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Odisseia no Licungo

Por admin

O rio Licungo nasce nas entranhas do Niassa e atravessa a Zambézia e há muito que não era notícia ou motivo de preocupação. Sempre esteve a “hibernar”, como se não existisse. Porém, este ano despertou e mostrou que “não é flor que se cheire”. Autêntica ferra. Despedaçou tudo o que encontrou pela frente, incluindo vidas humanas. A sede do distrito de Mocuba, banhada por este rio, virou palco de obras de reconstrução sem precedentes, onde pontificam heróis e malandros a disputarem o dia e a noite.

A população da província da Zambézia sabe que na época chuvosa alguns rios ficam bravos e devastam vidas humanas e bens materiais. Entretanto, os residentes das margens do rio Licungo nunca tinham sentido isso na pele porque este curso de água sempre esteve quieto, inofensivo, apesar de ocultar famílias inteiras de crocodilos que por vezes aterrorizam com as suas mordidas fatais aqui e ali.   

Os rios que habitualmente se comportam de forma “animalesca” na época chuvosa são o Chire, Zambeze, Púngue, Save, Limpopo, Umbeluzi, Maputo e outros de média dimensão. O Licungo fazia parte de uma espécie de elite chique, pois há mais de 40 anos que descia rumo ao Oceano Índico com classe, disciplina e elegância.

Por causa disso, muitos residentes da cidade de Mocuba embarcaram na ideia de que o leito do rio, que passa quase todo o ano a gerir um magro fio de água, podia ser lugar para morar. “Terrenos” foram cedidos e vendidos para quem quisesse ter uma casa com vista ao rio. O tempo passou e as pessoas cresceram, multiplicaram-se e encheram o espaço, tal como vem no livro do Géneses, da Bíblia Sagrada.

O tempo passou até que nos primeiros dias do mês de Janeiro, começaram a chover alertas do Instituto Nacional de Gestão de Calamidades (INGC), da Direcção Nacional de Águas (DNA) e do Instituto Nacional de Meteorologia (INAM) a indicar que vem aí chuva grossa e que os rios da região Centro e Norte do país registariam grandes subidas de nível hidrométrico.

Porém, na cidade de Mocuba, estes alertas caíram em saco roto. “Que cheias? O Licungo nunca transbordou. Não será desta. São boatos para nos fazerem sair e depois virem roubar as nossas coisas. Vamos dormir e boa noite” disseram muitos.

Com efeito, muitos dormiram convencidos de que aquela seria mais uma noite de chuva, relâmpagos e trovoadas comuns. O que não imaginavam é que o Licungo, o rio Lugela e seus afluentes tinham engordado e rebentavam pelas costuras descendo para o mar à toda a velocidade. O resto é o que se viu. Só na Zambézia morreram 134 pessoas e 127 mil pessoas ficaram afectadas porque perderam casas e bens diversos.

ESPINHOSA

RECONSTRUÇÃO

Para além de vidas humanas e de habitações, na noite do dia 12 de Janeiro, uma segunda-feira, o rio Licungo deitou abaixo várias pontes, cortou estradas e no auge da sua saga destruidora, transformou 10 torres de transporte de energia eléctrica em ferro velho, completamente contorcido e “sem proveito”, como diz o povo.

Quando amanheceu, a Direcção de Transporte Centro-Norte (DTCN) da Electricidade de Moçambique (EDM) despachou umas duas dezenas de homens que habitualmente lidam com a matéria para o local que se localiza entre as aldeias de Nunca-Nunca e Fátima. Todos acreditavam que a reposição das linhas havia de ocorrer num abrir e fechar de olhos.

Chegados a Mocuba, aqueles técnicos tentaram aceder ao local, que dista uns 15 quilómetros (km) daquela cidade, usando as viaturas mais potentes da classe dos 4X4 que a EDM possui, nomeadamente Land Cruiser com motores HZ. Num punhado de quilómetros ficou claro que aquela viagem não era pêra doce.

Por outro lado, a chuva não dava tréguas e, aos poucos, aquele grupo de técnicos se convenceu de que a tarefa seria árdua, pelo que, de forma unânime solicitaram reforços de tractores e camiões que igualmente chafurdaram e, no lugar de ajudar a abrir caminho, obstruíam-no.

Até ao dia 19 de Janeiro, cerca de uma semana depois da queda das torres, as equipas ainda montavam o seu acampamento e procuravam transportar os pesados equipamentos necessários para a obra por vias alternativas. A nossa equipa de Reportagem chegou àquele ponto na manhã daquele dia depois de se atolar, enterrar e empurrar o carro sete vezes, e tendo como guia um director da EDM que se rotulava de perito em idas e voltas por aquela via. Ele próprio enterrou quanto baste.

Sem caminho para levar os materiais até Nunca-Nunca e Fátima, e com o apagão a assumir contornos cada vez mais difíceis de controlar, a direcção máxima da EDM autorizou dois administradores executivos, nomeadamente Isaías Rabeca, do pelouro de Distribuição, Comercialização, Eficiência Energética e Tecnologias de Informação, e Agostinho Mugoda, da área de Produção, Transporte e Sistemas de Telecomunicações, para assumirem as rédeas das operações no terreno.

Terá sido com base no olhar crítico destes dois gestores que se tomou a decisão de se contratar os serviços da Trans-África Projects, uma empresa especializada em transporte de carga por helicópteros, para agilizar a organização da logística para a construção daquela linha alternativa em torres de madeira (pórticos). Mesmo assim, a chuva se manteve irredutível. Choveu todos os dias de forma destemida.

OBRA ATÍPICA

O normal em situações do género, seria a emissão de uma Requisição Civil, através da qual, militares são chamados a prestar o seu apoio às equipas técnicas de áreas específicas, no caso vertente da EDM. Entretanto, ninguém se lembrou desse dado. Nem mesmo de levar alguns técnicos do Ministério de Obras Públicas e Habitação (MOPH) para ajudarem a idealizar a abertura de vias alternativas. Nada!

Assim sendo, e porque nem toda a gente que trabalha na EDM entende de linhas de transporte e de reparar estradas lamacentas, foi necessário contratar tarefeiros (trabalhadores eventuais) para esticar os cabos, levar alicates para aqui e para ali, carregar isoladores deste para aquele lado, enfim. Enquanto isso, empresas de construção de estradas eram contactadas para “darem um jeito” naquelas vias de dificuldade cinematográfica.

A chegada do helicóptero foi celebrada por todos, pois em poucos dias, cerca de uma centena de postes de madeira, rolos de cabo com toneladas de peso, entre outras ferramentas, foram transportados para o local onde a obra seria executada. Mas, como não há bela sem senão, a chuva teimava em fazer das suas, pior, de mãos dadas com muito más companhias, nomeadamente trovoadas e relâmpagos.

O estado do tempo tornava impossível a circulação do helicóptero, ao mesmo tempo que impedia que as equipas em terra se locomovessem, dado que o chão permanecia excessivamente lamacento. Quando por fim o céu dava folga, os tarefeiros entravam em acção.

Conforme testemunhamos no local, alguns sumiam do acampamento, inventavam dores aqui e ali, queixavam-se dos valores a receber e do calor abrasador e também do próprio trabalho que era visivelmente pesado. Tanto é que alguns destes ainda não são consumidores directos de corrente eléctrica, pelo que não tinham pressa.

Com quase tudo a desfavor, os gestores da EDM ainda tiveram que lidar com o cansaço psicológico dos seus próprios colegas de trabalho, os quais nunca tinham passado uma temporada tão longa cercados de mata e com uma invulgar obra por realizar.

Mesmo assim, os trabalhos prosseguiram e os administradores Isaías Rabeca e Agostinho Mugoda, coadjuvados por vários directores e chefes de departamento que moralizavam as equipas, por vezes sorrindo, e outras vezes com cara de poucos amigos, tendo em conta que por cada dia de atraso, a EDM somava prejuízos estimados em 200 mil dólares. Aliás, o ministro da Energia, Pedro Couto, visitou o local da obra e disse que “cada minuto conta”.

ODISSEIA NO LICUNGO

Outro desafio com que os gestores da EDM tiveram que lidar era a sede de informação sobre quando é que aquela obra terminaria. Nas províncias afectadas, já ninguém suportava a escuridão, os prejuízos em diferentes sectores só se acumulavam e era preciso apurar com exactidão a data do fim do calvário.

Na cidade de Mocuba, por exemplo, a nossa Reportagem assistiu a decisões empresariais jamais vistas. Por exemplo, para oferecer cerveja e refrescos gelados aos clientes, alguns agentes económicos optavam por viajar para Quelimane, que dista cerca de 200 quilómetros, para adquirir pedras de gelo, ou seja, percorriam um total de 400 km para gelar bebidas.

Outros empreendedores locais não hesitaram em manter os seus geradores ligados durante todo o período em que a região esteve em apagão (27 dias), pagando uma factura diária estimada em mil meticais. Segundo eles, aquela era a única saída para não assistir aos produtos a deteriorarem.

Também testemunhámos situações em que alguns agentes económicos adquiriam geradores tão piratas que registavam avarias regulares ou que produziam energia que só dava para acender lâmpadas de baixo consumo e pouco mais. Televisores, ventoinhas, chaleiras e outros electrodomésticos, nicles!

Com as dificuldades e prejuízos a avolumarem, e o país inteiro a cobrar respostas, a obra progrediu com as actividades a serem realizadas, por vezes apenas de manhã, porque a tarde chovia, ou a tarde, porque de manhã tinha chovido, e noutras ocasiões era preciso trabalhar pela noite dentro.

Outro dado crítico é que a obra consistia em construir 45 pórticos de madeira que, de tão grandes, nenhum homem poderia levantar. Era necessário usar o helicóptero. Por outro lado, a linha estendia-se por cinco quilómetros com três cabos eléctricos com cerca de três centímetros de diâmetro. Mesmo assim, os trabalhos decorreram sem grandes sobressaltos até ao ponto crítico que era a travessia do rio Licungo.

Este local era temido por todos por ser demasiado largo, com correntes muito fortes (o rio continua bravo) e os cabos serem muito pesados. Conforme apurámos no local, cada cabo pesa cerca de uma tonelada e meia por quilómetro, o que obrigava a um esforço sobre-humano de técnicos e tarefeiros.

Para levar os cabos à outra margem, a EDM solicitou os préstimos da Trans-Africa Projects que, no cair do tempo do contracto, uniu as duas torres localizadas nas margens Sul e Norte com uma corda a que chamam de “corda-piloto”, com a qual conduzir-se-ia os três pesados cabos para o lado de lá do Licungo.

O transporte de cada um dos cabos também foi feito com recurso a pequenas embarcações que, para além de enfrentarem o peso do condutor, também tinham a força da corrente a arrastar os barcos para a foz. Cada cabo levou pelo menos um dia a passar para a outra margem dadas as adversidades atmosféricas, do terreno, cansaço do pessoal e até de equipamento.

Quando tudo parecia resolvido, e o domingo noticiava que a ligação seria feita ao princípio da tarde do domingo passado, eis que surge um contratempo. Durante a vistoria final foi detectada uma falha técnica nos pórticos erguidos para contornar uma habitação (bypass). Era preciso corrigir o erro.

Para azar do país inteiro, o camião que devia levar os técnicos ficou atolado algures. Aquilo que era uma operação de duas horas acabou levando mais tempo e a ligação só foi feita na manhã de segunda-feira para o alívio de todos os moçambicanos afectados directa e indirectamente.

De permeio ficam estórias de homens e mulheres que tinham que se acotovelar nas instalações da Movitel, escolas e igrejas para carregar telefones. Também fica para trás o consumo de bebidas quentes ou congelados com gelo “importado”, e ainda os geradores que produzem mais barulho que corrente.

Para a imprensa que cobriu o evento fica na memória o dia em que o helicóptero de carga entendeu “engasgar” em pleno ar e ameaçou despenhar. Afinal o piloto só tinha 30 anos e estava a participar de uma formação. Entre outros, o jovem piloto não tinha reparado no manómetro do combustível, que já tinha descido para o “zero” e, pior, o manípulo elevador do aparelho estava encravado. Um pesadelo sobre o Licungo.

Texto de Jorge Rungo

jrungo@gmail.com

Fotos de Jerónimo Muianga

 

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