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“Países recém-independentes são voláteis”

Por admin

O pretexto para a entrevista com Paulo Wache, formado em Relações Internacionais e Diplomacia, Mestrado em Estudos Diplomáticos, foi o dia de África que hoje se celebra. Sudão do Sul, Líbia, Nigéria, Guiné-Bissau, Egipto, República Centro Africana (RCA) mereceram atenção do nosso entrevistado. A conversa é a que se segue.

O conflito militar no Sudão do Sul surpreende-lhe? O cessar-fogo não está a ser respeitado.

Em África, a experiência mostra que todos os países recém-independentes são voláteis, porque quem dá a independência ou se separa, tem interesses lá. Esse é o exemplo de Moçambique, de Angola, e outros países. Não foi só o Sudão do Sul que entrou em conflito militar pouco depois de proclamar a independência. Aparentemente é um conflito interno. Mas sem ser teoria de conspiração, acho que o Sudão do Norte também tem interesses, porque perdeu uma área bastante rica em petróleo e joga com isso. Acredito que às vezes faça alianças, até secretas, para instigar as diferenças que já existiam entre as partes agora em conflito.

Então…

Olhando para a história da própria África, o conflito era previsível. É só ver a forma como chegaram as independências. Foi uma ruptura com o colonizador. Geralmente, esse tipo de ruptura gera ressentimentos que se transformam em conflitos financiados. Mas também houve erros. No caso do Sudão do Sul, estava claro que para governar era preciso juntar as duas alas. Creio que foi um pouco irracional a decisão do presidente Salva Kiir de afastar o seu ex-vice, Riak Machar. Esse foi o motivo imediato para despoletar o conflito, mas as causas já estavam lá. O Sudão do Sul tinha provocado recentemente a sua separação. Recebeu apoio exterior. O Sudão do Norte tem muito poder sobre o seu irmão do Sul. Foram quase 50 anos juntos. Não é só dizer que as novas demarcações fronteiriças são estas e ponto final. Há muitas ligações entres eles e isso vai continuar a trazer instabilidade e, quem sabe, até ao ponto de despoletarem manifestações para a reunificação com o velho irmão (Sudão do Norte).

GUINÉ-BISSAU

As eleições presidenciais e legislativas correram de feição na Guiné-Bissau. A paz chegou para ficar?

Duvido que tenha chegado para ficar. Vai depender de como o novo governo civil vai lidar com a questão dos militares. A comunidade internacional descobriu qual era a principal causa: profissionalização do exército. Pelo menos é o que toda a gente diz. Oxalá seja, efectivamente, essa a causa. Fala-se da ligação do exército às redes criminosas, donde obtém dividendos. Agora, profissionalização significa mais recursos para os militares ou progressão na carreira? Esta questão é que terá de ser resolvida pelo governo com auxílio da comunidade internacional.

ESTADOS UNIDOS DE ÁFRICA

Será que o sonho dos Estados Unidos de África (EUA) acabou com a morte de Kadaffi?

O sonho dos Estados Unidos de África (EUA) é uma utopia necessária para continuarmos a ter um elemento comum entre nós africanos como pessoas que têm um passado colectivo e que precisam ter um futuro comum.

Do ponto de vista pragmático não é realizável a breve trecho. Isso mesmo foi percebido por muitos Chefes de Estado, porque os Estados ainda estão em construção, inclusive nos seus próprios territórios, onde a coesão não é suficiente. O Estado que o próprio Kadaffi liderava (Líbia) era ou é seccionado. Os conflitos tribais estão ao rubro. Não se entendem e são rivais. Com isso não pretendo dizer que haverá um momento em que eles vão se entender na plenitude, mas que se aceitam e toleram.

Neste contexto, que futuro se augura à África?

O futuro é brilhante, mas há muito trabalho por fazer. Depois é preciso reconhecer os desafios concretos que se colocam, a começar pela questão dos Estados africanos não serem homogéneos. O problema vai ser ultrapassado. A educação vai jogar um papel fulcral para as pessoas perceberem que apesar das diferenças podem conviver em harmonia. Logo, haverá menos conflitos com derramamento de sangue.

Como podemos ler os actuais conflitos no norte de África (Tunísia, Egipto e Líbia) e no centro (Mali, República Centro Africana) e nos Grandes Lagos (RDC)?

Na Tunísia, é basicamente uma questão económica. As diferenças sociais foram tão profundas que as pessoas acharam que tinham de romper com o sistema. No Egipto, a questão foi política. A ditadura militar prevalecia desde o presidente Abdel Nasser. Na Líbia, a perspectiva é outra. Havia grandes interesses internacionais em desfazer a Líbia de Kadaffi. A intenção talvez fosse construir um país diferente, mas está sendo difícil.

A herança da Primavera Árabe não é muito famosa?

Provavelmente foi Inverno Árabe ou Outono Árabe. O único elemento comum que teve foi incendiar a onda de revoltados. Mas as razões que levaram as reais revoltas em cada país são diferentes e portanto estão a ter soluções diferentes. A Tunísia está mais calma dos que os restantes países, porque eram questões económicas e aquele que foi eleito está a dirigir o assunto e eles na expectativa de ver se os problemas serão resolvidos.

E as questões políticas?

Essas são mais difíceis de resolver. Sobretudo quando as questões são externas, porque os donos não estão comprometidos. Para exemplo podemos pegar a Líbia, onde mesmo tendo sido colocado um oponente de Kadaffi para dirigir, as coisas não se resolveram. Na Síria de Bashar Al-Assad, a situação vai-se passar de maneira diferente.

NIGÉRIA

E como ler o caso da Nigéria?

A Nigéria quase importa uma questão que é internacional. Há a questão da distribuição de recursos e a distribuição do poder. Mas mais do que isso, a distribuição do poder é feita com reivindicações culturais ou com reivindicações civilizacionais no sentido de que nós somos islâmicos e vocês são cristãos (ocidentais). A filosofia é a de que vocês eduquem os vossos à vossa maneira e nós o faremos à nossa maneira. Este debate é muito mais profundo, porque lida com valores e crenças. Algumas pessoas estão inclusive dispostas a morrer em defesa das suas crenças, pior quando tudo isso está ligado ao transcendente. Isto é, não se resume apenas a conquista do poder. Se assim fosse, o problema podia ser resolvido por exemplo com um Governo de Unidade Nacional (GUN), como aconteceu no Zimbabwé, para se acomodar as pessoas. Mas quando se trata de valores fica mais difícil. A via de resolução passa pela eliminação física do líder, como aconteceu a Bin Laden e poderá suceder o mesmo a Abubakar Sekha (líder do Boko Haram).

E no caso da República Democrática do Congo (RDC), qual é o combustível que fermenta as sucessivas rebeliões? Que interesses estão em jogo?

A RDC sofre por causa dos interesses internacionais. Há muita cobiça sobre os recursos minerais daquele país. Tendo muitos recursos e vários interessados, principalmente franceses, a instabilidade facilita a exploração dos recursos sem acesso a grandes controlos daquilo que seria a administração vigente. Isso tudo faz com que de facto cada país seja um país. África não é um país. Os problemas de África são os problemas dos países de África. Tenho dito que África não é um país. Temos a ideia de ver África como um continente e quando nos vêem dizem que “você é africano”.

E…

Normalmente, nós não somos africanos. Cada um é moçambicano e dentro de Moçambique tem a sua identidade e há muitos problemas por resolver. Os países africanos têm as suas especificidades, os seus problemas, que são distintos, e cada contexto pode ser resolvido não como continente, mas como país.

André Matola

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