Tsangano. Distrito do norte da província de Tete. Um dos lugares mais gélidos do país, onde chove do nada e o sol brilha quando entende. A terra é sobejamente fértil, tem água a escorrer por todos os cantos e o clima ajuda a produzir toneladas de batata reno, milho, trigo, maçã, pêssego, entre outros.
A ironia é que lhe faltam estradas para escoar a produção e meios para o farinar. Como resultado, o trigo é “oferecido” aos vizinhos do Malawi que fazem pão e os nossos camponeses peregrinam para trazê-lo à mesa.
Em termos de fertilidade dos solos, Tsangano só compete com o vizinho distrito de Angónia que também capricha quando o assunto é agricultura. No quesito clima, toda a província de Tete curva-se perante o frio que se faz sentir neste distrito, faltando-lhe apenas neve para completar o enredo.
Sabíamos de tudo isto antes de partirmos da cidade de Tete, mas, porque tínhamos atravessado vários distritos das províncias da Zambézia, Sofala, Manica e a parte sul de Tete, onde o calor era intenso (em torno de 35 graus), cogitamos que Tsangano poderia estar com uma temperatura acolhedora para forasteiros. Puro engano!
Ainda debatemos o tema antes de embarcarmos e, mesmo assim, apenas um dos colegas entendeu recolher o seu colete. Atravessamos a Ponte Samora Machel, cruzamos a vila mineira de Moatize e começamos a enfrentar a pura e crua realidade da estrada Nacional número Sete (N7).
Buracos, buraquinhos e buracões transformaram aquela estrada numa espécie de tabuleiro de “ntxuva” (jogo tradicional) porque as viaturas são arremessadas de uma cova para outra. Por ali, o esforço de cumprir horários e o sonho de viajar com o mínimo de conforto é reduzido a zero.
O quadro se agrava à saída de Moatize, onde o trânsito foi desviado para uma via de terra batida para dar lugar a obras de reabilitação da N7. Apesar de ser um troço curto, o relevo profundamente acidentado atrapalha a condução, sobretudo de camiões-cavalo que se esforçam em galgar o terreno a ponto de avariarem em cadeia e provocarem engarrafamentos em plena mata.
Como é comum nestas circunstâncias, alguns automobilistas violam as barreiras montadas na estrada em construção e zarpam à toda a velocidade, numa competição inútil dado que, na barreira seguinte, que dista a uns 500 metros, tudo se repete. Depois de superar estas dificuldades, há que enfrentar milhões de buracos até ao desvio de Mussacama, lugar onde a N7 bifurca para as vilas de Angónia e Tsangano, e a fronteira de Zóbue.
Doutores, sono e frio
O desvio de Mussacama é uma espécie de antecâmara da vida que se leva em Tsangano e no resto do planalto que compreende os distritos de Angónia, Marávia, Chifunde e Macanga. Batata e nacos de frango são fritos e vendidos nas bermas da estrada, a par do pão, biscoitos, maçãs, laranjas, entre outros produtos locais e importados do Malawi. É paragem obrigatória para desentorpecer os músculos e refrescar o corpo e a mente.
A partir daqui, a via volta a ganhar o estatuto de estrada até Angónia, o que diz muito pouco a quem vai seguir para Tsangano, pois, num punhado de quilómetros, na região de Mphulo, surge a placa que indica a rota para este destino. A terra batida se impõe por cerca de 45 quilómetros (km), com a sua comitiva de buracos de todos os tipos, modelos e tamanhos a cortejarem.
Porque tínhamos encurtado o tempo de cama e embalados pela excelência do piso, o sono entrou na viatura em que seguíamos e dominou a todos, excepto ao motorista Samuel que foi acelerando num silêncio sepulcral, pior porque alguns dos nossos companheiros de viagem se distribuíram títulos de doutores e Samuel não queria ser repreendido por perturbar o repouso de tão importantes figuras.
Para infortúnio geral, Samuel nem sequer tinha ideia do nosso destino. Ouvira que íamos para Angónia, mas, não se apercebeu de que antes devíamos passar pela sede do distrito de Tsangano para entrevistas. O homem foi andando até despertarmos. Olhamos em redor e para o relógio. Pelos cálculos já devíamos estar no nosso destino há pelo menos uma hora.
“Onde estamos, senhor Samuel”, perguntamos e a resposta veio como um soco na testa. “Não sei. Estou a conduzir em direcção a Angónia. Afinal para onde vamos”, retorquiu. Voltamos a lançar a vista para a paisagem à procura de algum sinal que indicasse que não estávamos longe de Tsangano e, nicles. Nenhum sinal.
Apesar disso, prosseguimos até à aldeia seguinte onde nos indicaram o segundo desvio que nos levaria ao nosso destino mas, com 75 km de solavancos, contra os 45 km da outra via. Depois desta, mantivemos os olhos abertos, contudo, não conseguimos evitar que nos perdêssemos pela segunda vez.
Alcançamos o Posto Administrativo de Ndengo Wa Mbalane, o mesmo que “arvore do passarinho”, e entendemos seguir o trilho que nos pareceu ser o mais movimentado. Seguimos por uns 10 quilómetros e demos de cara com uma cancela. “O que vem a ser isto agora?”, interrogamo-nos. Era o posto fronteiriço de Biri-Biri. Rimo-nos da nossa fértil capacidade de nos perdermos em pleno dia e de olhos abertos.
Produzir trigo e importar pão
Depois destas e muitas outras, alcançamos a pequena vila de Tsangano-sede, onde o português é língua há muito descartada. Em pleno recinto escolar, quisemos trocar uns dedos de conversa com alguns alunos, debalde. A rapaziada ficou a olhar para nós com todo o espanto escarrapachado no rosto.
Fazia frio, como sempre. Muito frio. O nevoeiro cobria o espaço e por vezes roçava o chão, impedindo a visibilidade por alguns minutos. Os locais circunvagavam tranquilamente, alheios àquela friorenta temperatura. Poucos estavam agasalhados.
Aceleramos nas entrevistas que tínhamos programado e corremos para a administração do distrito. Ana Beressone, administradora do distrito, não fazia a mínima ideia da nossa presença mas, mal soube que estávamos ali, abriu-nos as portas com um sorriso no rosto, repetidas boas vindas e calorosos apertos de mão.
Dissemos-lhe a que íamos e ela tratou de descrever o distrito que dirige, pelos vistos com muito gosto, apesar das dificuldades de acesso. “Se os 45 km da estrada Mphulo-Tsangano fossem asfaltados, seria uma luz para o desenvolvimento deste distrito”, disse Ana Beressone.
Apesar de não dispor de recursos para tanto, a administração de Tsangano tentou asfaltar uma parte daquela via, mas o dinheiro só deu para nove quilómetros. Porque um azar nunca vem só, a obra devia ser executada em 12 meses, porém, durou 24 meses e, quando todos se preparavam para celebrar o efeito, eis que o asfalto começou a soltar-se do piso. Asfaltar aquela estrada foi como “deitar água ao pato”.
Porque a estrada não saiu como se desejava e o relevo daquelas bandas é mais do que acidentado, falta transporte para pessoas e bens. Os camponeses produzem, mas nenhum camionista se atreve a ir recolher a produção para levá-la a Tete, Moatize e a outros mercados.
Aliás, justamente por falta de vias com o mínimo de condições de transitabilidade, a população de Tsangano não sabe o que é viajar de autocarro ou mini-bus. Andam empoleirados em camionetas de mercadoria, motorizadas, bicicletas ou carroças arrastadas por bovinos.
Quem esfrega as mãos com este quadro são os cidadãos malawianos que adquirem tudo a “preço de banana” e vão processar do outro lado da fronteira para depois exportar, inclusive o pão feito com base no trigo cultivado nas terras férteis de Tsangano.
“Produzimos muito trigo e gostaríamos que fosse processado aqui, mas vendemos ao Malawi que processa e nós importamos o pão. É uma situação que julgamos que tem dias contados, porque estamos a criar condições para a inverter”, disse Ana Beressone.
No quadro dos esforços para assegurar o processamento do trigo no local da produção, Beressone afirma que o governo investiu na construção de uma unidade fabril localizada em Ulóngue, sede do distrito de Angónia, mas, lá está, a estrada que liga Tsangano-sede a Ulóngue tem 75 km de altos e baixos com buracos que impedem a circulação de viaturas de grande tonelagem.
“Na última campanha agrícola aprovamos dois projectos para a compra de trigo e foram adquiridas cerca de 12 toneladas. Entretanto, devido a dificuldades de escoamento, consta que todo o trigo foi vendido para o Malawi. Mas, continuamos determinados a fazer o nosso melhor para que o nosso trigo seja produzido e processado aqui”, repisou.
Camponeses finalmente conhecem o metical
Porque as transacções comerciais são orientadas para o Malawi, muitos camponeses viviam agarrados à moeda daquele país, o kwacha, e poucos conheciam o metical. Felizmente, este cenário tende a mudar graças ao estabelecimento de uma Máquina Automática de Pagamento, vulgo ATM, e à circulação de dois balcões móveis, propriedade dos bancos Terra e Oportunidade.
“Conseguimos reduzir a circulação da moeda malawiana, tornar o metical conhecido nas comunidades e fazer com que a população tenha contas bancárias para melhor gerir o seu dinheiro. Porém, a nossa meta é termos um balcão estabelecido aqui”, disse.
Pelo que constou à nossa equipa de Reportagem, os bancos comerciais continuam a “fintar” Tsangano por entenderem que a energia eléctrica que é fornecida a este distrito, apesar de ser da rede nacional, não é fiável, o serviço de internet funciona à base de modens, o que também não oferece garantias de estabilidade e, para complicar tudo, a estrada é aquela por onde passamos, com buracos de toda a espécie.
Enquanto se espera pelas estradas, bancos, qualidade de energia e de telecomunicações, a população de Tsangano não cruza os braços. Produz com um empenho invulgar. Encontramo-los nos campos a colher batatas, muitas batatas mesmo que depois seriam transportadas em carroças e camionetas para Tete.
Jorge Rungo
Fotos de Jerónimo Muianga