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Até sempre José Cardoso

Por admin

Os grandes homens não morrem, diz-se. Partem para o além e deixam as suas obras por todo sempre. É o caso do cineasta José Cardoso, falecido recentemente, vítima de doença.

As cerimónias fúnebres foram realizadas, primeiro, no Instituto Nacional de Cinema (INAC), onde familiares, colegas e amigos, prestaram uma última homenagem ao malogrado. Depois, o corpo de José Cardoso foi cremado no Cemitério da Lhanguene.

Cineasta e escritor, José Cardoso nasceu em Figueira de Castelo Rodrigo,  Norte de Portugal, a 6 de Abril de 1930,  e em 1939 veio para Moçambique. De 1939 a 46, dividiu a sua adolescência pelos anos de estudo primário, no Instituto Mouzinho de Albuquerque na Namaacha, pelo Secundário na Escola Comercial e Industrial Sá da Bandeira, em Lourenço Marques, e pelo trabalho que começou aos 14 anos, como praticante na farmácia Central. Em 1946 decidiu tornar-se independente e rumou à Beira, onde completou a adolescência e tornou-se homem, trabalhando na farmácia Graça. Foi nessa cidade que conheceu Laura, com quem casou em 1957 e de quem viria a ter três filhos João, Luís e Alexandre.

Foi fundador do Cine-Clube da Beira, onde se iniciou no estudo da arte e da técnica cinematográficas e na produção de filmes. Em 1976 aceitou o convite do Instituto Nacional de Cinema (INC) para ingressar nos seus quadros técnicos como profissional e rumou para Maputo onde trabalhou, primeiro, como director de produção e depois como realizador, deixando para trás, na Beira, a delegação do INC que organizou, e o embrião do projecto de Cinema Móvel, que se pensava estender a todo o país.

FILMES E PRÉMIOS

Ao longo da sua carreira, José Cardoso produziu vários filmes. Entre vários, o destaque vai para o facto dele ter realizado a primeira longa-metragem moçambicana- O Vento Sopra do Norte, em 1986.

O Anúncio(1966) – ficção. Premiado em Aveiro, paris, Beira, Rio Maior, Lobito e Porto.

Raízes(1968) – ficção. Premiado no Porto e Aveiro.

Pesadelo(1969) – ficção. Premiado em Guimarães e Luxemburgo.

Canta Meu Irmão. Ajuda-me a Cantar(1982). Documentário de longa-metragem. Premiado em Aveiro. Taskent e Maputo.

Frutos da Nossa Colheita(1984). Ficção. Premiado em Maputo.

O Vento Sopra do Norte(1986). Ficção. Longa-metragem.

José Cradoso dedicou-se ainda à escrita, concretamente prosa e poesia, tendo publicado em 2007 o livro de crónicas “O Curandeiro Branco” deixando no prelo 3 volumes de “Memórias” e o livro de contos “Mangachana, a feiticeira e outras histórias”.

MESTRE DOS CINÉFILOS

Durante o velório, várias pessoas marcaram presença, incluindo o Governo, representado pelo Ministro da Cultura, Armando Artur. As mensagens apresentadas pela Lucrécia Paco e Gabriela Moreira, não só homenageiam José Cardoso, assim como enaltecem as suas obras.

O Cinema perdeu um dos pilares

– Armando Artur, Ministro da Cultura

Armando Artur reconheceu o papel desempenhado por José Cardoso: “A família do cinema moçambicano perdeu um dos seus pilares. José Cardoso, ficará na retina e memória dos moçambicanos, em geral, e dos cinéfilos em particular, como cineasta que realizou, no meio de muitas adversidades, a primeira longa-metragem de ficção pós-independência. A sua vida é fruto de uma época histórica onde o cinema florescia num quadro diferente do de hoje, que é caracterizado por uma economia de mercado que pouco se compadece com projectos que não dão lucro”.

 “Cardoso retratou de forma fiel a realidade da terra e do homem de Moçambique. Por estes e outros feitos, recebeu uma dezena de prémios. Durante o Festival Nacional da Cultura, em 2012, foi homenageado pelo Governo em reconhecimento ao seu contributo na promoção e desenvolvimento das artes”.

 

Exemplo de atitude e perseverança

– Gabriel Mondlane, cineasta

Gabriel Mondlane, Secretário – Geral da AMOCINE (Associação Moçambicana de Cineastas), afirmou que em vida, José Cardoso manifestara o desejo de não serem lidas mensagens. “Trazemos neste momento, palavras de simpatia. De apreço. Recordamos com saudade a sua chegada da Beira, transportando consigo essa enorme bagagem de conhecimentos técnicos e artísticos que nos faltavam.

Mondlane disse ainda que “ éramos todos jovens e buscávamos nele não só a experiência profissional, mas também os ideais dele de justiça, igualdade e a profunda crença de que estávamos a construir um país melhor, o lugar de todos nós. Um sonho que partilharíamos ao longo de muitos anos de trabalho árduo, desinteressado e aglutinador em prol da construção da nação moçambicana, em que o cinema jogou um papel fundamental na divulgação da mensagem de independência. Ele foi o exemplo de atitude e perseverança”.

Deixou muitos ensinamentos

– Djalma Lourenço, Director do INAc

Djalma Lourenço, Director do Instituto Nacional de Cinema (INAC), disse que José Cardoso foi um cineasta que deu lições de vida. “ Deixou grandes ensinamentos do que é ser grande homem. Perdeu os pais muito jovem  e isso fez, em parte, o carácter deste homem”.

Sustentando a objectividade de Cardoso, Djalma Lourenço disse: “Cardoso trabalhava numa farmácia na Beira, onde recebia seis mil escudos. Quando o patrão dele ouviu dizer que Cardoso vinha a Maputo, aumentou seu larário para trinta mil escudos. Mas mesmo assim, José Cardoso preferiu vir a Maputo, Instituto Nacional de Cinema, onde passou a receber doze mil escudos. Era este o carácter de Cardoso”.

Deixou uma vasta obra

– Orlando Mesquita, cineasta

Uma das pessoas que também trabalhou com José Cardoso é Orlando Mesquita. Reconhece que a morte de Cardoso deixa um vazio e cria grandes responsabilidades para os jovens quem têm de conservar a sua vasta obra.

Mesquita afirma que Cardoso fazia cinema de forma diferente. “Ele fazia cinema de maneira a preservar a nossa cultura, a nossa identidade. Ele foi exemplar nisso e espero que continue a inspirar mais gente. Mas já no tempo colonial foi o moçambicano que fazia cinema de contestação ao regime colonial. Deixou obra, ensinamentos assim como em forma escrita, não só em cinema. E nos últimos tempos continuava a escrever arduamente”.

Perdemos um embondeiro

– Aldino Languana, jovem cineasta

 “A morte de José Cardoso significa a perda de um embondeiro das artes, concretamente a sétima arte. Para nós, ele morreu muito cedo porque ainda queríamos aprender muito mais dele. E principalmente nesta nova fase do cinema moçambicano. Ele deveria ver o que está sendo feito, fruto dos seus ensinamentos. Há coisas que ele semeou e não poderá ver. Há jovens que fazem coisas que infelizmente ele não poderá ver. E em muito iria nos agradar saber que o nosso avô está ali sentado e poderíamos consultar algo”.

Foi um avô e pai amável

A família teve seu espaço para endereçar uma mensagem, última, a José Cardoso. Seus filhos, João, Luís e Alexandre, preferiram apresentar  dos poemas escritos pelo pai, intitulado Testamento.

Testamento

Estes filhos vazões que são

geneticamente sinónimos

e diferentes

na evolução e nas origens

foram sempre e serão

a única riqueza acumulada

e cromossomaticamente

guardada

em depósitos a prazo

nos bancos  globais

de sonhos e incertezas;

e são de facto

as linhas riquezas

de momento,

que deixo

num imaginário testamento.

Porque nada mais tenho

a não ser, talvez,

a  memória que lhes restar de mim…

 …se a merecer!

 E se isso acontecer,

se algo deixei pra recordar;

 postumamente,

posso garantir e expressar um infinito amor

que ainda hoje me angustia

não o ter sabido exteriorizar

 convenientemente! …

Maputo.2002. José António Cardoso  

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