Nacional

A prisão onde se torturava até á morte

Seis meses antes do 25 de Abril ainda se torturava – em massa e até à morte – na prisão política da Machava, em Moçambique. Uma investigação da revista Expresso – que reproduzimos com à

devida vénia -, que teve acesso a documentos inéditos da Cruz Vermelha Internacional e da Igreja Protestante suíça e falou com as principais testemunhas, comprova que esta era a pior das prisões portuguesas de África durante a guerra colonial.

Jacques Moreillon é um dos delegados mais experientes do Comité Internacional da Cruz Vermelha (CICV), já visitou dezenas e dezenas de prisões políticas por todo o mundo. A Machava, em Lourenço Marques (actual Maputo), é mais uma. É dia 30 de Outubro de 1973. A inspecção vai no segundo e último dia, tido parece normal, mas a intuição diz-lhe que é engano.

De Genebra, sede da Suíça, tinha recebido informações seguras sobre maus-tratos e até torturas, e que devia procurar no pavilhão nº5. É o que faz. “senti que a atmosfera era muito bizarra”, recorda Moreillon, na sua casa nos arredores de genebra. “Naquela época falava bastante bem português e achei os presos muito reticentes, mais do que o costume e mais do que os de outros pavilhões. Até que, ao chegar à última cela, perguntei a quem lá estava se fora espaçando. Ele respondeu-me: “ainda não…” Como assim? quis saber. “Ainda não chegou a minha vez”. E os que eu já vi? “Todos os que já viu foram torturados”, sussurrou. “Mas nenhum deles se queixou”, estranhei. “Então, senhor delegado, volte lá atrás, leve consigo o seu colega médico, fale outra vez com eles, faça-os despir a camisa e eles que mostrem as costas.” Foi o que fiz. Tinha razão. O meu colega, o dr. Leu, tomou nota de tudo, para poder fazer uma descrição precisa no nosso relatório”.

Quando os delegados da Cruz Vermelha deixam para trás os pesados portões da cadeia da Machava sentem a garganta seca e um aperto de coração. “Trazíamos uma enorme lista de 45 presos que se haviam queixado de sevicias, 32 dos quais com marcas bem visíveis no corpo.” Desde 1965 que a CICV fazia visitas regulares ás prisões políticas da África portuguesa, desde o Tarrafal, em cabo Verde, até São Nicolau, em Angola. Mas nunca tinha visto nada semelhante.

Em Maio de 1971, 33 membros da congregação Padres Brancos haviam sido expulsos de Moçambique. Reflectindo sobre este gravíssimo incidente, o departamento missionário da igreja protestante suíça questiona-se sobre o sentido evangélico da sua permanência em Moçambique, onde se instalara quase um século antes. Na província portuguesa do Índico há 40 missionários, entre os quais o pastor Marcel Vonnez, o seu representante junto das autoridades. Nascido em 1933, com formação de agrónomo, chegara a Lourenço marques em 1966. Após um aturado debate, os missionários suíços decidem que está fora de causa abandonar a jovem Igreja Protestante Moçambicana (IPM), que ajudaram a fundar.

DEZENAS LEVADOS EM JIPES

Marcel Vonnez vive em Lourenço Marques, a cem metros da casa do pastor Zedequias Manganhela, presidente do IPM e um dos mais respeitados líderes protestantes de Moçambique. Num dia de Junho de 1972 “apareceu a polícia em jipes e levou várias dezenas de africanos”, conta Vonnez, que assiste a tudo. Oficialmente são detidos 31 membros da IPM, incluindo o vice-presidente, Casimiro Matié, e o próprio Manganhela.

A polícia faz uma razia entre as diversas comunidades protestantes, suspeitas de apoiarem a guerrilha da frente de libertação de Moçambique (Frelimo): presbiterianos, congregacionais, wesleyanos, adventistas, sionistas. Vonnez calcula em 1010 o número de prisões efectuadas entre Maio e Junho de 1972. A igreja suíça envia uma delegação a Moçambique, para pressionar a libertação de Manganhela e companheiros. O pastor Georges Andrié é um dos emissários. Nada conseguem, a não a autorização para uma celebração ecuménica na prisão.

A santa ceia – o rito equivalente à eucaristia católica – realiza-se a 8 de Setembro, no campo de futebol. “Quando partilhamos o pão e o vinho, estamos a dizer que somos homens e irmãos perante Deus”, explica Marcel Vonnez, um dos celebrantes. Alguns funcionários da Direcção-Geral de Segurança (polícia política portuguesa) recebem o pão e o vinho das mãos do pastor Manganhela. Entre eles está o inspector Francisco Lontrão, o mais temido dos torcionários. Os pastores suíços não mais esqueceram as palavras do colega: “Sr. Inspector, acabou de acontecer algo extraordinário. Comungou connosco! Isso significa que existem, doravante, novas relações entre nós”.

Georges Andrié escreverá num opúsculo: “ Foi para mim um dos mais autênticos e dramáticos testemunhos que tive o privilégio de ouvir e de receber” – “Moçambique. No cúmulo do sofrimento (1972-1974)”. Foram as últimas palavras que os protestantes ouviram de Zedequias Manganhela: semanas depois foi encontrado morto na cela.

INTERROGATÓRIOS NA VILA ALGARVE

Esta fora a primeira vez que os cristãos da IPM haviam saído das celas. A segunda é quando a CICV inspecciona a prisão, sendo-lhes deliberadamente ocultados numerosos detidos, incluindo Manganhela.

Os interrogatórios decorrem na Vila Algarve, a sede da DGS. As sessões prologam-se entre um dia e várias semanas. Se não falavam – recordará o pastor Vonnez, numa carta -, a polícia não tardava a chamar um dos africanos preparados para esse efeito e batiam. Primeiro nos dedos, depois nas costas.” Os principais responsáveis da DGS são Francisco Lontrão, Antero Semblano, Santos Correia, Luís Lemos. O agente africano, famoso, famoso e odiado entre os detidos, é “Chico Feio”, A polícia tenta arranjar provas para acusar a IPM de colaborar e financiar a Frelimo, o que poderia levar a proibição das suas actividades e à expulsão dos missionários. Ninguém desconhecia a estreita ligação entre Manganhela e Eduardo Mondlane, o fundador da Frelimo, assassinado pela PIDE (antecessor da DGS) em 1969. “Mas a verdade”, assegura Vonnez, “ nos nossos cultos, a que toda a gente podia assistir, nem uma só vez se falava da Frelimo”.

A morte de Manganhela é anunciada a 11 de Dezembro. As autoridades insistiram na tese de suicídio, firmemente rejeitada por Marcel Vonnez. “Conheci-o muito bem, viajei com ele por todo o território de Moçambique, não era homem para se suicidar. Sempre confiou em Deus e suicidar-se seria cortar ligação a Deus”. O serviço fúnebre decorre no templo do Khovo, na capital. “havia uma multidão, silenciosa e digna, que enterrava o seu mártir e dizia interiormente “viva a Frelimo!”. O rosto do cadáver está retocado, por forma a disfarçar sinais de violência. Visível apenas uma mão, estranhamente coberta por uma luva. Só mais tarde Vonnez perceberá porquê: as unhas teriam sido arrancadas sob tortura.

Pouco antes de Manganhela haviam falecido na Machava dois outros cidadãos da IPM: José Sidumo e Cardoso Ntamele. Tanto quanto se sabe, os corpos desapareceram. O pastor Georges Andrié reteve um impressionante depoimento de Hans-Theodor Thomsen, um antigo legionário alemão acusado de colaborar com a Frelimo. Evadido da Machava, Thomsen contou à igreja protestante suíça que durante os dez meses em que ali viveu morreram 50 pessoas em consequência de maus – tratos. “Os corpos eram atirados para uma fossa que servia de lixeira da prisão. Depois disso, essa foi entulhada e fizeram um jardim.

 

UM BRANCO

EM QUEM CONFIAR

A morte de Manganhela suscita uma tal condenação internacional que, no fim do ano, Lisboa determina a libertação do grupo da “missão suíça” – 37 ao todo. Nas semanas seguinte, Marcel Vonnez interroga-os. “Convidei-os e muitos vieram por si próprios. Tinham vontade de contar tudo e mostrar as marcas no corpo. Via nos seus olhos a cólera contra os brancos, mas confiavam em mim. Vivia com eles, aprendera a língua xangana, adoptara três crianças moçambicanas, o que era qualquer coisa subversiva. Em África, até me esquecia que era branco…” Esta confiança permiti-lhe que fotografe as cicatrizes bem vincadas na carne. Fotos que entretanto se perderam.

Revoltado com quanto viu e ouviu, Vonnez interroga a igreja suíça. “Que vamos nós fazer, qual é o passo seguinte?” Uma pergunta a que o próprio responde: “ A primeira coisa a fazer é contactar um representante da Cruz Vermelha Internacional.” Nos nove pavilhões calcula que haveria “entre 1800 e 2700 prisioneiros”. Chama a atenção para os pavilhões 5 e 7.

REGRA DE OURO:

NUNCA COMEÇAR

PELA PRIMEIRA CELA

Pacientemente, Vonnez começa a descrever a prisão. “Para perceber melhor o que se passara, e com a ajuda da nossa gente, comecei a fazer um desenho. O bloco 5, onde é? O 2, onde fica? Só lá tinha ido uma vez mas fui reconstituindo o seu interior.” O resultado é um relatório de 25 páginas, em francês, concluído em Abril de 1973, a que chama “Testemunhos sobre os acontecimentos ocorridos em Junho-dezembro 1972 na prisão de Machava (Lourenço Marques) ”. Em anexo traz alguns mapas, com a localização dos pavilhões, assinalando aqueles onde estariam presos de mais envergadura ou a ser interrogados. O “relatório Vonnez”, sai discretamente de Moçambique nas mãos de um anónimo, que o faz chegar á Suíça.

Uma vez na posse da igreja protestante suíça, os dados do “relatório Vonnez” não tardam a chegar ao conhecimento de Jacques Moreillon. Funcionário do Comité Internacional da Cruz Vermelha, fora o representante na América do Sul e desde Julho de 1972 que é o delegado-geral para África. “O CICV tinha e continua a ter várias fontes de informação”, confirma Moreillon. “Uma era o Departamento Missionário protestante da Suíça francófona. Outras são a comissão Internacional de Juristas e Amnistia Internacional.

A CICV visita regularmente as prisões da África portuguesa: Cabo Verde, Guiné, Moçambique. Estabelecimentos com milhares de prisioneiros políticos, suspeitos de pertencer aos movimentos de libertação envolvidos nas três guerras. Visitas necessariamente autorizadas pelo Governo de Lisboa, que sempre haviam incluído entrevistas aos presos sem testemunhas – uma condição considerada absolutamente sine qua non. Como sublinha Jacques Moreillon, que viria a ser director-geral da CICV, “um preso que é maltratado ou torturado não exprime livremente diante do seu torcionário”.

A Machava fora alvo de quatro inspecções desde 1966. A partir do cruzamento de várias informações, Moreillon percebera que a última, efectuada em 1972 por Henry Santschy, “decorrera com alguns problemas”. Decidi lá voltar, tão cedo quanto possível. “Procurei saber onde podia meter o dedo para identificar os presos susceptíveis de terem sido torturados. Sei agora que a fonte de informação foi o “relatório Vonnez”, – mas só soube há algumas semanas, quando comecei a preparar a entrevista ao Expresso.”

O CICV chega a Lourenço Marques a 27 de Outubro de 1973. Os três delegados – Jacques Moreillon, Nicolas de Rougemont a François Leu – percorrem a Machava nos dias 29 e 30. Na mais importante das cadeias da colónia portuguesa do Índico estão, segundo o CIRC, 1094 presos políticos. “sabia que era preciso ir ao pavilhão nº5, era lá que estavam os presos que importava ouvir.” Em visitas deste género “há uma regra de ouro. Quando se entra num pavilhão, nunca se deve começar pela primeira cela. Pelo contrário: Há que percorrer o corredor até ao fim, lentamente, para que os detidos nos possam ver através das janelas abertas ou entre as grades, e saibam que, na volta, quando sair, o delegado voltará a passar diante da cela. Cada delegado vai identificado com um grande emblema da Cruz Vermelha, preso ao braço ou na lapela. “Devemos passar diante das celas sozinhos, para dar confiança e coragem aos detidos.

È nesta visita que alguém, interrogado sobre se fora espancado, segreda: “ainda não…” Um murmúrio diz tudo, que Moreillon nunca mais esqueceu e que lhe permitiu detectar um vastíssimo quadro de violência e tortura. Conhecedor da língua portuguesa, dispensa intérprete. “Tinha realmente essa vantagem. Quando em 1964 o Ministério do Ultramar convidou um grupo de estudantes do Instituto dos Altos Estudos Internacionais de genebra para visitar Angola e Moçambique, decidi aprender português. Foi uma viagem de dois meses, de propaganda, mas muito agradável. Fomos acompanhados pelo Pedro Feytor Pinto e ficámos amigos para sempre”.

Moreillon e o médico François Leu escutam e observam atentamente uma centena e meia de prisioneiros. Só no pavilhão nº5, como se lê no respectivo relatório, “45 detidos afirmaram terem sido espancados” durante os interrogatórios; “ dentre eles apresentavam sinais característicos de sevícias (…); 33 detidos disseram que não haviam sido espancados, mas há que assinalar que alguns deles tinham vestígios característicos de sevícias prováveis e recentes”. Foram apuradas ainda “numerosas alegações relativas a maus-tratos mais antigos, que teriam sido cometidos fora da Machava”. O instrumento utilizado tanto era o cavalo-marinho, a  palmatória ou o chamboko (chicote de pele de Hipopótamo). 

O relatório expõe os 45 casos, uma a um, com a menção do nome, cela, data de entrada na prisão, queixas e, por último, os sinais confirmados pelo médico da Cruz Vermelha. Alfredo Sithoe é talvez o mais chocante: “espaçando em todo o corpo e no rosto”, com sérias lesões na nuca, tórax, perna direita, mãos e pálpebra esquerda, Quanto a Danji Sidi, fora agredido na manhã da própria visita por dois europeus – “um espancava e outro batia a máquina”. A violência é quase sempre imputada a um africano chamado “Chico”, por vezes na presença de uma gente europeu da DGS, de nome João.

Um relato verbal deste quadro é feito no fim da visita ao inspector Francisco Lontrão. O PIDE justifica-se, dizendo que eram “bandidos” ou “bandoleiros vulgares”, que “aterrorizavam as populações”; detidos em rusgas pela PSP, “resistiam” e eram entregues à DGS “já com as marcas das palmadas”. Lontrão está em contacto permanente com o director da DGS de Lourenço Marques, Pereira de Castro, o governador-geral de Moçambique, Pimentel dos Santos, e o ministro do Ultramar, Silva Cunha. O governador avisa o ministro que os delegados “tencionam tentar uma ida a Wiriamu – o local do terrível massacre de civis, perpetrado por uma força dos Comandos e cuja denúncia, em Julho anterior, chocara a opinião pública mundial. Silva Cunha alarma-se e responde através de telegrama: “Não devem ir a Wiriamu”.

FAZER CHEGAR A CARTA

A MARCELLO CAETANO

A cadeia que se segue é a de ponta Mahone, a sul da capital, para onde a DGS havia transferido dois padres espanhóis, por forma a evitar que se avistassem com a Cruz Vermelha na Machava. Lontrão acompanha os homens do CICV. No barco que atravessa o rio Tembe, o inspector pergunta ao suíço quem o autorizara a falar com os prisioneiros sem testemunhas. Disse-lhe que era um procedimento habitual, autorizado pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros. “Mas nós dependemos do Ministério do Ultramar, não do MNE”, respondeu Lontrão. E comunicou-me que Lisboa tinha proibido mais entrevistas a sós com presos. Disse-lhe então que,  nessas condições, não entraria em nenhuma prisão, e regressei a Lourenço Marques.”

 Interrompida a visita a Moçambique, Moreillon apanha o primeiro voo para Lisboa, onde chega a 2 de Novembro. No avião, redige à mão o relatório sobre a Machava. “Em Lisboa fui logo ter com o meu amigo Pedro Feytor Pinto. Director de serviços da Secretaria de Estado da Informação e turismo, Feytor Pinto trabalha no Palácio Foz e recorda: “ Eu tinha a meu cargo as relações com os jornalistas estrangeiros, conhecia muito bem o Jacques Moreillon e tinha acesso directo a  Marcello Caetano. Para Moreillon, era vital que o chefe do  Governo conhecesse o relatório. Lembro-me do Pedro a tirar foto cópias, numa máquina a álcool, muito lenta, após o que a enviou a Caetano.”  O suíço tem pressa: “Era muito importante que a visita fosse retomada o mais cedo possível, a fim de rever todos os nossos informadores e queixosos e evitar que sofressem represálias”.

Outra cópia do relatório, de carácter confidencial, é entregue por Moreillon ao director-geral dos Negócios Políticos do MNE, Freitas Cruz. Num documento classificado de secreto, o embaixador regista a sugestão para que se proceda “com a possível brevidade a um inquérito”. Instado pelo embaixador, Moreillon é peremptório em afirmar que nunca manifestou qualquer desejo de visitar Wiriamu, um caso que não era da sua competência nem do CICV”.

Acossado, o inspector Lontrão dá a sua versão, num relatório de dez páginas. Estes delegados não agiram da mesma forma” que os anteriores, queixa-se. “ Resolveram visitar cada um dos pavilhões, que são nove, cela por cela (…) sendo visível a diligência cuidadosa dos delegados em meterem o nariz em todos os cantos. Insistiam com os presos “para que lhes dissessem se lhes tinham batido”. Pior: Obrigavam os presos a despir as camisas para lhes verem as costas.” Dias depois, sentindo-se “profundamente chocado” com  a actuação do CICV, Lontrão apresenta a carta de demissão, prontamente aceite.

DGS DEFENDE-SE COM PODE

A versão final do relatório do CICV é enviada a 5 de Novembro a Marcello Caetano. Escrito em Francês, o documento tem o título “Alegação de maus-tratos na Machava, Outubro de 1973”. A acompanhá-lo, Roger Gallopin, um dos seus principais dirigentes do CICV, apela a Caetano: “Não duvidamos que o seu governo tomará as medidas que se impõem”. E insiste na urgência de uma nova visita à Machava. A resposta de Caetano é positiva. Sem nunca falar em inquérito, afiança que “mandou imediatamente ouvir as autoridades locais” e que “determinou que (…) sejam efectivadas responsabilidades”. Numa “nota verbal” enviada para são Bento, Mordillon manifesta satisfação pelo facto de Caetano ter “ordenado o inquérito que se impunha” e indaga quando poderá retornar a Moçambique.

Ameaçada com um inquérito, a DGS de Lourenço Marques defende-se. Condena o CICV pelo “propósito deliberado” de “ vasculhar todo o espaço prisional sem qualquer testemunha”. Reconhecendo finalmente alguns maus-tratos, argumenta que resultaram “de incidentes não  raro inevitáveis no curso de interrogatório dos presos de certo tipo de delinquência”. As inquirições limitaram-se a meia centena de indivíduos, que representa 3,5 porcento do total de reclusos” num centro que “pretende ser… mais uma escola de virtudes cívicas”. O documento admite “um ou outro aspecto” de classificação negativa”, mas sublinha que já “ foram afastados para outros serviços dois dos funcionários”.

Também o governador-geral de Moçambique não quer inquéritos. Num ofício secreto” e “muito urgente” ao ministro do Ultramar, Pimentel dos Santos espera que se dê “a questão por encerrada com a substituição do inspector Lontrão e outros elementos da DGS”. Já o director da DGS de Lourenço Marques não esconde o seu pânico perante o cenário de uma investigação independente à sua corporação. Em carta ao seu superior, Silva Pais, pereira de Castro alerta para “o grande melindre e as situações imprevisíveis que poderiam advir de um inquérito ser feito por entidade estranha à DGS”.

“FOI TERRÍVEL”

Volvido um mês sobre o envio do relatório ao Governo, a direcção do CICV, em Genebra, emite um comunicado dando conta do “desacordo” sobre a visita a Moçambique. Noticiado pela imprensa internacional, em Portugal o Exame Prévio trata de o censurar. Instado a dar a sua opinião, Feytor Pinto observa que “ um recomeço das visitas (…) seria, de um ponto de vista de opinião pública, extremamente salutar”. No despacho, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Rui Patrício, dá um parecer favorável.

Garantido finalmente o respeito pela sacrossanta regra das entrevistas sem testemunhas, Moreillon regressa à Machava em Janeiro de 1974. “Quis saber junto dos prisioneiros o que se tinha passado depois da minha visita. “Foi terrível” disseram todos com quem falei; foram horrivelmente maltratados.”

A polícia perguntava a cada um: “Falaste com a Cruz Vermelha? Então toma, esta é pela Cruz Vermelha…” Até que um Dezembro chegou uma pessoa que nunca tinham visto, vinda especialmente de Lisboa, diante da qual toda a gente se inclinava. Viu e falou individualmente com todos os que tinham estado connosco. Depois “Chico- Feio” desapareceu e,  a partir daí, mais ninguém foi molestado.”

 

NUNCA MAIS

CORTOU A BARBA

O novo quadro é confirmado por uma nova missão do CICV, que percorre os centros de detenção de presos políticos em Moçambique. O respectivo relatório, de 22 de Fevereiro de 1974, refere maus-tratos na Beira, Nampula e Quelimane. Na Machava, porém, nada a apontar. No oficio que acompanha o relatório, Roger Gallopin, da direcção  do CIRV, manifesta a Caetano o seu regozijo: “ a tortura acabou ” na Machava, o que demonstra que “a intervenção das altas autoridades da metrópole foi simultaneamente necessária e suficiente”.

Com 73 anos, reformado, Jacques Moreillon não esconde a “satisfação pessoal e institucional” por este desfecho. “Esta é uma história exemplar e que felizmente acabou bem porque pôs fim à tortura, que fazia parte de um sistema institucional. Quando não há resultados, perde-se um pouco a moral”. Adverte, porém, que a história “só ficará completa quando os arquivos do CICV sobre esta época forem acessíveis público”. O que só acontecerá em 2015.

Depois da independência de Moçambique, Samora Machel decretou o encerramento das missões protestantes. O pastor Marcel Vonnez regressou à Suíça em  1976, com a mulher e os cinco filhos adoptivos, dois brancos e três  negros. Não mais voltou a Moçambique. E também nunca mais cortou a barba, que começou a deixar crescer, num preito de homenagem, no dia em que o amigo Manganhela foi morto.  

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Artigos Relacionados

Botão Voltar ao Topo