Reportagem

OBRAS PÚBLICAS: Empreiteiros apelam à revisão de contratos

A Federação Moçambicana de Empreiteiros (FME) sugere que o Governo deve rever os contratos de obras públicas e abrir espaço para a rescisão por mútuo acordo uma vez que nos últimos tempos tem havido uma mudança acentuada de circunstâncias macroeconómicas que estão a descambar em despedimentos e encerramento de empresas.

Em entrevista ao nosso jornal, o presidente desta colectividade, Agostinho Vuma, aponta que perante a actual crise, impõe-se a renegociação de contratos para evitar que as empresas se vejam na contingência de processar o Estado por incumprimento de contrato.

O ideal é negociar os preços mesmo para assegurar que o balanço que deve ser chancelado pelo Tribunal Administrativo seja saudável e que retrate a realidade. Esta é a saída que vemos para a presente crise. Sentar, negociar e, se não houver alternativas, encerrar algumas obras. Tem de haver uma instrução clara nesse sentido, pois esse é um perigo que se avizinha para o nosso Estado”, alerta Vuma.   

Para ilustrar o impacto da crise económica no sector de construção civil e de engenharia, Agostinho Vuma afirma que a FME tem um registo de 16 empresas que despediram os seus trabalhadores e encerraram as actividades porque houve uma alteração muito forte dos preços dos materiais e, por causa disso, se acentuaram as dificuldades para a sua importação.

Com esta situação, os bancos decidiram reduzir a concessão do crédito ao sector, pois, com a escassez de divisas no mercado, as empresas não conseguem garantir a aquisição de materiais para continuar com os projectos”, sublinha.

Segundo Vuma, ainda neste ano prevê-se que haja uma reestruturação em massa de créditos em carteiras que se destinam às empresas de construção porque o desempenho não está ser a bom. “Isto vai fazer cair o crescimento do sector de 7,9 por cento, como o Governo antevia, para 2,9 por cento”.

A conversa com Agostinho Vuma estendeu-se também para matérias ligadas à ética de deontologia profissional dos empreiteiros que, em algumas circunstâncias, abandonam obras ou concluem-nas sem o menor respeito pelos requisitos de qualidade. Mas, dito pelo próprio Vuma, é mais autêntico, por isso transcrevemos as partes mais salientes em discurso directo.

MIL E SETECENTAS EMPRESAS

Que característica de fundo tem a Federação Moçambicana de Empreiteiros?

Somos uma organização inclusiva. Até 2005 éramos uma associação que se dizia que estava voltada para as empresas estabelecidas em Maputo. Mas, rapidamente, desfizemos essa imagem.

Como?

Criando associações provinciais de empreiteiros para que todas elas fossem membros da Federação Moçambicana de Empreiteiros. E, porque achamos que há uma classe que precisa de ser acarinhada na nossa estrutura, criámos o clube das grandes empresas.

Quem faz parte desse clube?

Aqui têm lugar as 33 empresas estrangeiras e algumas nacionais de alto gabarito, como a Soares da Costa, Mota-Engil, entre outras. Temos algumas como a CETA e outras operam com a Classe 7, que é a maior categoria. Assim conseguimos constituir uma organização mais inclusiva.

Para além da fusão em si, que ganhos traz este modelo?

O principal ganho é que em reuniões que impõem reformas temos condições de trazer outras ideias relevantes que não são apenas dos grandes, mas também das pequenas e médias empresas do sector.

No total, quantas empresas estão filiadas às associações que dão corpo à FME?

Temos um registo de 1700 empresas licenciadas. É verdade que a maior parte está na cidade de Maputo. Mas permita que lhe diga que temos o desafio de criar um cadastro nacional das empresas de construção. Porque reparamos que o Governo usa dados estatísticos diferentes dos nossos.

Como assim?

Baseiam-se nas empresas que pediram o alvará uma vez e isso empola o número de empresas. A nossa actividade é muito dinâmica, há empresas que são criadas para atender a um projecto imobiliário específico e não necessariamente para desenvolver actividades de empreiteiro de obras públicas e construção civil. E logo a seguir desaparecem. Mas, nos registos do Governo, essas empresas existem.  

Temos a FME. O que ela tem estado a fazer de 2005 a esta parte?

Quando criámos a FME havia uma reclamação generalizada sobre a inclusão das empresas moçambicanas em obras de grande dimensão, sobretudo aquelas que passam por concurso internacional e as obras públicas promovidas pelo Estado e também em relação à ausência de uma legislação capaz de proteger as empresas nacionais. O Governo dizia primeiro organizem-se para nós ouvirmos uma única voz e juntos vermos que tipo de reformas podemos considerar urgentes.

Eram estas as grandes preocupações da época?

Sim. Mas também éramos mais descapitalizados, com problemas de tecnologias, recursos humanos, falta de liquidez para adiantamento de obras, falta de financiamento, que até hoje se regista, enfim.

QUEREMOS MAIS

Volvidos estes anos, que avaliação fazem?

Em relação às políticas e incentivos de participação de nacionais em grandes projectos evoluímos bastante. Tivemos uma primeira reforma que foi o decreto 54/2005 de 13 de Dezembro (que foi revogado pelo Decreto 15/2014 de 24 de Maio). Veja que criámos a federação em 2005 e, no mesmo ano, conseguimos influenciar que a legislação fosse mais abrangente. A legislação anterior era péssima porque propiciava muita corrupção. Não havia concursos públicos e isso dava azo a problemas de transparência que, como sabe, baixa a competitividade.

Em relação à protecção das empresas?

Também tivemos ganhos porque foi possível definir quais são as obras que devem ser restringidas aos moçambicanos. Começou com um tecto que ia até um milhão e oitocentos mil meticais. Pouco depois passámos para três milhões e hoje podemos falar de cerca de cinco milhões de meticais. Essas obras são destinadas exclusivamente para concursos a nacionais.

Isso é um grande ganho?

É um grande ganho porque em dez anos conseguimos passar para uma fase em que podemos dizer que sim há nacionais, não importa se são filiados ou não à FME, mas são moçambicanos e estão a fazer o trabalho. Mas também influenciámos a forma de licenciamento dos empreiteiros. Foi possível o Estado confiar em algumas empresas adjudicando obras de grande valor. Temos boas referências um pouco por todo o país de empresas de moçambicanos que conseguiram fazer boas obras.

Podemos citar exemplos de grandes obras feitas por nacionais?

Temos quase todos os palácios da justiça. Temos o Banco de Moçambique ao nível das províncias, exemplos de estradas, incluindo na Estrada Nacional Número Um. Tivemos o consórcio que fez a nova ponte de Tete. No passado só se exportava divisas, mas agora esse quadro mudou e muito.

Pelos vistos está muito satisfeito…

Estou, porque é visível o conceito de inclusão. De moçambicanizar as obras. De privilegiar os nacionais na maior parte das obras nacionais que são feitas com o Orçamento do Estado. Mas pode crer que queremos mais.

Mais?

Sim. Estamos a pensar na capitalização das empresas pela banca.

De que forma?

As empresas terem uma carteira de obras que lhes permitam ter uma maior elegibilidade para financiamento bancário, ou seja, se estou a girar muito dinheiro tenho a possibilidade de o banco analisar o meu historial contabilístico e colocar-me facilidades de acesso ao dinheiro.

ABANDONO DE OBRAS

Parece boa visão, mas sabe que a imagem que os empreiteiros têm na sociedade não é boa. Abandonam obras de escolas, centros de saúde e reclama financiamento?

Essa reclamação generalizou-se em 2008 e 2009. A imprensa falou muito desse fenómeno e nós fizemos um levantamento para saber se era verdade ou não.

E o que encontraram?

Vimos que sim existiam casos de abandono de obras, mas muito poucos.

Poucos?

Sim. E desse grupo constatámos que resultavam da corrupção. Há empresas que tinham sido pagas na totalidade, o que infringe a legislação que não permite o pagamento na totalidade sem garantia. A lei permite que se pague tudo, mas contra uma garantia bancária. A garantia é uma espécie de um cheque visado. Esta situação ocorria em sítios onde tínhamos, infelizmente, funcionários públicos que queriam tirar algum proveito da sua posição e pagavam às pressas para depois dividirem o dinheiro com alguns empreiteiros desonestos.

Conseguiram caracterizar os praticantes destes actos do vosso lado?

Isto era feito maioritariamente com artesãos, aqueles que nem têm classificação de empreiteiros, e também por empresas que não estavam filiadas às nossas associações provinciais e, por via disso, à federação dos empreiteiros.

Qual foi o passo a seguir, uma vez que a vossa imagem é que fica chamuscada quando isto acontece?

Investigámos mais e descobrimos que havia também falta de capacidade técnica e financeira das empresas. Algumas calculavam mal a obra e, a meio do percurso, preferiam fugir. A maior parte destes casos esteve ligada à construção acelerada de escolas e de alguns centros de saúde porque havia uma imposição do tecto financeiro para a execução das obras.

Pode esmiuçar isso?

Naquela altura, para fazer uma sala de aula pagava-se 100 dólares por metro quadrado e, naquela altura, 100 dólares correspondiam a 2400 meticais. Era muito pouco. A realidade indicava que por cada metro quadrado se devia investir pelo menos 300 dólares para se poder atingir o nível de acabamento que se exigia. Algumas empresas aceitaram embarcar nesse tipo de projecto porque não queriam ficar sem obras, e não se importavam com a conclusão ou não dos trabalhos.

Muito complicado…

As empresas que eram filiadas à FME e que aderiram a isso eram de Gaza e Niassa. As das restantes províncias acataram à nossa ordem e não se envolveram. Também é importante observar que nos últimos dez anos surgiram muitas empresas de construção, e isso foi fruto da dinâmica que o país teve.

Então as empresas filiadas à FME estão isentas de qualquer mácula?

Bom, tivemos algumas empresas que tiveram problemas com o cumprimento dos contratos. Não era por abandono.

Não cumpriam com os contratos porquê?

Por causa da sua estrutura. Eram empresas com uma estrutura pequena e não tinham como se lembrar que era preciso alertar ao dono da obra que este está a demorar com a liquidação das facturas. Outro factor muito importante que está associado a isso era a falta de um instrumento que permitisse a revisão de preços.

Que preços?

Por exemplo, houve situações em que a chuva cortou estradas e, para transportar os materiais até ao local da obra implicava dar uma grande volta, fazer transbordos ou suspender os trabalhos por meses. Quando fosse possível prosseguir com os trabalhos, o empreiteiro era obrigado a executar a obra com aquele valor do contrato, quando houve uma visível mudança de circunstâncias.

Que saída para estas situações?

Analisámos tudo isto e decidimos que era preciso criar um código de conduta para conseguirmos controlar a classe e não mancharmos aqueles que fazem o trabalho como deve ser.

E esse código está a funcionar?

Está a funcionar. Já tivemos uma denúncia, este ano, que nos chegou de Nacala. Mandámos uma equipa e verificámos que havia indícios de corrupção e, para que a matéria fosse conclusiva, solicitámos a intervenção da Procuradoria-Geral da República.  

FACE À CRISE FINANCEIRA

É preciso renegociar os contratos

O maior cliente que as empresas do ramo de construção civil e de engenharia têm é o Estado. Essa relação é saudável?

É, mas continuamos a ter situações de obras que não têm fundos, supostamente por causa do SISTAFE.

Não percebi…

Olha, não se pode lançar uma obra sem dinheiro, mas vemos algumas direcções provinciais e entidades públicas a lançarem obras como forma de pressionar as Finanças a dar a dotação. Na verdade, estamos a ser usados.

Falemos da actual conjuntura económica…

É difícil porque temos empresas com dificuldades tremendas para concluir as suas obras. Quase todos contam com a banca para financiar a sua actividade e os bancos não pagam tudo de uma vez, pelo que temos de esperar que o Estado, que é o dono da obra, honre o contrato.

E isso não está a acontecer?

Ultimamente não tem havido pagamentos de forma generalizada. Quando a esses empreiteiros foi adjudicado esse volume de obras eles contavam que o Estado ia sempre cumprir. Foram-se comprometer com o banco para acelerar as suas actividades e hoje o banco quer o seu dinheiro de volta ao mesmo tempo que o Estado quer ver as obras concluídas, apesar de não ter disponibilidade atempada para pagar. Esta crise está a levar alguns empreiteiros a pedir dinheiro à banca para pagar salários e não para fazer investimentos. Isso é uma situação muito invulgar. Indesejável.

E como lidam com essa situação?

Sabemos que tudo isto tem a ver com o desempenho da nossa economia, muitas obras são financiadas pelo Orçamento do Estado que está apertado porque não está com ajuda habitual. Hoje temos 16 empresas que quiseram evitar os custos fixos e acumular dívidas e decidiram fechar.

A saída é fechar? Não há outras alternativas?

O Estado devia oficializar a rescisão dos contratos por mútuo acordo para evitar que este peso todo recaia sobre ele. Estou a ver um futuro em que todas as empresas de construção civil estão a processar o Estado. Se quisermos evitar isso, nós como direcção da Federação Moçambicana de Empreiteiros estamos a alertar em tempo útil. É necessário negociar os contratos. Onde houver alguma disponibilidade que se negocie para concluir as obras e onde não houver que se rescinda por mútuo acordo.

Porquê tem de se processar o Estado?

Porque há mudança de circunstâncias. Com esta conjuntura a circunstância mudou. Por exemplo, se eu assino um contrato consigo numa altura em que o saco de cimento custa 200 meticais e, passados alguns meses, o mesmo saco passa a custar 600 meticais… algo deve ser feito a nível do contrato porque eu, como empreiteiro, posso ser prejudicado em 150 ou até 300 por cento.

Portanto, defende a renegociação…

O ideal é negociar os preços mesmo para assegurar que o balanço que deve ser chancelado pelo Tribunal Administrativo seja saudável e retrate a realidade. Temos de enveredar por esse caminho. Sentar, negociar e, se justificar, encerrar as obras. Tem de haver uma instrução clara nesse sentido porque esse é um perigo que se avizinha para o nosso Estado. Quando a tempestade passar, pensamos que podem ser lançados novos concursos com privilégio para as empresas que tiverem estado ligadas a essas obras.

Certamente que acredita que esta é uma conjuntura que vai passar em breve?

Pensamos que a disposição que o Presidente da República mostra para resolver o problema político é encorajadora. Estamos numa reflexão para elaborarmos uma ideia conjunta sobre como é que podemos atender as questões ligadas ao futuro do nosso sector.

Texto de Jorge Rungo
jorge.rungo@snoticicas.co.mz

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