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Maré de moçambicanos à procura de regularização

Por admin

André Matola (texto) e Carlos Uqueio (fotos)

Os actos de violência xenófoba que recentemente varreram as cidades sul-africanas de Durban e Joanesburgo, tendo atingido mais de seis centenas de moçambicanos, fizeram com que nos deslocássemos à cidade de Nelspruit, província de Mpumalanga, mesmo aqui ao lado, aproximadamente 200 quilómetros, onde reside e trabalha uma grande fatia dos nossos concidadãos.

Tlela vhassati”, ou melhor, “onde voltam as “mulheres”. Nem mais! Era assim que nas décadas de 70, 80 e 90 era conhecida, entre os mineiros moçambicanos, a pequena cidade de Nelspruit. Entendia-se que homem que é homem ia trabalhar nas minas do “Jhon” e não ali, a cortar cana-de-açúcar nas farmas dos bóeres.

Ora bem. Nelspruit hoje está diferente. Cresceu, como também aumentou o número de moçambicanos que ali reside e trabalha. Uns fixaram raízes. Outros esperam dar o salto para Joanesburgo, Durban, Port Elizabeth, Cape Town, enfim, para onde o destino lhes empurrar. É por aqui onde começamos a narrar o que vivenciamos em Nelspruit, também conhecido por Mbombela.

EMBASBACADOS

Ficamos literalmente estupefactos quando chegamos ao Consulado. Perto da uma da tarde. Uma maré humana acotovelava-se em frente da porta da instituição, ou melhor dito, entupia a entrada. Um cone perfeito.

Em poucos minutos inteiramo-nos do que estava a acontecer. No interior da instalação estava uma brigada mista da Migração e da Direcção de Identificação Civil (DIC) que satisfazia os pedidos de emissão de passaporte e bilhete de identidade. E fez-se luz no nosso cérebro. Toda aquela gente estava ali para regularizar os seus documentos.

Puxamos conversa com o primeiro moçambicano. Disse chamar-se Narciso Domingos. 36 anos de idade. Natural de Chissano. Província de Gaza. Vive em Barbaton. Dista 60 quilómetros do centro desta cidade. Chegou à África do Sul em 1999. Perguntamos-lhe o que pretendia regularizar.

– Preciso de passaporte biométrico, disse.

– Então, tem o passaporte manual, o antigo? Perguntamos. Gaguejou. Não nos mostrou passaporte nenhum. Do bolso da camisa tirou um papel em formato A-4, mas que infelizmente não conseguimos ler de tão gasta estarem as letras.

– Onde é que trabalha? Qual é a sua profissão? Questionamos-lhe.

– Não tenho emprego fixo. Sou pedreiro. Monto tijoleiras. Quando não há trabalho é só esperar.

O CERCO

Enquanto conversávamos com o pedreiro Narciso Domingos, e sem que nos tivéssemos dado conta, tinha se começado a formar um círculo em nosso redor. Isto é, tínhamos aguçado a curiosidade dos presentes. Porém notamos que um jovem estava com ânsia de ser abordado. Fizemos-lhe a vontade.

Disse chamar-se Arlindo Mulhanga. 29 anos. É jardineiro. Confidenciou-nos que entrou na África do Sul, via Komatiport, em 2002. Estava ali para requerer o passaporte biométrico porque o manual, que obteve em 2008, expirou o prazo.

– Agora só tenho Certificado de Emergência (salvo conduta), disse. Mas não nos mostrou o documento.

Agora o anel à nossa volta tinha se fechado por completo. Algumas pessoas pensavam que fazíamos parte da equipa mista que estava a trabalhar ali.

Uma senhora idosa, mas com vigor físico para dar e vender, meteu a mão direita na sua bolsa e de lá tirou um Certificado de Emergência.

Natália Gune

Disse chamar-se Natália Gune. 60 anos. Quando lhe perguntamos em que ano entrou em Nelspruit, disse: “Foi naquele ano em que Guebuza foi eleito Presidente da República (2004).” Com aquelas palavras, a anciã arrancou uma onda de risos que se propagou e morreu na atmosfera, e algumas palmas.

Exibiu-nos o seu Certificado de Emergência. Folheamos. Também expirou. À pergunta de onde era natural, respondeu que é de Panda-Mudjekene, Província de Inhambane. De seguida lamentou-se.

– Eu trabalho nas machambas. Umas vezes me pagam outras não. Às vezes combinamos um certo valor, por exemplo 500 randes, mas quando acabo de capinar pagam-me 300, 200 randes. Para dizer a verdade, pagam o que querem e quando querem.

A anciã vive com uma criança menor.

FUI “TRAFICADA”

Saugenta Chissico, também a viver em Nelspruit, ilegalmente, disse que foi “roubada” por um fulano na província de Inhambane e conduzida a Maputo onde foi introduzida clandestinamente num comboio de mercadoria, no caso concreto de carvão, que ia a Komatiport, onde acabou em definitivo a sua viagem. Corria o ano de 1995.

– E a pessoa que vinha consigo? Perguntamos.

– Nunca mais vi o homem desde que me abandonou em komatiport.

-Qual era o destino inicial? – Insistimos.

– ôôô. África do Sul (e ri-se. Nós também). Tive de me desenrascar. De Komatiport vim para Nelspruit, em 2010. Trabalho nas machambas (farmas). Mas nem sempre me pagam. Repare que trabalhei durante cinco anos numa farma e não me pagaram. Tenho a receber uma indemnização mil e duzentos randes. Mas nem consigo reclamar porque não estou legal.

DOIS DIAS NA FILA

Afinal entre aquela multidão que vimos quando chegamos ao consulado moçambicano escondia gente que somava já dois dias à espera de ser atendida. Um desses cidadãos era Fernado Feliciano Mugabe, 54 anos, pai de três filhos, natural de Jangamo, província de Inhambane

Chegou a África do Sul no longínquo ano 1984, portanto, leva já 31 anos na terra do rand. Disse-se pedreiro de profissão – é especialista em montagem tijoleiras – trabalha por conta própria, mas lamentava a demora com que o processo decorria. (mas atente-se para as fotos. Era muita gente à espera de ser atendida)

– Estou aqui para renovar a minha documentação. Aliás, o meu certificado de Emergência tratei aqui em Nelspruit. Já trabalhei em Johanesburgo e  Malelane.

Depoimento curioso obtivemos também de um moçambicano que não quis se identificar.

Recordou que para a chegar a África do Sul, como fizeram muitos na época, teve de saltar o arame farpado (fronteira) e enfrentar o perigo, sobretudo leões que abundam no Kruger Park, zona limítrofe entre Moçambique e África do Sul.

– Éramos seis rapazes. Depois de transpormos a fronteira cada um correu para o seu lado.

ANTÓNIO PAIS

Empregado agrícola, 62 anos, antigo militar das FPLM, foi um dos moçambicanos abordados pela nossa Reportagem que tinha o passaporte em dia. Expira a 28 de Fevereiro de 2019. Era o segundo dia em que se apresentava no Consulado na tentativa de trocar o manual pelo biométrico. Voluntariou-se para dizer o que lhe ia na alma.

– Senhor jornalista, escreva que somos cobrados dinheiro na fronteira. Exigem-nos 50 randes, 40 randes, 30 randes e põem no bolso. São oportunistas. Acho que estão roubar por não termos o passaporte biométrico, disse.

243 RANDES

OU

730 METICAIS

É quanto custa a emissão do passaporte biométrico. Cerca de 730 meticais. Porém algumas conversas que ouvimos entre os requerentes de passaporte nos deixaram arrepiados. Em tom bastante audível ao telemóvel alguém dizia que “não tenho dinheiro. Quando quiser voltar a casa, o farei através de Skukuza”. Apenas dizer que Skukuza, fica na zona central do Kruger Park, e é nesta zona onde os leões se passeiam a seu bel-prazer, mas é, também, por onde muitos moçambicanos arriscam na aventura de chegar à Terra do Rand á busca de melhores condições de vida.

BISCATE DE

SUL-AFRICANOS

Porque houvesse muita gente sem fotografia para anexar no impresso do pedido de emissão de passaporte, alguns sul-africanos não perderam a oportunidade para ganhar dinheiro.

Alguns fotógrafos ambulantes, lá também os há, puseram-se a cobrar 30 randes. E foi pague e pegue. E não é tudo. Outros sul-africanos abriram o capon do carro, instalaram uma fotocopiadora, ligaram-na a bateria da viatura e mediante a cobrança de cinco randes se puseram a fotocopiar os documentos. A procura daqueles serviços era mais do que muita. Superava a oferta.

Estava confirmada a máxima: a ocasião faz o “ladrão.

Queremos
abranger todos

 

os moçambicanos

 

– Estêr Tondo, cônsul de Moçambique em Nelspruit

Era de topo imperioso ouvir a cônsul de Moçambique em Mpumalanga (Nelspruit), até porque a enchente que testemunhamos era/é sinal claro de que os nossos concidadãos conhecem e se servem daqueles serviços. A Cônsul Estêr Tembe aceitou o convite.

Quantos moçambicanos estão registados no Consulado?

A ausência de um Banco de Dados desde a criação do Consulado no ano 2000 limita-me a fornecer números exactos. Contudo pelos registos efectuados cerca de 5000 moçambicanos estão inscritos neste Consulado num horizonte de aproximadamente 500.000, sendo 350.000 em Mpumalanga e 150.000 em Limpopo. Aliás, a nossa instituição serve a estas duas províncias.

Que actividades o consulado tem desenvolvido junto dos moçambicanos para que estes saibam da sua existência e possam dele se servir?

Temos feito reuniões regulares com a comunidade para transmitir as orientações do nosso Governo com vista a acompanhar os desenvolvimentos de índole político, económico e social que ocorrem em Moçambique. Comemoramos também as datas históricas. Anualmente procedemos ao recenseamento militar e realizamos seminários sobre tráfico da mulher e criança em coordenação com a PGR e SAVE THE CHILDREN. Em todas estas actividades tem havido muita aderência e nalguns casos ultrapassa aquilo que eram as nossas expectativas. Também temos tido encontros com líderes comunitários para auscultar as preocupações da comunidade e avaliar o trabalho desenvolvido.

Os pedidos de emissão de passaporte que recebem são de moçambicanos que pretendem adquiri-los pela primeira vez ou renovação?

São para ambos casos. O Consulado moçambicano em Nelspruit é a porta de entrada para o território sul-africano. Daí que, diariamente, entram neste país nossos concidadãos, na sua maioria ilegalmente à procura de melhores condições de vida. Aqui chegados, procuram regularizar a sua situação ora para efeitos de obtenção de residência permanente, ora para efeitos de emprego, porque a condição para esse desiderato é a apresentação de documentos, nesse caso concreto, tratando-se de estrangeiro é o passaporte. Uma vez obtido, o empregador celebra-lhe o Contrato de Trabalho e o empregado consegue assim a autorização de trabalho.

Quais têm sido as principais preocupações apresentadas pela comunidade moçambicana?

Documentação com vista à legalização da sua situação. Obtenção de residência permanente, o chamado ID sul-africano que lhes permita viver legalmente e os seus filhos terem acesso à escola, sobretudo no nível secundário e universitário. Para o registo de crianças dos moçambicanos temos feito deslocar brigadas às comunidades. Até porque muitos vivem longe do centro da cidade. Há pessoas que têm de percorrer cerca de 200 quilómetros para aqui chegar. Já os da província de Limpopo, que faz fronteira com a província de Gaza, percorrem aproximadamente 300 quilómetros.

BARULHO DO

REGULAMENTO

O governo sul-africano tinha aprovado um regulamento que interditava a entrada de indivíduos não detentores de passaporte biométrico. A medida prevalece?

O governo sul-africano não tinha aprovado, mas sim aprovou o Novo Regulamento Migratório em Maio de 2014 que advoga que a partir do dia 25 de Novembro deste ano entram em vigor os passaportes biométricos para todos os estrangeiros que queiram entrar e residir no território sul-africano, à luz do protocolo da SADC sobre a livre circulação de pessoas e bens. Só que esta medida foi mal interpretada por parte das autoridades fronteiriças do Departamento de “Home Affairs”, ligadas à fronteira de Lebombo, entretanto corrigido depois da intervenção das autoridades moçambicanas e sul-africanas. Aliás, parte significativa dos sul-africanos ainda usa passaporte manual.

Este processo de emissão de documentos vai durar quanto tempo?

A campanha tem a duração de 70 dias e está nos seus derradeiros momentos. Em princípio termina no próximo dia 25 de Maio. Iniciou no passado dia 16 de Abril.

Estimam regularizar a situação de quantos moçambicanos?

A nossa pretensão é abranger a todos moçambicanos, por isso é que temos estado a trabalhar inclusive aos fins-de-semana até às 18 horas. Já inscrevemos mais de 7.500 pessoas. No ano passado emitimos cerca de mil e 500 documentos de viagem.

Duma forma geral, como é vista a comunidade moçambicana em Mbobela? Positivo? Negativo?

Duma forma geral, é vista de forma positiva como ordeira, mas isso não quer dizer que não haja algum sentimento da população local que pense que o moçambicano tira o emprego que devia ser dos locais ou que são os fomentadores da criminalidade na cidade e arredores.

Há poucos ou muitos moçambicanos a contas com as autoridades sul-africanas?

Não temos dados exactos, mas a julgar pelas visitas que efectuamos em algumas penitenciárias, pode-se achar como média 200 pessoas presas por vários crimes desde roubo de carros, carros eléctricos, assalto a residências, caça de rinoceronte (Rhino Paching) e crimes passionais.

Que actividades realizaram no ano passado?

Em 2014 dedicamo-nos essencialmente ao processo eleitoral moçambicano em todas as suas fases, nomeadamente formação de agentes eleitorais, recenseamento, monitoria da campanha eleitoral, votação e apuramento dos resultados.

Para terminar…

Dizer que o novo regulamento tem regras mais pesadas. Por exemplo, no antigo regulamento quando a pessoa entrasse e ficasse mais de 30 dias atribuídos ali na fronteira pagava uma multa. Com o novo regulamento já não paga multa, fica um ano interdito de entrar no território sul-africano. Vai directo para à lista negra. Se for renitente apanha cinco anos de interdição.

Qual era o valor pecuniário da multa para quem excedesse os dias de permanência?

A multa máxima era de três mil randes.

Agora, sim. Última questão. Xenofobia. Que plano de acção têm delineado caso volte a eclodir ?

Bom, não queremos, de todo, que isso aconteça. Caso isso aconteça iremos reforçar a coordenação com as autoridades locais, através duma linha telefónica (linha verde), à luz da Convenção de Viena. Criar uma linha verde com os nossos líderes comunitários para acompanhar as situações em todas as comunidades nas províncias de Mpumalanga e Limpopo. Vamos criar também centros de acolhimento em cada comunidade moçambicana em coordenação com as autoridades locais.  E ainda evacuar a documentação e pessoal diplomático da Missão para lugar seguro, isto em situações extremas.

André Matola
matolinha@gmail.com

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