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Trajectória política e humana do Primeiro-Ministro

Por admin

domingo conversou com Alberto Vaquina, o Primeiro-Ministro de Moçambique e reproduz, nas páginas que se seguem, os pensamentos de um homem com raízes no povo.

Filho de pais pobres, desde cedo aprendeu que a força do trabalho árduo tem impacto tremendo no progresso pessoal e do próprio Estado.

O Primeiro-Ministro, que nos recebeu em sua casa. em Maputo, salienta que Moçambique deve continuar a apostar na agricultura, na pecuária, no turismo e noutras actividades que permitam o seu contínuo e invejável desenvolvimento.

Trata-se de uma mensagem para aqueles que apregoam que, sendo o país rico em recursos naturais – com destaque para o carvão e hidrocarbonetos – devia dar-se por descansado e promover a preguiça colectiva.

Vaquina refuta essa ideia. Aposta num país que articula suas diferentes potencialidades rumo a um objectivo estratégico que é inclusivo, beneficiando todos os moçambicanos e consolidando a unidade nacional.

O nosso entrevistado fala igualmente do nosso modelo político, sublinhando que tem uma relação cordial com o Chefe do Estado, com o quem tem aprendido bastante.

Leia, nas páginas seguintes, a entrevista conduzida pelos nossos repórteres Bento Venâncio, Luísa Jorge, Francisco Alar e Jerónimo Muianga. 

 

“Não sabia que seria nomeado Primeiro-Ministro”

Alberto Vaquina diz, nesta entrevista, que quando foi ao Congresso da Frelimo, em Pemba, a única coisa que sabia era que podia ser confirmado membro do Comité Central, porque já tinha sido eleito a nível da província que dirigia, neste caso Tete. Para Vaquina, a sua indicação para membro da Comissão Política e, mais tarde, ao cargo de Primeiro-Ministro, era matéria do Presidente do partido e, simultaneamente, Chefe do Estado, tendo sido – confessa – uma grande surpresa.

 

“Como sabem, quando regressei do Congresso de Pemba fui para a minha província e continuei a trabalhar, pois a única coisa que sabia é que era governador de Tete”,explica ele ao domingo, ressalvando que o nosso país tem antecedentes de um governador que foi eleito membro da Comissão Política e continuou a trabalhar como governador na sua província (José Pacheco, em Cabo Delgado).

“Portanto, depois do Congresso, continuei a trabalhar na minha província, a visitar as minhas comunidades, que é a coisa que mais gosto de fazer, até o dia em que o Presidente da República convidou-me para esta nova tarefa”,salienta o nosso entrevistado.

Mais detalhes desta conversa, a todos os títulos interessante, seguem em pergunta-resposta.

 

Senhor Primeiro-Ministro, “saltou” de governador de província para Primeiro-Ministro, uma experiência única até ao momento. Quais são os principais desafios que enfrenta?

Aqui o desafio é olhar para o país numa dimensão mais concreta, como um todo.É verdade que o governador provincial é confrontado com a necessidade de dirigir um governo que engloba toda as áreas de desenvolvimento. Contudo, é preciso notar que mudou a escala.

Tendo trabalhado como governador em duas províncias com realidades diferentes, e depois ter trabalhado noutras duas como director provincial de Saúde (em Nampula e em Cabo Delgado), tenho experiência de 4 províncias.

Essa experiência foi crucial para a minha adaptação às minhas funções actuais. Mas, antes disso, há o facto de contar com um grande apoio do Chefe do Estado, que é a quem reporto directamente.

Ter a sorte de ter um dirigente como Armando Guebuza, que vem do tempo da luta de libertação nacional e acompanhou toda a sua trajectória, é uma bênção, pois cada conversa que se tem com ele é uma aula e isso ajuda também àquilo que são os meus conhecimentos nas outras esferas de governação…

Após a sua nomeação, no Congresso de Pemba, à Comissão Política da Frelimo, ficou a saber que o passo seguinte seria a indicação ao cargo de Primeiro-Ministro?

Fui ao congresso após ter sido eleito membro do Comité Central a nível da minha província, neste caso Tete. A única coisa que eu sabia era exactamente isso: que era apenas membro do Comité Central e seria confirmado lá no Congresso.

As funções do nosso partido, no nosso dia-a-dia, chegam-nos por uma questão de confiança e não porque a pessoa diga que obsessivamente pretenda isto ou aquilo. Supomos que cada um de nós é posto à prova e a sua missão é fazer o melhor possível naquela tarefa em que se encontra naquele momento.

No congresso ia sabendo que seria confirmado membro do Comité Central, porque já tinha sido eleito em Tete. Naturalmente que a partir do momento que o meu nome fez parte da lista dos candidatos a membro da Comissão Política, havia duas coisas que poderiam ter acontecido. Ou era eleito ou não. Qualquer um desses resultados não seria surpreendente, pois quem vai a uma eleição deve contar com a possibilidade de acontecerem as duas coisas: ser eleito, ou não.

Felizmente que os meus camaradas depositaram os votos necessários para a minha eleição para a Comissão Política da Frelimo, que é uma honra para mim.

Como sabem, quando regressamos do Congresso de Pemba fui para a minha província e continuei a trabalhar, pois a única coisa que sabia é que era governador de Tete.

Até porque temos neste país antecedentes de um governador que foi eleito membro da Comissão Política e continuou a trabalhar como governador na sua província (José Pacheco, em Cabo Delgado).

Portanto, eu continuei a trabalhar na minha província, a visitar as minhas comunidades, que é a coisa que mais gosto de fazer, até o dia em que o Presidente da República convidou-me para esta nova tarefa.

Como é a sua convivência com o Chefe do Estado? De que maneira colaboram no dia-a-dia do Governo?

Há duas dimensões que devem compreender. Primeiro, nos termos da Constituição, no dia-a-dia, o Primeiro-Ministro coordena as actividades do Governo e assessora o Presidente da República nos assuntos relativos à governação.

O que eu disse é que, no processo de integração e governação, eu tenho beneficiado, e muito, daquilo que é o manancial da experiência que o Presidente da República acumulou ao longo da sua trajectória e não há outra forma de uma pessoa crescer senão procurando saber o que é que os mais velhos sabem; quais são os desafios que enfrentaram na luta de libertação, nos primeiros anos de independência e os que enfrentam no dia-a-dia para fazer face às necessidades do país.

Portanto, é nisto que digo que é crucial o apoio do Chefe do Estado no sentido de eu ser cada vez mais capaz de corresponder àquilo que são as expectativas que se geram à volta do meu papel.

Até que medida a Constituição da República sela este tipo de relacionamento institucional? 

Nos termos da Constituição, o Primeiro-Ministro assessora o Presidente da República nos assuntos da governação. Dirige, nomeadamente, todos os processos de actividade económica do país.

Não é por acaso que todas as empresas públicas estão sob a alçada directa do Primeiro-Ministro.

Por outro lado, o Primeiro-Ministro dirige o processo de preparação do Plano Económico e Social, do Orçamento do Estado; dirige a elaboração dos planos quinquenais de desenvolvimento do país e dirige as sessões do Conselho de Ministros nas ausências ou impedimentos do Chefe do Estado. Portanto, o Primeiro-Ministro é, na verdade, o elemento que constitui a ligação diária e de funcionamento do Governo.

 

“NADA INDICA QUE

NÃO ESTAMOS SATISFEITOS

COM ACTUAL MODELO”

 

Há espaço, no nosso modelo político, para um Primeiro-Ministro trabalhar à vontade, deliberar?

Depois da minha nomeação foi feita uma sessão de apresentação na qual o Chefe do Estado disse que iria sair e que eu ficaria a tomar conta de toda actividade normal do Governo.

A ideia é que muitas vezes se diz que não há espaço para o Primeiro-Ministro. Eu discordo disso em absoluto…

O que acha do presidencialismo e do semi-presidencialismo?

A minha opinião é que cada país e cada povo têm as suas experiências e estas terão vantagens e desvantagens. O que é preciso ver é que antes de abraçarmos outros modelos, devemos observar o que de errado existe nesse modelo.

Nós não podemos passar a vida a achar que só a experiência dos outros é que é melhor e não valorizarmos a nossa. Eu não vejo o porquê desta discussão, embora respeite quem tenha uma opinião diferente da minha.

Não tenho qualquer informação que sugira que nós, na Frelimo, não estejamos satisfeitos com o modelo actual.

Trajectória de um homem de Estado

 

A pobreza tira ao pobre até a possibilidade de conhecer as alternativas e vantagens institucionais oferecidas para gente da sua situação sair da pobreza” – esta foi uma das declarações de Alberto Vaquina, Primeiro-Ministro da República de Moçambique, quando falava em entrevista ao semanário domingo.

O homem nascido no distrito de Eráti, província de Nampula, revela a sua trajectória humilde, mas segura.Alberto Vaquina fala da sua vida no campo e explica como acabou optando pela Medicina, depois de ver os seus 11 irmãos morrerem por incapacidade financeira da família.

Fala igualmente das longas caminhadas só para tomar parte nos exames escolares de 3ª e 4ª classes.

O Primeiro-Ministro revela uma biografia de um cidadão que, tendo atingido o topo da função pública moçambicana, não se esquece das raízes e, sobretudo, usa esse manancial para direccionar a sua acção governativa.

Como foi a infância de Alberto Clementino Vaquina?

Nasci numa aldeia chamada Ximakela, a dez quilómetros do Posto Administrativo de Namapa, no distrito de Eráti, província de Nampula.

Sou filho de pais camponeses, não alfabetizados. Fui eu, já estudante, quem ensinou meu pai a escrever o seu próprio nome durante as campanhas de alfabetização.

Sempre que voltava de férias, sentava com ele e treinava-o até chegarmos a um ponto que ele conseguiu assinar o seu nome.

Segundo os registos, nasci no dia 4 de Julho de 1961.

 

Por que razão diz segundo os registos?

Porque esta é a data que está registada. Mas de facto eu nasci no dia 25 de Julho de 1960.

Por que é que há disparidade? Já expliquei que sou filho de pai analfabeto. O meu irmão, que na altura trabalhava como servente no Hospital Distrital de Namapa, era a única pessoa alfabetizada da família. Infelizmente falecera e era o único que tinha o registo da minha data de nascimento. Lembro-me que ele dizia que eu tinha nascido no mês de Julho de 1960.

Receando que podia ser prejudicado na escola, meus pais reduziram um ano no meu registo de nascimento, de modo a que, embora tenha nascido de facto no dia 25 de Julho de 1960, pudesse estudar.

 

ÚNICO SOBREVIVENTE

DE FAMÍLIA COM DOZE IRMÃOS

 

Quando foi registado?

Só fui registado quando tive de me organizar para fazer o exame de quarta classe, portanto em 1973. Na altura estudava na Missão de São João de Deus de Alua.

Faço parte de uma família que teve 12 filhos. Sou o único que sobreviveu desses filhos.

 

CURSAR MEDICINA

PARA HOMENAGEAR IRMÃOS

 

Muita gente não sabe, mas seu primeiro emprego foi na Educação. Como foi a experiência no professorado?

Foi uma experiência edificante para mim, porque não há melhor forma de uma pessoa dominar uma matéria do que quando precisa explicar para as outras pessoas o que sabe. Isso ajudou-me a ter bases mais sólidas na minha própria formação como estudante da Língua Portuguesa e noutras disciplinas.

É possível que o facto de eu ter tido já experiência docente tenha contribuído para que eu não fosse indicado para continuar a estudar, mas sim ir dar aulas em Iapala, em Nampula, no distrito de Ribáuè.

No final de 1979 fui a Chókwè fazer um curso de reciclagem de professores. E nessa altura dei aulas de Matemática, Biologia, Geografia, Educação Política e Língua Portuguesa. As disciplinas que não dei foram Desenho e Educação Física, porque era com as quais “eu tinha conflito”.

Dei aulas de 1979 a 1985. Foi depois de Iapala que, a meu pedido, fui transferido para a Escola Secundária de Nampula, onde, como professor, comecei a estudar no curso nocturno para fazer a décima e décima primeira classes.

Em 1986 tive uma bolsa de estudo para fazer o curso de Medicina, pois, à medida que fui obtendo mais informação, achei que tinha vocação para trabalhar em duas profissões: Medicina e Direito.

Uma das coisas que me incentivou a cursar Medicina foi o facto de quase todos os meus irmãos terem morrido vitimados pela nossa pobreza e pela limitada capacidade que tínhamos para recorrer aos poucos cuidados de saúde que existiam.

Uma das coisas que eu dizia é que não gostaria que outros irmãos moçambicanos perdessem parentes como eu os perdi, quando, sendo médico, poderia salvá-los. 

Por outro lado, era uma opção minha estar ao serviço da comunidade, ajudá-la na área preventiva, que é a área-chave dos cuidados de saúde, mas também em todas as suas necessidades de saúde. Portanto, era uma espécie de combinação daquilo que era eu resolver uma dívida que tinha para comigo mesmo (transformar aquilo que era o meu sofrimento em disponibilidade para reduzir o sofrimento dos outros) com a necessidade de estar numa área vital para o país…

 

Continua a exercer medicina?

A partir do momento que fui nomeado director provincial da Saúde, isso na província de Cabo Delgado, precisava sair muitas vezes para fazer supervisão às unidades sanitárias, pois o trabalho de um director provincial é garantir que os serviços estejam permanentemente aptos e capazes de prestar a necessária assistência às populações.

Portanto, deixou de haver aquela oportunidade de um médico estar permanentemente com o seu doente, pois a relação de paciente e doente é de confiança e a confiança constrói-se. Estar com um doente hoje e amanhã quando ele precisar de nós não estarmos disponíveis, pode causar frustrações ao doente.

Naturalmente tinha de fazer uma opção, pois, como director provincial da Saúde, não era avaliado pelo número de doentes que eu curava, mas pelo número de doentes que o serviço de saúde fosse capaz de tratar como contribuição global na realização dos objectivos da governação.

Nesse sentido, ao invés de ser eu a fazer directamente os cuidados de saúde, entrei na lógica da saúde pública e comunitária que era, como gestor, criar as condições necessárias para melhor saúde na nossa comunidade, contribuindo, deste modo, para que os outros médicos em exercício tivessem condições necessárias para exercerem as suas funções.

O desafio foi deixar de ser eu a ter o prazer de curar os doentes, mas ter o prazer de criar condições necessárias para os outros continuarem a exercer as suas funções. 

Gosto de ser médico. Se hoje me perguntarem o que seria se não fosse médico, responderia sem rodeios: ser médico…

 

Não é complicado formar-se em Portugal, onde existe uma infra-estrutura de saúde diferente, para mais tarde trabalhar em Moçambique?

Na altura que fiz Medicina levava-se 6 anos de formação escolar e dois de estágio, a que se chamava de internato geral. É neste internato geral que, quando chegou a vez de fazer saúde pública, eu pedi para não cursa-la por completo em Portugal, mas sim cá em Moçambique como parte da minha preparação para o meu regresso.

Fiz saúde pública integrado numa equipa de assistência médica internacional, que é uma ONG portuguesa que trabalhou durante muito tempo no distrito de Monapo, em Nampula. Portanto, fiz lá o meu treino de saúde pública e depois regressei para também fazer a minha pós- graduação em clínica de doenças tropicais.

E em 1996 regressei e, por coincidência ou não, fui colocado no Monapo, onde tinha estado a fazer o meu exercício de estágio.

 

CADA PAÍS FORMA

MÉDICOS SEGUNDO SUA REALIDADE

 

Como foi a sua integração no contexto moçambicano após sua formação em Portugal?      

É preciso dizer que cada país forma seus médicos de acordo com a sua realidade concreta. Existe aquela matriz básica de formação, mas há uma orientação sobre os problemas e desafios que o país vai enfrentar.

E é por isso que antes do meu regresso, vim cá fazer a tal formação na área de saúde pública, mas, estando lá, fiz a minha formação em área de doenças tropicais, que é a maioria das doenças que existem cá.

Tive a sorte de encontrar uma equipa em Monapo muita aberta e colaboradora que fez todo o meu processo de integração.

O médico é treinado em termos teóricos na escola e em termos práticos é formado pela equipa que encontra lá no terreno. É preciso estarmos abertos e nunca convencidos de que a nossa formação nos tenha dado tudo que é preciso para aprendermos. Ela dá-nos apenas as bases, ensina-nos aonde ir buscar informação quando tivermos dúvidas, mas é a prática que ensina e nos aperfeiçoa permanentemente.

Já estava a preparar-me

para viver como camponês na aldeia

 

Alberto Vaquina, hoje Primeiro-Ministro de Moçambique, já estava a preparar-se para abandonar os estudos após a conclusão do ensino primário, uma vez que seu pai não dispunha de dinheiro para pagar propinas escolares. Foi quando a sorte bateu à sua porta, tendo pernoitado num banco numa praça em Namapa antes de rumar para escola secundária em Nampula. Diz que até hoje visita aquele lugar, mas muita gente não entende a razão.

 

Conta-nos como foi o seu ensino secundário. Não enfrentou dificuldades?

Estudei numa fase de transição. Comecei a estudar por volta de 1973 até fazer a terceira classe. Só mais tarde fui à Missão de Alua, onde, em 1973/74, fiz a quarta classe.

Já em 1975, quando o país ficou independente, fiz a quinta classe. Em 1974/75 abriam-se, no país, muitas oportunidades, mas não eram para todos, pois era preciso também dinheiro para a pessoa pagar passagens para ir estudar. 

Eu estudei graças a muitas coincidências. Em primeiro lugar, meu pai era produtor de castanha de caju. Com a produção ele assinou um acordo com os padres que tinham aberto o colégio e externato Nossa Senhora da Paz, em Namapa, que era para ele entregar a sua produção àqueles como pagamento da dívida relacionada à minha formação.

Meu pai era analfabeto, mas sabia a vantagem dos estudos. Digo que estudei graças a muitas coincidências porque a partir do momento que fiz a sexta classe em Namapa, era preciso ir para Nampula e para isso era necessário ter a garantia de despesas mensais fixas que um camponês não podia suportar.

Nessa altura falei com o meu pai e ele disse que não podia pagar as despesas. Eu compreendi. Tanto é que a partir daquele momento, eu me preparei para ficar a viver na aldeia como viviam outras pessoas.

Dois dias antes do encerramento das matrículas em Nampula, uma freira que era minha amiga e foi minha professora, a quem trato por mãe (a irmã Mercedes), procurou saber se  tinha ido a Nampula e lhe disseram que não.

Ela mandou-me chamar e zangou comigo. Perguntou-me o que se passava comigo e questionou se eu já queria casar, até ao ponto de não continuar com os estudos.

Respondi que não podia estudar porque o meu pai disse que não tinha como suportar os meus estudos e eu não podia exigir dele aquilo que não podia.

Então ela disse: “tu não sabes que existe uma coisa que se chama atestado de pobreza?” Isso é para perceberem que a pobreza até tira às pessoas as oportunidades de avançar pelo facto de não terem informação necessária, pois eu e meu pai não sabíamos da existência daquele documento comprovativo de pobreza.

A irmã Mercedes mandou chamar o meu pai. Fui a correr para a minha aldeia para chama-lo pessoalmente. Ela já tinha falado com o administrador de Eráti, que não altura era o senhor Isaú Zacarias Cossa, o pai do Ungulani Ba Ka Cossa. É por isso que falo que estudei graças a várias coincidências e muita sorte. Viemos com meu pai, era fim de tarde. A irmã já tinha falado com o administrador para nos receber. Era fora de horas e a irmã Mercedes já havia informado que o que meu pai precisava era atestado de pobreza. Aquele documento era tão importante que até me lembro perfeitamente como ele começava: “Atesto que por me haver sido pedido verbalmente…”. Depois continuava. São coisas tão importantes na nossa vida que acabam nos marcando definitivamente. Pegamos no atestado de pobreza e o administrador disse o seguinte: “amanhã a minha filha vai sair para Nampula para estudar e eu posso falar como motorista para levar o menino Vaquina e assim vai no carro da minha filha.” O dia seguinte era o último de matrículas na escola.

Naquele dia já tinha feito vinte quilómetros, mas voltamos outra vez, eu e meu pai, para ir buscar minha maleta para seguir viagem. Acabei fazendo no total quarenta quilómetros. Era jovem. Corria sem qualquer tipo de dificuldade …

 

Percurso difícil…

Há uma coisa que sempre faço quando chego a Namapa, que é ir visitar o edifício do governo do distrito. Nunca disse às pessoas por que razão gosto de visitar aquele sítio. Na verdade é porque foi naquele banco que está ali, mesmo na entrada, onde eu e meu pai dormimos para, na madrugada seguinte, eu apanhar a boleia do administrador. 

No dia seguinte apanhamos a boleia e, naturalmente, que sendo um carro com dois lugares fiquei atrás.

Lembro-me de ouvir o administrador Isaú Zacarias a dizer ao motorista (o senhor Faustino) o seguinte: “levas o menino e dá todas as voltas que forem preciso até teres a certeza que ele já está matriculado e que já está no lar.”

A nossa vida é feita de coincidências de pessoas boas e de boa vontade. Na minha, foi a irmã Mercedes, que abriu os caminhos, e depois o senhor administrador continuou.

Uma vez em Nampula fiz a sétima classe, isto em 1976. Estudei em Nampula de 1976 a 1978, na escola Secundária de Nampula, onde fiz até a nona classe do ensino geral.

Quando estava a fazer a nona classe, comecei a trabalhar como monitor de Língua Portuguesa para a quinta classe, pois faltavam professores e havia que requisitar os melhores alunos para leccionar.

Estudante brilhante

 

Vaquina teve uma interessante discussão com o seu professor de Língua Portuguesa. Ele não aceitava 18 valores. Queria vinte, porque raramente cometia erros num trabalho na altura conhecido por “ditado”.

 

Observando o seu percurso humano, vê-se claramente que abandonou o convívio familiar desde muito cedo. Estava preparado para viver longe da família?

Saí praticamente de casa a partir dos 11 anos. Tive muitas saídas. A primeira vez foi quando fui fazer os exames de segunda para terceira classe. Eram viagens longas. Íamos em grupo de amigos e colegas. Uns iam fazer exame em Mirosse e outros em Alua. Nós íamos fazer exames em zonas de Odinepa, Marrapala Nampuite, enfim, toda aquela zona. Esta foi a minha primeira viagem.

Depois de fazer os exames de segunda para terceira classe, foram feitas as avaliações e eu fui dispensado dos exames orais.

Havia, contudo, uma situação. No exame de Língua Portuguesa tive como nota 18 valores. Foi o padre Luís de Albuquerque, deve estar ainda em Sofala, que anunciou a minha nota. Prontamente reclamei.

Eu disse: “Senhor Padre, me desculpe, eu não falho em ditado, portanto minha nota não pode ser essa.”

Ele olhou para mim, chamou-me e perguntou o que eu havia dito. E repeti que não falhava nada no ditado e, por isso, 18 valores não podia ser a minha nota. Recordo-me que tive 20 a Aritmética e 18 valores a Português.

Ele mostrou-me o exame e a palavra errada era “jorrou” da palavra “jorrar”. Eu disse ao senhor padre: escrevi como o senhor disse: “jurou”. Então eu disse que tínhamos de dividir a falha. E ele disse: já pequenino discute?!

A segunda saída foi para fazer exames da terceira para quarta classe na Missão de Alua. Portanto, foram dois anos a estudar longe dos meus pais, numa situação em que nós é que transportávamos na cabeça a nossa comida e o abastecimento que nossos pais nos davam, pois a alimentação na missão não era boa.

Portanto, já estava habituado a sair de casa. Há um episódio também importante quando comecei a estudar na Missão de Alua.

A altura dos exames era um momento de afirmação e de aprovação, porque havia uma escola primária oficial, onde estudavam os filhos dos assimilados e os de origem europeia, e, doutro lado, havia a missão onde estudavam os nativos e os pobres.

Para os nossos professores, que eram muito dedicados, o exame era o momento de “desforra”, porque eles queriam mostrar a sua competência e nós também preparávamo-nos para enfrentar e mostrar que éramos os melhores. Naturalmente que isso implicava um aliança entre os professores e nós.

Quem fazia o ditado e todo o processo de examinação da quarta classe eram professores de origem europeia. Então durante algum tempo os nossos professores, que eram africanos, falavam com os professores da escola primária oficial para nos irem habituando ao sotaque deles. E fazíamos ditados e leitura para percebermos a diferença entre a forma como nós os moçambicanos nativos pronunciávamos e a forma como eles pronunciavam e fazíamos esse exercício para estarmos preparados.

E a verdade é que nós é que acabávamos sendo os melhores. Os mais pobres suplantavam os da escola oficial… 

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