Internacional

Ébola, Síria e impostos aos terroristas- Joanne Liu

Eles arriscam a vida para ir até locais onde impera o desespero, seja para lutar contra o Ébola, seja para ajudar em tempo de guerra – Síria – , Iraque, Nigéria, República Centro-Africana, Ucrânia, são alguns exemplos. Os Médicos Sem Fronteiras trabalham na linha da frente. Para abordar as situações mais prementes hoje em dia, a euronews entrevistou a presidente da organização, Joanne Liu.

 P: Recentemente, os Médicos Sem Fronteiras criticaram a comunidade internacional por causa da crise do Ébola. Por um lado, por ter demorado muito tempo até haver uma resposta concertada e, depois, pela falta de meios adequados. Neste momento, considera que as acções da comunidade internacional são satisfatórias nesta crise?

Joanne Liu: Creio que ‘satisfatórias’ é uma palavra demasiado generosa. Aquilo que gostaria de salientar é que houve pessoas que ouviram a nossa mensagem e que tomaram algumas medidas. O que é preciso agora é uma resposta flexível e moldável, porque muitos dos meios que foram mobilizados preenchem as necessidades de ontem, não as de hoje. As coisas mudaram, nós temos de nos adaptar. Já não é preciso construir aqueles grandes centros de 100 ou 200 camas para isolar os pacientes. Mas são necessários pequenos centros nas zonas rurais. Esse é o desafio.

P: Esteve no terreno. Como foi ver a realidade do Ébola tão de perto?

JL: São imagens que nunca mais vou esquecer. Na última visita que realizei, passei por uma ala onde estavam 7 pacientes – três deles estavam numa fase avançada, tinham perdido a consciência, sangravam da boca, tinham sangue nas fezes. Estávamos muito preocupados com a sua situação. O mais angustiante, o mais duro, foi vê-los entregues a si próprios, sem familiares ao pé, só nós nos fatos especiais a cuidar deles. Eu digo sempre que nenhum ser humano deve morrer sozinho.

P: Quantas mais pessoas poderão morrer até que a situação se altere? Há mais de seis mil vítimas mortais, milhares estão infectados. Até onde vamos chegar?

JL: É muito difícil fazer uma estimativa. Houve muitos que tentaram fazer previsões: no cenário mais grave, em 2015 teríamos 1 milhão e 400 mil casos. Não acho que vá atingir essa proporção. Mas a mensagem essencial que temos de fazer passar é que, apesar de o número de casos ter abrandado em algumas zonas, não podemos clamar vitória. Podemos ter ganho pequenas batalhas, mas não vencemos a guerra contra o Ébola.

P: Estão a testar novos tratamentos nas vossas clínicas. Como é que está a correr? Quando é que poderemos conhecer os resultados?

JL: Se tudo correr bem, este mês ainda vamos iniciar dois testes com medicamentos antivirais em pacientes infectados, em dois dos nossos centros na África Ocidental. Isso vai durar algumas semanas. Em princípio, no primeiro trimestre de 2015 já teremos os primeiros resultados.

P: No que diz respeito às vacinas – também há testes a decorrer nos Estados Unidos -, considera que são o melhor recurso para combater a doença ou tecnicamente há outras soluções de contenção no terreno?

JL: No futuro, aquilo que pode parar a cadeia de transmissão do Ébola a grande escala é uma vacina. E esperamos que se torne num recurso tão cedo quanto possível.

P: Tão cedo quanto possível pode ser quando?

JL: Esperamos ter uma vacina disponível em 2015 para os casos mais urgentes na África Ocidental.

P: Pedimos à nossa comunidade online para participar nesta entrevista, enviando-nos perguntas através das redes sociais. Uma delas diz o seguinte: “Estão a receber o apoio necessário (já respondeu em parte a isto) e qual é o país que mais ajudas dá no combate ao Ébola?”

JL: Os Estados Unidos têm estado muito envolvidos na Libéria e têm apoiado alguns centros. Se compararmos com as promessas feitas em setembro pelo presidente Obama, as coisas ainda estão aquém. Mas há uma mobilização e há empenho. Estamos a pedir flexibilidade a todos aqueles que têm recebido financiamento americano, porque já não são necessários 17 centros com capacidade para 100 camas. O que é preciso são, se calhar, 25 centros mais pequenos nas zonas rurais. Temos de adaptar os meios à medida das necessidades.

P: Qual será o impacto deste vírus a longo prazo? Há escolas que estão fechadas, há sérias repercussões económicas…

JL: Vai levar anos a ultrapassar esta situação. Há perdas em termos de vidas, há perdas ao nível das infraestruturas. Na verdade, é muito difícil apurar a dimensão do impacto. Estamos a começar a ver resultados positivos no terreno, mas é essencial que não concentremos as energias apenas nas respostas para o amanhã, sem colmatar as necessidades flagrantes do presente.

P: Esta foi uma das maiores emergências em que estiveram envolvidos, mas os Médicos Sem Fronteiras trabalham em 67 países. Há equipas na Síria, por exemplo. Tem sido particularmente difícil, sobretudo porque o presidente Bashar al-Assad não deixa as equipas operar. No entanto, têm conseguido intervir em zonas rebeldes. O que é que têm presenciado nessas áreas?

JL: Neste momento, os relatos são muito escassos porque a nossa presença está muito limitada. E isso é muito frustrante porque sabemos que a Síria representa uma das maiores crises humanitárias da actualidade. Para nós, é uma prioridade, mas não estamos a ser capazes de dar uma resposta à medida da situação. É uma realidade muito triste.

P: Porque é que eles não deixam as equipas entrar?

JL: A questão é que não conseguimos obter uma garantia de segurança para proteger uma equipa no terreno.

P: A sua organização enfrenta, por vezes, dilemas morais. É sabido que, no passado, os Médicos Sem Fronteiras tiveram de pagar uma espécie de imposto à Al-Qaeda para poder operar no terreno. Como é que avalia este tipo de situações?

JL: A realidade é que, onde quer que trabalhemos, temos de pagar um imposto. Se estivermos a cooperar com um governo e tivermos de importar material, como medicamentos antiretrovirais num país africano, não temos isenção de impostos. Há sempre coisas a pagar. Pode ser ao governo no poder ou a outro tipo de autoridade. Essa é a realidade no terreno.

P: Até que ponto é complicado avaliar o certo ou o errado, quando se sabe que provavelmente esse dinheiro que pagam não será aplicado da melhor maneira…

JL: Fazemos sempre uma avaliação do tipo de acção que pretendemos encetar e do impacto que terá. Quando achamos que o impacto é considerável e que há vidas a salvar, negociamos com as partes no terreno.

IP: Outro internauta pergunta: “Como é que chegam às zonas de conflito?”

JL: Primeiro tentamos perceber a situação geopolítica. Depois, quando nos deslocamos ao terreno – já fiz missões exploratórias -, o que fazemos é ir falar com toda a gente para explicar quem somos, de forma a tentar obter garantias de segurança para a mobilização das equipas. Certificamo-nos de que o trabalho que vamos realizar vai ter um impacto e responder a necessidades específicas no terreno. Este é mais ou menos o processo.

P: Também trabalham na Europa, na Ucrânia, por exemplo. Que impacto teve sobre a vossa intervenção a decisão do governo de interromper os serviços médicos oficiais no leste da Ucrânia?

JL: Desde a decisão do governo, desde o início do conflito em maio, temos providenciado assistência em várias infraestruturas em ambos os lados. Em grande medida, temos agido na área da saúde mental. Um dos factos com que nos deparamos foi encontrar uma população muito traumatizada pelo desenrolar dos acontecimentos, pelos ataques.

P: Se pudesse transmitir uma mensagem ao presidente Poroshenko, qual seria?

JL: Ele tem de autorizar a entrada de assistência médica e facilitar todos os procedimentos burocráticos que são necessários…

P: … porque isso afecta o vosso trabalho?

JL: Um pouco, sim.

P: A responsabilidade do vosso trabalho é gigantesca. Temos uma outra participante que pergunta: “Qual foi o problema mais difícil que enfrentaram e como o conseguiram resolver?”.

JL: O mais difícil é quando, em algumas regiões, não temos a aceitação da população. Por vezes, na África Ocidental, as pessoas não percebem o que estamos ali a fazer e têm medo. A uma dada altura, afastavam-nos fisicamente porque diziam que éramos nós que estávamos a espalhar o Ébola. E isso é difícil de gerir porque é preciso tempo para sermos aceites. Mas numa situação como a do Ébola, uma doença que tem uma taxa de mortalidade de 50%, temos de agir rapidamente, não nos podemos dar ao luxo de esperar. A aceitação da comunidade é essencial para o sucesso do nosso trabalho.

 

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