande ganho do encontro o facto de ter trocado o número de telefone pessoal com o Presidente Guebuza, com a permissão de o ligar a qualquer hora e momento, sempre que pretendesse. Vou citar as suas palavras:
“Como sabem, era muito difícil encontrar-me com o meu irmão Armando Guebuza. Era pessoa que inicialmente dizia que nada havia a falar com o líder da oposição. Este encontro, que é o segundo, significa uma viragem que é boa para toda a sociedade moçambicana, sobretudo para os jovens, porque estamos a procura de soluções para problemas que afectam a sociedade civil”.
Continuando, Dhlakama disse ainda que “trocámos números de telefone. A qualquer momento eu posso ligar para ele, mesmo hoje à noite. Fizemos um acordo que, a partir de agora, possa haver encontros quando for necessário. Mas coisas leves podemos falar ao telefone, como acontecia com o meu irmão Chissano” (O País: 16/04/2012).
Uma questão interessante seria perguntar a Afonso Dhlakama quantas vezes usou desta abertura para a comunicação telefónica com o chefe de Estado, para colocar as suas preocupações, antes de se lançar vingativamente à estrada para matar civis. Se o Presidente Guebuza deu-lhe o seu número de telemóvel pessoal, para Dhlakama ligar sem pedir permissão, como é que se pode questionar a sua abertura ao diálogo?
O refúgio da Renamo ao diálogo não é inédito. A 29 de Março de 2001 Afonso Dhlakama deixou o presidente Chissano “pregado” na mesa, quando era esperado para a então terceira ronda de negociações visando ultrapassar o impasse das eleições de 1999, que a Renamo dizia ter ganho com 52% nas legislativas e 60% nas presidenciais.
Em actividade política activa e séria, só o facto de Dhlakama ter-se recolhido a Nampula, por dois anos, e agora para as matas de Gorongoza, por tempo indeterminado, isso só já é um refúgio. É autoflagelação política. O vazio que a sua ausência da capital política Maputo cria leva a que, por exemplo, a Renamo do Parlamento, a Renamo do Saimone Macuiane e a Renamo do ex-futuro governo sombra, estejam todas aparentemente desnorteadas, desarticuladas e a solo.
Estas três Renamos mantêm uma obediência que, para Dhlakama, é sinal de lealdade suprema, mas que, ao olho popular, deixa bastantes dúvidas, do ponto de vista de alcance e comprometimento político.
Ele não queria, por exemplo, que a bancada que agora está no parlamento, que incluiu o ilustre Macuiane, que agora se ensaia através da imprensa e com muita aceitação como Presidente da Renamo renovada,tomasse posse, mas ela tomou e o ignorou completamente. Voltaremos a este assunto mais tarde.
Para mim, os factos descritos acima mostram que, quando Guebuza disse, no passado dia 25 de Junho, na Praça dos Heróis, que quem se refugiava ao diálogo era a Renamo, afinal tem razão. É Dhlakama que se esquiva ao diálogo e não Armando Guebuza! O recurso do líder da Renamo aqui tem sido a retórica dilatória e o subterfúgio, tácticas que ele mostrou que domina de olhos fechados desde os tempos de Phalaborwa. Esse mesmo mítico Phalaborwa que, recentemente, apareceu caricaturado numa tenda na sede do MDM em Xai-Xai, a revelar o cordão umbilical!
Por isso é que ele condiciona que o diálogo tenha lugar aqui e acolá, ora debaixo das árvores lá no mato, ora na sede distrital, em Gorongoza, a 35 kms donde ele se encontra, ora em Maputo, mas com a condição de o Presidente remover as Forças Armadas do perímetro mais sensível. Tudo ladainha para boi dormir! Para assassinar Dhlakama, duvido que as Forças Armadas de Moçambique precisassem de movimentar, à luz do dia, dezenas e dezenas de blindados e contingentes militares, infiltrados, como ele diz, em autocarros de passageiros. Melhor que eu o próprio líder da Renamo sabe disso.
Ele ficou dois anos rodeado de força militar e policial na Rua das Flores, em Nampula, e nada aconteceu ao pobre homem. Todos sabemos que a estratégia de Afonso Dhlakama é, aparentemente, ganhar tempo, para que em Novembro, através da violência, ele consiga aplicar o golpe fatal de inviabilizar as eleições, para as quais ele não esta a fazer nada para participar. Isso explica a razão de ele se esquivar do tema da desmilitarização das suas forças, porque sem elas ele sabe que não é nada.
As conversações podem e devem ter lugar em qualquer ponto de Moçambique, como já tiveram lugar em Nampula, por duas vezes. O país é de todos e temos o direito de nos sentirmos livres nele. O país não pode ficar refém de joguinhos de cintura de um partido político armado e a imprensa tem o dever de dizer isso ao líder da Renamo.
O terceiro pontotem a ver com a acomodação da Renamo e dos seus apoiantes.
O apelo internacional em Moçambique, desde 1999, tem sido o de o País dar à Renamo e particularmente a Dhlakama, um papel mais importante no Estado, mesmo quando ele perde eleições e ainda que essa acomodação, nalgumas vezes, não esteja prevista na Constituição.
Armando Guebuza atribuiu um lugar a Dhlakama como membro do Conselho de Estado, mas este nunca foi ocupar aquela cadeira. No início de 2000, a Frelimo chegou mesmo a dar à Renamo a oportunidade de fazer listas de nomes para alguns lugares de Governador, mas Dhlakama rejeitou a oferta.
O que ele queria, pelo contrário, era o direito de nomear governadores nas seis províncias onde o seu partido tinha sido o mais votado, numa reivindicação visando dar “tacho” aos antigos militares. Dhlakama se esquece de que quando ele boicotou as eleições de 1998 perdeu, efectivamente, essa oportunidade de “alimentar os seus homens”.
A pressão que ele sofre das diferentes alas que querem recompensas materiais claras pelo que fizeram vai persegui-lo, muito provavelmente, por muito mais tempo e a tendência que o líder da Renamo sempre demonstrou é a de chantagear o “outro lado”, usando as armas.
Por tudo isso, penso que a desmilitarização da Renamo deve, sim, manter-se como tema central de debate nos próximos tempos, independentemente de ser ou não pré-condição para as actuais negociações em curso.
As capacidades bélicas da Renamo e a sua instrumentalização política devem, em sede de debate, ser ponderadas, não pondo, contudo, em causa o monopólio da violência legítima do Estado.
Oquarto ponto reside na questão do papel da sociedade civil. Em várias declarações que efectuou, Afonso Dhlakama sempre disse que em Moçambique a sociedade civil foi comprada pela Frelimo e que trabalhava para satisfazer a agenda deste partido.
Mas foi a sociedade civil organizada, sobretudo a igreja, que ajudou a trazer a paz em Moçambique. Parte importante dos membros dessa mesma sociedade civil foi vista em Satunjira na última quarta-feira, dialogando cordialmente com Dhlakama.
Desta vez não a chamou de nomes, mas nada no garante que não o faça num futuro próximo, porque essa é a sua principal característica: o dito pelo não dito.