As ondas de choque que varrem o Egipto e que culminaram com a queda do Presidente Mohamed Morsi foram o pretexto para uma conversa com Calton Cadeado, docente do Instituto Superior de
Relações Internacionais (ISRI), nas cadeiras de Estudos de Paz e Conflitos e Negociação e Resolução de Conflitos. Eis a entrevista em discurso directo.
Olhando para o que actualmente se passa no Egipto, na Tunísia e na Líbia a pergunta que lhe coloco é se terá valido a pena a chamada “Primavera Árabe”?
Sim, valeu a pena, mas temos que contextualizar. Valeu a pena porque é uma mudança que se criou, apesar da forma como tudo ocorreu. Há ganhos no meio destes acontecimentos, que alguns chamam “revolução”, embora eu não concorde muito com essa expressão.
A que ganhos se refere?
Por exemplo, o romper com um antigo sistema que tendia mais para o ditatorial. Se reparar na história pós-1990, que coincide com o fim da Guerra Fria, quase todas as regiões do mundo partiram de uma situação de quase monopartidarismo para uma situação de multipartidarismo e em que a democracia liberal triunfou. Mas o Médio Oriente sempre ficou para trás.
Em África acabou a Guerra Fria e todos introduzimos a democracia multipartidária e embarcamos abertamente na economia de mercado. América Latina e Ásia foram pelo mesmo caminho. O Médio Oriente é/era o único espaço geográfico do mundo que resistia à onda de democratização e em que os direitos civis e políticos ainda não estão a ser exercidos pelas pessoas de uma forma que permita que sejam mais participativas na vida social e política dos Estados. As pessoas perceberam que podem exercer maior contributo no desenvolvimento dos seus Estados.
Mas há problemas…
O único problema é a forma como esta revolução foi feita. De formarepentina. Não foi estruturada, organizada, com tempo para as pessoas poderem presenciar isso. Não houve, inclusive, uma preparação para as mudanças nem planos de contingência para situações inesperadas. Isto é que é problemático. É um benefício que também se dá para lições da história da humanidade de que a ditadura serve, mas não serve também. E neste caso o Médio Oriente está claro.
No caso do Egipto, onde terá falhado a governação da Irmandade Muçulmana e do Presidente Mohamed Morsi?
Está claro para muita gente que o Presidente Morsi falhou por não ter tido uma estratégia de governação que fosse mais inclusiva. Todos os dados que temos à disposição mostram que este presidente ascendeu ao poder com um ressentimento muito grande pelo facto de o seu grupo ter sido marginalizado na vida política do Estado. É importante lembrar que enquanto o Egipto esteve sob a governação de Hosni Mubarak -foram 40 anos de ditadura – não havia espaço de liberdade política e a Irmandade Muçulmana, como um grupo com mais história de organização, sempre foi dos mais prejudicados pela sua própria coesão no exercício da vida política no Estado. Quando eles ascenderam ao poder tentaram capturá-lo para poderem assumir um protagonismo que sempre lhe foi vedado
Esse receio de dar asas à Irmandade Muçulmana, durante o regime de Hosni Mubarak, não deriva da experiência que houve na Argélia com a Frente de Salvação Islâmica (FIS) que levou inclusive ao banimento da vida política?
Está a falar da Argélia como um exemplo de receio que a governação egípcia de Mubarak teve para dar poder a estes grupos. Mais há outros exemplos mais recentes como o da Palestina, quando o Hamas ganhou o poder por via democrática de eleições. Mas o maior receio no meio de tudo isto tem a ver com a ideologia, a filosofia política que estes grupos carregam consigo. Outro aspecto de suma importância é a dimensão geopolítica e geoestratégica da zona, porque quem assume o poder nesta região, com uma ideologia claramente radical islamita, põe em causa a supremacia do Egipto como um poder na zona, mas também ameaça a sobrevivência de um grande Estado chamado Israel. Então havia que fazer tudo por tudo para salvaguardar que estes grupos não assumissem o protagonismo político. Vale a pena lembrar o caso do Irão, onde há um grupo (xiitas) que tem um protagonismo político que tende para o radicalismo. Era preciso controlar estes grupos radicais.
Então o Mahomed Morsi…
Quando subiu ao poder tentou resgatar e conferir um protagonismo à Irmandade Muçulmana e que excluiu outros grupos. Esta forma de governação revelou-se perigosa para ele, porque a sua ascensão criou muita expectativa no que se refere ao exercício de um direito político. As pessoas estavam na expectativa de ter mais espaço político inclusivo. Depois quem fez a revolução não foi a Irmandade Muçulmana. A ela foi conferida um direito de liderar esta revolução.
Foram as massas, através de movimentos espontâneos…
…elas mobilizaram-se para deixar cair o antigo regime. E isto é sempre perigoso, porque quando você faz uma revolução e defrauda as expectativas, a possibilidade de quem fez a revolução fazer a contra-revolução é muito grande. Enquadra-se na teoria das expectativas e capacidades. O Morsi até pode ter sido limitado pelas capacidades que não tinha como chefe de Estado. Em 365 dias, não se muda muita coisa.
MILITARES
NA JOGADA
O Exército, até há pouco tempo, tinha sido quase neutral nas questões de governação. Agora ele também está enlameado depois das mortes atribuídas aos militares, quando se tiveram de confrontar com os membros da Irmandade Muçulmana. Qual poderá ser a saída para este imbróglio? Aliás, o exército era visto como o mais equilibrado dos actores da presente crise…
O exército no Egipto teve sempre um papel de consolidação do Estado e do poder do Estado. O Egipto é hoje uma potência influente no jogo político do Médio Oriente muito por culpa ou pela responsabilidade que esta entidade militar confere ao Estado. Quando eles intervêm na política, o fazem porque vêem que está em causa toda a estrutura. Neste caso, eles sentiram, na minha opinião, que se estava a fragilizar a coesão sociopolítica para um nível que podiam perder o controlo e depois pôr em causa o poder e a estabilidade desse Estado. Neste momento, a sua intervenção está a mostrar ruptura da coesão social. Os militares, como uma entidade com a disciplina que têm, vão estar sempre por trás de todo o jogo político no paós. E este é um claro sinal que estão a dar a quem chegar ao poder. Terá de governar sob um olho vigilante e atento dos militares. A sociedade é muito grande, a começar pela sua dimensão populacional.
83 milhões de egípcios.
E há uma elite intelectual, uma classe média que não está a sentir as suas necessidades satisfeitas. Portanto, é preciso ter uma mão forte para um Estado que sofreu uma revolução sem ter sido preparada com tempo.
O que está a dizer é que esta posição dos militares acabou sendo uma boa resposta para a maneira como as coisas se estavam a desenrolar?
Acho que sim, apesar de não concordar que deva ser esse o procedimento. O país estava a caminhar para uma situação de ingovernabilidade. Quando se caminha para uma ingovernabilidade prolongada, há espaço para pôr em causa a sobrevivência do Estado. A entidade militar quando intervém pelo menos no Egipto e nos casos que me recordo é sempre para salvar a sobrevivência do Estado, sempre para salvaguardar o poder do Estado egípcio num contexto de jogo político chamado Médio Oriente, extremamente turbulento. Quem não tem uma entidade militar e um Estado forte no Médio Oriente não sobrevive.
Mesmo com a intervenção dos militares, milhares e milhares de egípcios continuam a protestar pelas ruas…
É sinal claro que a coesão social está em causa neste momento. E a sociedade egípcia sempre se aglutinou nas mãos duras de uma governação ditatorial, que impunha à força a coesão política. Neste momento, há esta democracia que está a ser manifesta e as pessoas estão a exercer isso.
Como é possível um país com 83 milhões de pessoas advogar uma verdadeira democracia participativa atendendo a conjectura geral africana? É quase sempre guerra aqui, golpe de Estado acolá. O Egipto ia ser diferente?
Não ia ser diferente por causa desta revolução repentina. Deixe-me pegar o exemplo feliz de Moçambique. Os 10 anos que tivemos de luta, de preparação para a independência. De mobilização das pessoas. Educar as pessoas para a situação pós-independência, isso ajudou muito a termos uma transição. Inclusive temos também que dar a mão à palmatória ou um pouco de razão ao contexto histórico que ajudou a que o Estado segurasse com mão dura a revolução, porque ela foi preparada. Nos países da África Ocidental, onde a transição para a independência não correu de um processo de mobilização contínua e prolongado, até hoje há problemas. Aliás, foram nesses países onde as coisas sucederam de forma repentina, onde há golpes e contragolpes de Estado. Na África Austral, onde a transição política e colonial foi lenta, não há esse tipo de problemas. Houve muita mobilização, coesão e um comando de liderança muito forte e com ideologia, o que não está acontecer no Egipto.
Mas temos o caso da Guiné-Bissau…
Teve guerra prolongada, mas é uma excepção. E tem explicação. Uma das coisas que acho fundamental é que quando aconteceu a independência de Cabo Verde, toda a elite intelectual política, mobilizadora e pensante da revolução da Guiné-Bissau e Cabo Verde emigrou para Cabo Verde e a Guiné-bissau ficou sem liderança política. Ficou sob as mãos de uma elite militar e é essa que continua a comandar. Quer na Tunísia, quer no Egipto não houve uma preparação contínua e de longo prazo.
DEMOCRACIA NÃO
É APENAS ELEIÇÕES
Mas do ponto de vista demográfico há quem pense que é muita gente para uma real democracia participativa dos cidadãos?
Há exemplos de países onde existe muita população e a democracia funciona. A Índia é um grande exemplo. A democracia funciona. È verdade que existem muitos problemas sociais. Mas do ponto de vista político, do funcionamento das instituições, de clarividência, do ideal político, formação de uma Constituição, todos entendem o funcionamento da democracia. Não podemos reduzir a democracia apenas às eleições. Este exercício de participação, de movimentação social nas ruas e expressar uma opinião é um exercício de democracia que aquele país nunca teve, enquanto esteve na mão ditatorial. Agora o Egipto não tem instituições consolidadas além da entidade militar. Isso é que periga o bom funcionamento da democracia. Infelizmente, tanto na Líbia, no Egipto e na Tunísia, as instituições sempre foram personalizadas na figura do líder e nas pessoas próximas ao líder.
Com estes movimentos que nascem de forma espontânea, os partidos políticos não estarão a perder terreno? Para além de que aqueles arrastam mais multidão?
No caso do Egipto, o único partido extremamente organizado que existia durante a governação ditatorial de Hosni Mubarak era a Irmandade Muçulmana. O resto são pequenos partidos sem expressão nem organização. Hoje, se se fizerem novas eleições e não se levar em conta os últimos acontecimentos, a Irmandade é a entidade mais organizada para ganhar, além de ser uma entidade política transnacional. Está para além do Egipto. Há uma solidariedade muito grande de todos os movimentos da Irmandade na zona do Médio Oriente. É verdade que a mobilização hoje é mais através das redes sócias: twiters, facebooks, etc, etc. Mas ali falta uma liderança clara. Agora o que é visível é a coesão na condenação do antigo regime de Mubarak e de Morsi. A divisão é no sentido de quais mudanças e quem vai liderar. As lideranças políticas têm que comunicar mais. O povo quer tudo para ontem. Depois o país tem de criar programas de desenvolvimento rápidos que sirvam para empregar muita gente. Neste momento, a população está carente de dinheiro e tem uma elite intelectual que se foi formando durante muito tempo e precisa de ter uma ocupação. O país vivia muito a base do turismo.
Estará o país à beira de uma guerra civil ou apenas de desestabilização movida por mão externa que no caso até pode ser interna?
Não acredito que o país vá a guerra civil. Primeiro porque os grupos internos não estão capacitados para fazer guerra. Para que ela ocorra é necessário ter em atenção duas coisas fundamentais: capacidades (armamento bélico) e as intenções. Neste momento, não há ninguém de fora que possa financiá-la, que são as grandes potências. Qualquer guerra civil no Egipto vai pôr em causa toda a região do Médio Oriente. Serve de liderança na região. Se o país cair numa desestabilização vai ocorrer um erro estratégico muito grande igual ao que aconteceu no Iraque, que servia de contrabalança ao Irão.