Para quem, como eu, esteve no Zimbabwe nos anos 2000 a 2002, onde o espectro que não desaparece da memória era o das longas bichas de viaturas em busca de combustível escasso e uma
carestia generalizada da vida, hoje encara o Zimbabwe com surpresa.
Nos anos 2000 o Zimbabwe ficou famoso, em primeiro lugar, pela crise de combustível, no que se veio a saber que afinal os oficiais gestores do sistema tinham entrado em esquemas com companhias sul-africanas para abandonar uma linha de fornecimento com facilidades de pagamento. Naqueles anos, numa situação que viria a piorar nos anos 2007 a 2009, um carro podia passar mais de 15 horas consecutivas na bicha aguardando pela sua vez de meter alguns litros limitados de combustível.
As bolsas de fome levaram as autoridades zimbabweanas a tomar medidas fronteiriças invulgares, que consistiam em limitar a quantidade de bens alimentares que podiam sair. Na altura testemunhamos casos de viajantes que viam seus saquinhos de farinha celeste, açúcar e até pão confiscados na fronteira de Machipanda.
Só para refrescar a nossa memória, o Zimbabwe e o próprio Robert Mugabe, que entrou no poder primeiro como primeiro-ministro, depois como presidente, sempre mereceram carinho e referência internacional como sendo o BOM EXEMPLO DE SUCESSO, numa altura em que se diabolizava a política de Samora Machel, de Libertar a Terra e os Homens, através da nacionalização.
Até o ano 2000, a propriedade privada, digamos, propriedade estrangeira e nas mãos de brancos, não havia sido tocada. Isso inclui as vastas propriedades nas mãos de uma minoria, onde se podia ver imponentes chapas sobre matas desaproveitadas, com dizeres como PRIVATE PROPERTY.
A República do Zimbabwe entrou em declínio e colapso económico nos anos dois mil, exactamente quando se completavam os 20 anos acordados com a Inglaterra no momento da proclamação da Independência em 1980 para que a antiga potência colonizadora desembolsasse os fundos necessários para indemnizar os seus descendentes para uma reforma pacífica da terra.
Em vez disso, a Inglaterra começou a impor como condição para apoiar este processo de reversão das terras aos nativos, que o partido dos veteranos que impuseram a independência saísse do poder, curiosamente, para dar lugar a um movimento que até hoje não tem como sua preocupação a devolução da terra aos nativos, mas sim a perpetuação do poder dos brancos.
A crise zimbabweana se agravou ainda mais com a implementação de sanções económicas contra aquele país, o que cortou as pernas tanto em termos de fluxo de donativos como em termos de acesso ao mercado internacional para trocas comerciais legais dos seus recursos manufacturados e naturais.
A vida dos zimbabweanos piorou ainda com o drama da inflação, que atingiu proporções de incerteza ao ponto de um indivíduo dormir milionário para acordar e saber que tudo o que tinha, hoje só vale um dólar americano ou pouco mais.
Contam-se situações em que com a volatilidade do câmbio, podia se entrar numa loja e ver uns produtos com um determinado preço e, se demorasse, o preço podia alterar mesmo antes de pagar.
Importa aqui sublinhar que as autoridades zimbabweanas mantiveram um câmbio fictício, com uma valorização administrativa do dólar zimbabweano, ao ponto de a diferença entre o câmbio oficial e o real (paralelo) ser de 70 para 2500 nos anos 1999 a 2002. Portanto, era uma questão de tempo que, no meio de toda a hostilidade local e internacional, a economia zimbabweana acabaria por entrar em colapso.
O ZIMBABWE DE HOJE
Diz-se que o preço da cerveja, do pão e da acomodação é o melhor termómetro do custo de vida comparativo de um país. Mas também a densidade do tráfego, ou seja, a abundância de viaturas, sua qualidade e marcas, a frequência ou não de cidadãos às casas de pasto, o volume de movimento nos supermercados e sua existência, preços praticados e a capacidade de consumo por cidadãos nacionais, são também outros indicadores importantes.
Foram estes elementos que procurei observar quando cobria as últimas eleições harmonizadas do Zimbabwe.
Quanto ao primeiro indicador, preço da cerveja e pão. Este indicador, numa altura em que a moeda em utilização é o dólar norte-americano, permite-nos dizer que a vida está suportável.
Uma cerveja pequena, independentemente da marca, num bar ou restaurante, custa dois dólares norte-americanos, o que equivale aos nossos cerca de 60 meticais a que é vendida cerveja igual em Moçambique (isto antes, obviamente do movimento três 100).
Um pão-de-forma anda por um dólar americano, sendo também o mesmo preço dos jornais diários.
Quanto a outro indicador aqui eleito, a densidade do tráfego e parque automóvel, importa referir que, comparativamente aos anos lá idos, o tráfego adensou, não sendo dramático em Harare mercê da existência de uma estrada circular que oferece uma gama de opções de entradas e saídas à cidade.
As marcas e imponência das viaturas, o visual das pessoas, desde o estarem à moda e o brilho dos seus rostos, contrastam com a palidez e ar carrancudo e sofredor com que muitas faces se apresentavam até lá para os anos 2009.
Apesar de os números oficiais da taxa de desemprego apontarem para 24 por cento (três por cento a mais que Moçambique), de acordo o Country Report da CIA 2013, a grande novidade que notei em Harare desta vez é a iniciativa individual. Os zimbabweanos já aprenderam a empenhar-se na actividade comercial, contribuindo para o fluxo de mercadorias e trocas entre várias regiões do país e com os vizinhos através da intensificação do comércio transfronteiriço.
Numa zona bem delimitada da Baixa de Harare, por exemplo, desfilam cabeleireiros, barbearias, postos de lavagem de carros, assistência técnica a viaturas,numa iniciativa que acaba por absorver boa parte dos 24 por cento de zimbabweanos, que continuam estatisticamente tidos como desempregados.
O forte do Zimbabwe, que é a Educação, não decaiu mesmo nos momentos mais duros. Um amigo meu que foi fazer o seu Mestrado no Zimbabwe, exactamente nos anos 2008 a 2009, reporta um nível de organização pedagógica e académica, desde a informatização de todo o sistema, incluindo a abundância de material académico, acesso a jornais científicos e publicações actualizadas que nunca deixou a classe abaixo dos outros países.
A taxa de alfabetização continua a “bater” acima dos 95 por cento, sendo, talvez, essa a razão por que se assiste um debate aceso tanto nos meios de comunicação social como na arena académica, com conferências e lançamento de vários estudos analíticos de cada momento político, social e económico daquele país.
Os preços de acomodação em estabelecimentos hoteleiros médios variam entre 40 e 65 dólares norte-americanos, enquanto o táxi chega a cobrar 75 dólares para cerca de seis horas de aluguer.
Dados não oficiais apontam para um salário mínimo médio de 300 a 400 dólares americanos o que, no dizer do taxista que nos acompanhou na cobertura de eleições, está muito abaixo do que qualquer um pode ganhar com auto-emprego, por exemplo, como taxista ou barbeiro.
Este é o Zimbabwe real, visto por nós mesmos e não contado a partir de Nova Iorque ou Londres. O mais importante mesmo é que a media africana comece a tornar-se fonte primária, visitando e conhecendo de perto a vida dos povos africanos.
Refira-se que a 31 de Julho os zimbabweanos foram às urnas votar simultaneamente o Presidente da República, os membros da Assembleia Nacional e a autoridade local, tendo Mugabe e o seu partido ganho folgadamente, pondo assim fim ao Governo Inclusivo que integrava três partidos. A oposição não aceitou os resultados e terá já remetido formalmente ao Tribunal Constitucional as suas alegações. Entretanto, o Chefe do Estado e os membros da Assembleia Nacional deverão ser empossados esta semana.