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MIA COUTO EM ENTREVISTA AO DOMINGO: Somos aquilo que falamos e escrevemos

Por Idnórcio Muchanga

Mia Couto, escritor moçambicano, lançou, recentemente, um livro destinado ao mundo infantil, pretexto para uma longa conversa sobre temas que vão da cultura, política a economia. No essencial, sublinha que somos produto do que falamos e escrevemos. Revolta-se com a degradação da política e dos políticos, insurge-se contra o fosso existente entre ricos e pobres, e define-se como escutador mesmo de silêncios.

Ainda nesta entrevista, o escritor, Prémio Camões, ressalva que ser poeta é dar voz à criança que habita em nós. Discorrendo sobre a situação económica do país refere que o desafio das dívidas pode ser bom momento para que as instituições reganhem confiança que precisam absolutamente de ter.

Segue-se a entrevista em discurso directo.

Mia, comece por revelar-me um segredo. Qual é a principal arma para a sua criatividade?

O segredo tem um nome: trabalho. Pode haver algum talento que tenha nascido comigo. Mas eu prefiro não confiar nele. Prefiro trabalhar. Quando os jovens me perguntam como tenho tempo eu respondo: eu desligo a televisão. E desligo o whatsApp e a internet, desligo tudo aquilo que me desliga a mim. Prefiro uma boa conversa a qualquer outro entretenimento. A gente sente-se poderosa porque num simples toque ligamos um ecrã luminoso. Mas não notamos que aquele mesmo gesto nos desliga. Passamos a visitar o mundo pelos olhos de outros. Passamos a ver o mundo por uma janela muito estreita e quase sempre viciada. Trabalho de noite nos meus textos (quando a casa está adormecida) e de dia nos assuntos da Biologia, na minha empresa. O meu pai costumava dizer: nunca peças nada a quem tem tempo. Os que não têm tempo são os que fazem coisas.

A sua paixão pela escrita parece-me ter surgido quando o gosto pelo jornalismo efervescia. O Presidente Samora Machel disse-lhe que um jornalista tem de ser um contador de histórias. Pode revelar-me algo mais sobre este incentivo?

Posso contar numa palavra o que se passou. Eu era adolescente, tinha uma visão muito ingénua do mundo. E idolatrava os dirigentes revolucionários. Por isso, a primeira vez que me encontrei com o Presidente Samora foi uma espécie de momento mágico. Fazia parte de um grupo de jornalistas que se deslocou à Tanzânia onde Samora ainda vivia. Todos o queríamos impressionar e levávamos uma espécie de lição estudada. Samora interrompeu a nossa lenga-lenga e perguntou se sabíamos cantar. Ninguém respondeu. E perguntou depois Samora se sabíamos contar uma história. Ninguém respondeu. E Samora disse: quem não sabe contar uma história será sempre uma pessoa pobre. Aquilo impressionou-me muito. Era como se aquela mensagem fosse dirigida exactamente a mim. E acredito que hoje sou uma pessoa rica porque troco e partilho histórias com os outros.

De que forma o jornalismo jogou um papel importante para o surgimento de Mia Couto de hoje?

O jornalismo fez-me viajar por dentro de Moçambique. Foi uma escola para aprender a diversidade e a complexidade deste país. Percebi que muito do discurso político desconhecia essa diversidade. E percebi que havia vozes sábias naqueles que não tinham voz. Apercebi-me do modo com que muitos moçambicanos apreendem o mundo e exprimem o seu pensamento e que é de uma forma profundamente poética e literária. Os moçambicanos, como todos os que habitam o universo da oralidade, são grandes construtores de histórias. Eu apenas me deixei seduzir pela força desse universo criativo.

Texto de Bento Venâncio

bento.venancio@snoticicas.co.mz

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