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Atrocidades que o mundo finge não ver

Por admin

O mais recente relatório da Human Rights Watch, agremiação internacional que vela pela manutenção dos Direitos Humanos, aponta que as Forças de Defesa e Segurança de Moçambique (FDS) terão cometido barbaridades contra cidadãos civis e indefesos no norte da província de Tete.

Porém, os factos constatados no terreno evidenciam que há uma tremenda parcialidade naquele relatório.Há muitas crueldades que o mundo parece não querer ver e que foram perpetradas pelas milícias da Renamo em Moatize e Tsangano, e as vítimas dão a cara, apesar do pavor que tem pelas muito prováveis represálias.

A Human Rights Watch não é uma entidade qualquer. É de reconhecida competência e credibilidade no mundo. Entretanto, o seu relatório de 23 de Fevereiro deste ano, intitulado “Moçambique: fuga em massa após alegados abusos do exército. Seis mil pessoas trocam Moçambique por condições precárias no Malawi” tem muito que se lhe diga.

Aquele documento, emitido a partir da cidade sul-africana de Johannesburg, diz que “o governo de Moçambique deve investigar com urgência as alegações de execuções sumárias, abusos sexuais e maus-tratos por parte das suas forças armadas na província de Tete” e refere que pelo menos seis mil pessoas fugiram para o Malawi de Outubro do ano passado a esta parte na sequência das operações de desarmamento das milícias ligadas à Renamo.

O relatório em alusão não torce o nariz perante a existência das tais milícias ou homens indevidamente armados de um partido político que, em plena luz do dia, anuncia que pretende tomar o poder, estabelece terror em estradas nacionais, dispara contra viaturas e mata civis na estrada nacional número um, rapta régulos, espanca-os brutalmente, assassina-os, estabelece uma autoridade paralela à do Estado, enfim, se sobrepõe à lei em Sofala e em Tete. Isso a Human Rights Wach não conseguiu ver.

Logo a seguir, aquela organização internacional de reconhecida credibilidade, refere que várias dezenas de moçambicanos requereram asilo no campo improvisado de Kapise, no Malawi, e relataram ter fugido dos abusos do exército e que, por isso, têm medo de voltar para casa.

Mulheres descreveram como os seus maridos foram sumariamente executados, ou amarrados e levados para paradeiro desconhecido por soldados de uniforme, alguns deles transportados por veículos do exército. Em vários casos, soldados incendiaram casas, celeiros e campos de cultivo, acusando os residentes locais de alimentar e apoiar as milícias”.

Um pouco mais adiante, Zenaida Machado, pesquisadora da Human  Rights Watch, é citada a dizer que “o governo deve iniciar, com urgência, uma investigação às alegações de abusos e garantir que as operações de desarmamento são conduzidas de acordo com a lei”.

Percorremos o relatório à busca de vítimas daquilo a que a própria Human Rights Watch chama de “alegados abusos” para, no mínimo, lhes ver o rosto e nomes, nicles. Nem um nome. As vítimas ouvidas por esta organização relataram, disseram, afirmaram, sublinharam, frisaram e contaram, mas em nenhum momento deram a cara. Nem mesmo com pseudónimo.

Parágrafo a parágrafo, o documento fala em “uma mulher de 20 anos de Ndande disse…”,“um homem de 33 anos afirmou…”, “um homem de 74 anos de Ndande disse…”, “uma mulher de 19 anos, grávida, da aldeia de Madzibawe, relatou…”. Os únicos que falam de peito aberto são Zenaida Machado e Dewa Mavhinga, ambos investigadores séniores da Human Rights Watch.

EMBOSCADAS

A situação que se vive (hoje) em Tete, mais concretamente nos povoados de Ndande e Mondjo, no posto administrativo de Nkondedzi, distrito de Moatize, é de calma total, com camponeses a produzirem, a fazer os seus negócios, circulação tranquila de viaturas, enfim. Tudo tão normal como acontece no Alto-Maé e Mafalala, em Maputo, Maquinino e Espangara, na cidade da Beira, ou até em Paquitequete, em Pemba.

Porém, esta tranquilidade tem poucas semanas pois, num passado muito recente, aconteceram verdadeiras atrocidades por ali que deixaram marcas no corpo e na mente de muitos cidadãos tão indefesos como como aqueles que a Human Rights Watch diz ter visto em Kapise, no Malawi. A diferença entre as vítimas é que umas continuam do lado de cá e as outras fugiram para o lado de lá.

Outra diferença reside no facto de Monjo e Ndande já disporem de uma presença efectiva de representantes da autoridade do Estado, nomeadamente agentes da polícia e militares que velam pela segurança local e asseguram que a população realize as suas actividades normal e tranquilamente.

Naquelas paragens, há escolas a funcionar, moageiras, unidades sanitárias, instituições públicas, comércio, enfim, a vida flui. A nossa equipa de Reportagem, que já tinha percorrido aquela região há poucos dias, voltou a embrenhar-se por lá e é testemunha desta realidade.

Mas, esta tranquilidade foi reposta a muito custo porque, conforme referimos na nossa Reportagem da edição da semana passada, a deslocação da população para Kapise foi fruto de situações que hoje todos fingem não se lembrar.

Por exemplo, quando os relatos de que havia homens (ilegalmente) armados em Nkondedzi, a Polícia da República de Moçambique estabeleceram um posto lá para as bandas de Chibaene, no meio de montanhas que foram uma incrível paisagem, daquelas que lembram postais à moda antiga.

Entretanto, sempre que se fazia uma manobra de rendição daquela força ou uma operação de reabastecimento, os agentes eram fulminados com balas que vinham de populares com quem a polícia conversara há minutos numa aldeia.

Pelas indicações que temos, há quatro viaturas da polícia, de tipo Mahindra, que foram destruídas pela Renamo em emboscadas feitas naquelas bandas. Como a Polícia não revela números de baixas, o mundo não ligou, mas aqueles mortos tem pais, mães, filhos, esposas, maridos que chorarão para sempre.

Uma das emboscadas aconteceu na ligação entre a estrada nacional número sete e Chibaene no dia 14 de Abril de 2014 e outra em meados de Julho do ano passado quando a polícia trafegava em direcção a uma das suas posições para deixar mantimentos.

O estabelecimento de uma posição militar em Chiandane, em Tsangano, também decorreu depois de intensas trocas de tiros entre as FDS e os tais homens armados que, no final, desaguaram no Malawi e a lista contendo os nomes de alguns dos delegados e representantes daquele grupo foi aqui publicada na ultima edição.

Jorge Jasse Runguze, chefe do posto administrativo de Zóbwe, que superintende a área de Nkondedzi explica que Monjo e Ndande foram teatros de batalhas entre as FDS e as milícias da Renamo, pelo que qualquer susto em relação à destruição de bens, incluindo escolas, habitações e áreas de cultivo deve ser vista nesse prisma.

VÍTIMAS DÃO A CARA

E NINGUÉM LIGA

Na semana passada indicamos nomes, locais e datas em que as milícias da Renamo abusaram de líderes comunitários no interior de Nkondedzi. Dissemos que há até um régulo que foi atado as mãos e os pés e transportado como um leitão ou cabrito. Revelamos que este cidadão está psicologicamente afectado e que foge de tudo e todos.

Na semana passada fomos à casa dele, chama-se Fernando David Ncueza e ainda vive no pânico. Foi brutalmente torturado pelos tais homens armados da Renamo. Quando ele e família se deram conta de que estávamos a chegar, fugiu a sete pés deixando tudo para trás. Isso aconteceu em pleno dia. Com o sol bem no alto das nossas cabeças. Imagine-se uma visita noturna.

Este líder pertence à comunidade de Nagulo e foi raptado por quatro homens armados no dia 27 de Novembro de 2014, as 16 horas. Só ele e Deus sabem como escapou com vida. Mais tarde encontramo-lo na sede do posto administrativo. O homem é pânico em pessoa.

Também falamos de Armando Sandifano, do poviado de Magalawande, raptado no dia 13 de Fevereiro de 2014, as 23 horas por quatro homens da Renamo e que nunca mais voltou a ser visto. Referimo-nos ao líder Wallace Comulane Diace que foi raptado no dia 3 de Março de 2014.

O próprio chefe do posto administrativo de Nkondedzi, Orlando Aviso Sopinho escapou dos tiros que foram disparados contra a sua casa. As marcas das balas podem ser vistas na sua casa. Isto aconteceu na madrugada do dia 28 de Março de 2014, a uma hora.

Sete homens da Renamo raptaram o líder de segundo escalão de Chidocoe, isto no dia 10 de Novembro de 2014. Na mesma data, foi raptado o líder Fandissone Devaissone. No dia 27 de Janeiro de 2015, quatro homens armados raptaram o líder Mose Sustene Nguetse. Entre outros. Muitos outros.

CATORZE REGRESSAM

Durante a semana passada o Conselho de Ministros despachou uma missão encabeçada pelo vice-ministro da Justiça, Assuntos Constitucionais e Religiosos, Joaquim Veríssimo, para ir ao terreno apurar o que terá acontecido com as FDS e a população a ponto de a Human Rights Watch produzir aquele relatório de “alegações”.

Veríssimo manteve encontros com representantes do governo provincial, chefes das zonas onde ocorreram as alegadas atrocidades, organizações da sociedade civil, religiosos e populares. Calcorreou Moatize e parte de Tsangano e, pelo que testemunhamos, os relatos colhidos apontam para abusos protagonizados pelos elementos da Renamo.

Tem líderes que não dormem nas suas casas há muitas luas por temerem represálias. Alguns tiveram que ser ouvidos à parte porque não queriam ser vistos a depor perante a comissão de inquérito, porque afirma que as ameaças continuam.

Apesar dessas ameaças, o vice-ministro tomou conhecimento de que pelo menos 14 pessoas, de um grupo de 24, que se tinham deslocado a Kapise, voltaram com as suas trochas à cabeça. Vieram pelos seus próprios pés porque entendem que a vida que levaram no Malawi é inadequada para eles.

Também dizem que é preciso que se entenda que a população que vive naquelas regiões é uma mistura pura de moçambicanos e malawiano, pelo que reiteram que não se pode assumir, de todo, que os chamados refugiados sejam somente moçambicanos.

Jorge Rungo, em Tete

Fotos de Jerónimo Muianga

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