Internacional

Um golpe contra a cúria romana

– Francisco é o primeiro Papa americano, o primeiro jesuíta e o primeiro a escolher este   nome. Adivinham-se mudanças no governo da Igreja

A eleição de Jorge Mario Bergoglio rompe os moldes do governo central da Igreja Católica. O pontífice vindo do “fim do mundo”, como ele próprio disse, altera a óptica do catolicismo sobre o 

planeta. Isto se não for engolido pelo turbilhão de Roma. O Papa Francisco foi escolhido num golpe de mestre dos cardeais eleitores e deverá corresponder às expectativas. Se o primeiro Papa jesuíta da História acabasse como os jesuítas do filme “A Missão”, de Roland Joffe, seria uma desilusão universal.

Não será fácil para o Papa, que vivia em duas assoalhadas de Buenos Aires, passar a habitar um dos palácios mais sumptuosos do Vaticano, servido por um mordomo em vez de cozinhar o seu jantar, escoltado e vigiado pela Guarda Suíça, escrutinado e talvez entorpecido pela parafernália de um aparelho de governo secular. Não seria de admirar que decidisse viver de forma mais espartana. Não será um simón Bolívar para os 1200 milhões de católicos, mas é provável que se revele um surpreendente João XXIII dos tempos modernos.

Num conclave durante o qual muitos cardeais mudaram de planos, ocorreu um golpe (talvez santo, mas golpe), embora em linguagem eclesiástica se chame consenso. Os cardeais da Alemanha e dos Estados Unidos, considerados reformistas, uniram-se a muitos latino-americanos e a alguns representantes do terceiro Mundo no apoio a Bergoglio, a partir da terceira votação. Pela frente tinham uma oposição, sobretudo curial e italiana, dividida e desorientada pelos recentes escândalos, incapaz de se congregar em torno de qualquer dos “papáveis” mais bem cotados. Algo semelhante sucedeu em 1978, quando o empate continuado entre dois italianos favoreceu a eleição de Karol Wojtyla (João Paulo II).

Não há informações directas sobre o que se passou enquanto os 115 cardeais estiveram trancados na Capela Sistina. Vários indícios permitem deduzir que, a partir do terceiro escrutínio, muitos eleitores decidiram virar a pagina das corrupções, do Vatileaks, do banco papal e dos relatórios secretos sobre lobbies, para dar uma reviravolta, ao que parece, total.  Francisco terá sido eleito para reformar a cúria, o governo central   da igreja. Tem uma visão moderna da igreja e dos problemas do mundo, explica Sergio Rubin, autor de O Jesuíta – livro sobre Bergoglio-, prevendo um Papa bom, mas determinado.

 Na América Latina vivem 42 porcento dos  1200 milhões de Católicos (e 50 porcento em todo o continente americano). No conclave de 2005 Bergoglio teve 40 votos face a joseph Ratzinger. Foi o argentino que dissuadiu os cardeais seus apoiantes, ao almoço do segundo dia. Não estou preparado, terá dito. A igreja não está preparada para um Papa latino-americano, terá rebatido o cardeal Dolan, de nova Iorque. Passados sete anos, o próprio Bento XVI confessou a  Bergoglio: “Talvez tenha chegado a hora de um Papa do seu continente”.

Há quem, como o jornalista Horacio Verbintsky, acuse o Papa de ter ficado calado durante a ditadura militar de Jorge Videla (1976-83), ou mesmo de ter entregado dois padres jesuítas, torturados durante cinco meses. Argentina, sempre o negou, dizendo que trabalhou nos bastidores pela sua libertação. A igreja argentina pediu desculpas públicas pela passividade face à repressão e Adolfo Pérez Esquivel, Nobel da Paz em 1980, saiu em defesa do Papa: “Houve bispos cúmplices da ditadura, mas bergoglio não”.

 A eleição do polaco Wojtyla, em 1978, favoreceu o nascimento dos sindicatos livres num país do chamado “socialismo real”. Pouco a pouco, o sistema comunista desmoronou-se e ate a Uniao Soviética se desintegrou. Os EUA de Ronald Reagen treparam para a viatura papal, ao ponto de o secretário de estado do Vaticano, Agostino Casaroli, ter tido de desmentir a existência de conversas diárias entre João Paulo II e Washington a propósito da Polónia. “A greta ampliou-se e acabou por derrubar todos os muros do império soviético”, escreveu o católico Vittorio Messori.

CONTRA O CAPITALISMO SELVAGEM

A escolha de Bergoglio muda a geoestratégia do catolicismo, mas é improvável que gere uma revolução no “fim do mundo”, o sul do planeta. É possível, porém, que os deserdados da terra tenham encontrado um advogado que os defenda nas altas instâncias internacionais. O capitalismo selvagem, que prospera no hemisfério sul, pode receber críticas documentadas a partir de Roma, talvez sob a forma de encíclicas, como a “Pacem in Terris”, de Joao XXIII, o Papa com quem mais se parece Francisco.

Este disse um dia: “A economia especulativa, desprovida de ética, persegue o ídolo do dinheiro. É por isso que não tem remorsos em transformar milhões de trabalhadores em desempregados”.

No primeiro sermão como Papa, Francisco disse: “É preciso caminhar, construir e dar testemunho de Cristo, o resto é mundanidade”. “Temos de sair de nós próprios, ir à periferia”, defendera numa entrevista, em 2012, reconhecendo que  “sair à rua pode propiciar acidentes, mas é melhor do que ficar fechado”.

Noutra ocasião advertiu que “os sacerdotes têm de pregar a verdade, fazer bem a todos e iluminar a vida do povo. Não basta que a nossa verdade e a nossa pastoral sejam ortodoxas e eficazes. Sem a alegria da beleza, a verdade torna-se fria, impiedosa e soberba, como sucede nos discursos de fundamentalistas inveterados”.

O primeiro indicador da mudança trazida pelo Papa argentino será a escolha do secretário de Estado, equivalente a primeiro-ministro do Vaticano. Segundo Hans Kung, o teólogo mais anti-Cúria do planeta, afastado do ensino por Ratzinger, “não deverá ser um representante do sistema romano”.

É tal a envergadura do pontificado que Francisco poderá socorrer-se da sugestão do defunto cardeal Carlo Maria Martini – patrocinador da sua candidatura em 2005 – e celebrar um Concílio Vaticano III. Martini era jesuíta e Bergoglio também, tal como o autor do livro “Rumo ao Concílio Vaticano III”, nunca publicado e destruído por ordem superior.

 

 

Na Argentina festeja-se um Papa do povo

OExpresso visitou a favela onde o cardeal Jorge Mario bergoglio caminhava pelo meio do povo e falou com a sua família. A população gostou mais da escolha do que o Governo argentino

O número de sócio de Jorge Mario Bergoglio no Clube de Futebol San lorenzo (fundado por um padre) é 88235. Na Lotaria Nacional argentina de quarta-feira, foi sorteado o número 8235. Na  Quiniela Nacional, cujos números tem significados, saiu o 88, que representa o Papa, na Quiniela de Buenos Aires,  foi o 40 (o Padre). Muitos apostadores já interpretam estas coincidências como o primeiro milagre do Papa.

A escolha de Bergoglio é um milagre para todos nós, garante Gloria Mairán, de 76 anos (a idade do Papa). É muito importante, sobretudo para os jovens renovarem a esperança. Na Catedral de Buenos Aires, diante da Histórica Praça de Maio e a passos da Casa Rosada, sede do Governo, canções religiosas e cânticos próprios de estádios de futebol misturaram-se com bandeiras argentinas e do Vaticano. “El Papa es argentino!”, entoavam, sem conter o orgulho. Numa praça acostumada a protesto estado de graça permanente.

Bergoglio sempre foi famosos pela humildade, simplicidade, contacto com os pobres e austeridade. Era visto no metro e no autocarro. Abdicou do motorista e da cómoda residência a que tinha direito. Politizado, atacou a corrupção, a desigualdade social, o populismo e ate a política económica dos governos de Nestor e Cristina Kirchner, com quem teve uma relação tensa. “Muitos no Governo não estão felizes, mas o povo está”, afirma Ana Pineyro, de 50 anos. “Ele fez a minha primeira comunhão no colégio. É um verdadeiro exemplo para os jovens”, acrescenta a filha, Melina, de 17 anos. Não tenhais medo da liberdade, há muitos charlatães que vos vendem falsidades para que tenhais medo da vida e da liberdade”, disse bergoglio aos jovens.

Moderado e reformista, o Papa foi contra o casamento homossexual, cuja aprovação no país motivou confrontos com a Presidente, mas não contra a união civil de pessoas do mesmo sexo. Opõe-se ao aborto, mas não a baptizar filhas de solteiras e divorciadas. “Os bebés não são responsáveis pelo casamento dos pais”, disse numa entrevista. Na economia, é progressista. “A Igreja apostou nesta região para evangelizar um mundo em crise”, diz o seminarista peruano Javier Bastos, de 27 anos, há três na Argentina.

Emanuel Bergoglio é sobrinho do Papa. Prefere manter-se discreto, uma característica desta família, devota de São Francisco de Assis. “Recebi a notícia com alegria e preocupação. Só posso dizer que rezo por ele, como sempre me pede”, diz Emanuel, médico formado na Universidad del Salvador, onde o tio foi reitor. “Rezem por mim”, pede Bergoglio no fim de cada conversa, seja com uma autoridade seja com o mais humilde fiel de uma favela. Incentivou os “curas villeros” (padres nas favelas) e criou uma rede de padres nas zonas pobres.

A humilde capela da villa 31, favela de 40 mil habitantes, está cheia desde que Bergoglio passou a ser Francisco. A comunidade prepara uma missa para rezar pelo Papa, que a visitava pelo menos uma vez por ano, para a comunhão dos jovens. “As vezes vinha a pé rezando o rosário”, conta o padre Guillermo torres, colocado na capela, há 14 anos, pelo então arcebispo Bergoglio. “Sempre percorreu os bairros humildes. Optou pelos pobres. Queria que a sua igreja desse preferência aos excluídos. A sua simplicidade e humildade não são comuns. É austero, sem vínculo com os bens materiais”, reforça. “Nas quintas –feiras Santas, não ficava na catedral. Lavava os pés de doentes de SIDA, idosos e jovens a recuperar das drogas”.

“Sempre dissemos que era um sucessor de Jesus. Transmitia uma paz no coração com um simples gesto de apertar as mãos, dar um beijo ou um abraço”, emociona-se Graciela Matrinez, de 43 anos, na Villa 31. “Sempre me disse que a fé e a felicidade dependem só de nós”.

 O seminarista Jesús Carides, de 18 anos, conheceu Bergoglio na Favela Bajo Flores, e por isso escolheu o caminho da religião. “Comecei o seminário no dia em ele foi eleito Papa. Para mim foi um sinal”, diz.

Nas favelas de Buenos Aires, boa parte dos moradores são paraguaios, bolivianos e peruanos. Com todos, Bergoglio aprendeu a ser mais latino-americano. “Não paro de chorar de alegria. O meu marido diz que estou louca. Vim à missa e não voltei mais. O meu marido só me encontrou porque me viu na TV”, exalta-se a paraguaia Porfiria Ortiz, de 50 anos. “Não paro de receber mensagens de amigos e parentes no Paraguai. Conhecemos o Papa. Sabemos quem é. Virão dias de grandes exemplos e ensinamentos”. 

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