Terá Edward Snowden, 29 anos, ex-agente de tecnologias de informação na CIA e na NSA, salvo o mundo dos United Stasi of America? Ou deverá ele ser extraditado e julgado em tribunal
pelos seus “crimes”? E Obama, que traiu os seus ideais?
Edward Snowden tinha uma boa vida: residia no Hawai, o paraíso dos surfistas, onde partilhava casa com a namorada, uma bela dançarina e ganhava cerca de 12 500 euros por mês, para fazer análise de comunicações para a Booz Allen Hamilton, uma multinacional subcontratada pelo Pentágono para assegurar serviços à National Security Agency – a maior das agências secretas norte-americanas. Mas, no domingo, 9 de Junho, resolveu revelar-se como fonte das notícias que o Guardian e o Washington Post vinham publicando sobre a magnitude e alegada ilegalidade da recolha de informações efectuada pela NSA contra os cidadãos de todo o mundo.
Essas notícias começaram a sair na quinta-feira, 6 de Junho, com um “post” do jornalista Glenn Greenwald, que revelava uma notificação secreta de um tribunal criado ao abrigo da Foreign Intelligence Surveillance Act (FISA) à Verizon – uma das maiores operadoras telefónicas dos EUA. Dizia o tribunal à operadora que esta estava obrigada a entregar, «numa base diária», os seus registos de comunicações (metadata) entre os EUA e o estrangeiro e dentro dos próprios EUA, incluindo chamadas locais. Esta ordem, que parece ser apenas uma de muitas, dava ao Governo norte-americano, de uma só vez, acesso a informações sobre as chamadas de milhões de indivíduos: para quem ligaram, de onde ligaram, durante quanto tempo falaram. O documento obrigava a Verizon a não revelar a sua própria existência e deixava de fora a possibilidade, tecnicamente impossível a esta escala, de escutar o conteúdo das conversas. Mas, como se viria a saber mais tarde, era apenas a ponta do iceberg.
A verdadeira magnitude da espionagem norte-americana às comunicações globais só viria a ser conhecida um dia depois, na sexta-feira, 7 de Junho. Foi quando o jornal britânico, alimentado por um Edward Snowden refugiado num hotel em Hong Kong, onde digitava as suas palavas-chave no computador, debaixo de um grande capuz vermelho “ alegadamente para se proteger de câmaras de vigilância escondidas”, deu a conhecer a existência de um programa chamado Prism.
As meias verdades de Obama…
Esse programa permite à NSA armazenar todo o tipo de informações digitais de, potencialmente, toda a população do globo com acesso à internet: e-mails, filmes, PDF´s, buscas no Google, telefonemas skipe (ver caixa): «Eles podem quase literalmente ver as tuas ideias à medida que elas crescem no teu cérebro», justificou-se Snowden. Naquele mesmo dia, um Obama visivelmente pouco à vontade – afinal, fora ele um dos senadores que se opuseram ao programa das escutas sem mandato, de Bush, e que patrocinara uma alteração ao FISA para que a sua finalidade se circunscrevesse a «factos específicos e articuláveis que forneçam causa provável para acreditar que o sujeito a quem os registos pertencem é … agente de uma potência estrangeira» – disparava meias verdades. Disse o Presidente que «ninguém está a ouvir os telefonemas de ninguém» e que o programa «não se aplica a norte-americanos» mas a estrangeiros. Obama não comentou as ligações do Prism aos gigantes da internet como fonte muito mais ampla e intrusiva de obter informações – nem a forma como a NSA, via FBI, as recolhe. É que, quando algum estrangeiro suspeito contacta com norte-americanos, ele é «pescado» no processo – e o conteúdo das suas comunicações vistoriado. Além disso, é prática recomendada pela agência fazer mais duas «colheitas» de contacto: não só do americano com quem o estrangeiro suspeito de terrorismo comunicou, como de todas as pessoas que comunicam com esse americano (e ainda um «colheita» adicional…) se se pensar que é este tipo de matemática que permite a existência da teoria dos seis graus de separação entre quaisquer pessoas vivas, então à NSA fica apenas por vistoriar metade de toda a população norte-americana e mundial.
…e as mentiras do tsar
Ficou assim claro – como observou, entre outros, John Bolton, o republicano «Maverick», que foi embaixador de Bush nas Naçoes Unidas. Que o «tsar» das secretas norte-americanas, John R. Clapper, mentiu ao Congresso, numa audiência realizada a 12 de Março. Ou melhor, para utilizar a linguagem diplomática de Bolton, ele «não deu a melhor resposta possível», quando respondeu com um rotundo «não senhor!» à pergunta do senador democrata Ron Wyden sobre se a NSA estava ou não a «recolher conscientemente os dados de milhões de norte-americanos».
Isso não impediu Clapper de defender vigorosamente o programa e de praticamente chamar traidor a Snowden – assim como não o impediu de fazer uma queixa-crime para que o procurador-geral Eric Holder averigue a origem da fuga de informação. E dá bem a ideia do desnorte da administração face às revelações do seu ex-funcionário da CIA e da NSA o facto de a Casa Branca dar «as boas-vindas ao debate» sobre privacidade e segurança que as informações de Edward Snowden propiciaram, ao mesmo tempo que tenta extraditar o ex-agente para o julgar. A verdade é que durante a presidência de Obama o problema só se agravou: o número de pedidos de «registos de negócio», metáfora ao abrigo da qual os pedidos de autorização de acesso a informações são encaminhadas para o tribunal da FISA, subiu exponencialmente. Em 2007, ainda com Bush na Casa Branca, houve apenas seis pedidos; no primeiro ano de Obama (2009) cresceram para 21; e, no ano passado, para 212- cada qual com o potencial de atingir tanta gente como no citado exemplo da Verizon. E, sobretudo, o caso Snowden veio mostrar que, mesmo com Obama, a prática normal das agências secretas norte-americanas seguiu o mesmo padrão de comportamento duvidoso já adoptado na era Bush. Passou-se da acção com base na suspeita individual para uma abordagem que favorece a recolha sistemática e em massa de informações sobre toda a gente- suspeita ou não. O que levanta sérios problemas de constitucionalidade: a quarta emenda protege os americanos contra buscas ou apreensões despropositadas, injustas ou irrazoáveis – como parece ser o caso destas.
2013 United Stasi of America
O assunto divide a América e ultrapassa as tradicionais barreiras entre a esquerda e a direita. Destacados democratas insinuaram que Snowden «está ao serviço de uma potência estrangeira». Por que escolheu ele Hong Kong para se refugiar? E o que dizer do seu sentido de oportunidade, justamente quando Obama tentava apertar o seu homólogo chinês Xi Jinping, de visita aos EUA, a propósito do roubo de propriedade intelectual e segredos militares e de Estado pela famosa unidade 61398 do Exército Vermelho? (Snowden ele próprio tem uma resposta para isto: “nós pirateamos toda a gente. Gostamos de fazer a distinção entre nós e os outros. Mas estamos presentes em quase todos os países do mundo. E não estamos em guerra com esses países”, disse ao Guardian). Por outro lado, proeminentes republicanos saudaram Snowden como um herói, como foi o caso do juiz Andrew Napolitano, que se lhe referiu como um jovem muito corajoso. Até James Sensenbrenner, um dos autores do Patriot Act, ao abrigo do qual o tribumal da FISA foi reformulado, sendo proibido – até aos senadores – comentar as suas sentenças, afirmou: “Estas notícias causam profunda consternação e levantam a questão de saber se os nossos direitos constitucionais estão a ser respeitados.» Mas o mais destacado apoiante de Snowden e da causa da privacidade é um homem com uma história semelhante à sua: Daniel Ellseberg. Este ex-militar e analista da Rand, foi o autor da fuga de informação conhecida por «Papeis do Pentágono», que, em 1971, demonstrou que a administração Johnson tinha mentido sobre as baixas prováveis no Vietname, e, por isso mesmo, é uma referência moral nos EUA. “Edward Snowden: salvando-nos dos United Stasi of America, escreveu Ellsberg, numa referência directa ao aparato securitário com que a secreta da ex-RDA fiscalizava os seus cidadãos e ao “sonho” dos respectivos agentes de terem ao seu dispor uma infra-estrutura de vigilância com a dimensão daquela de que os EUA agora dispõem. A maioria dos americanos concorda com ele: 59% opõem-se à recolha deste tipo de informação, segundo uma sondagem da Rassmunssen, efectuada no rescaldo da divulgação da história da Verizon. E, curiosamente, as vendas do clássico 1984, de George Orwell, na América, subiram 69 porcento nestes dias.