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Empresa “paciência” aguarda por melhores dias

Por admin

Texto de Luísa Jorge

Empregados e empregadores não respeitam Regulamento de Trabalho Doméstico, aprovado à luz da Lei do Trabalho
O trabalho doméstico está a ganhar terreno no país, sobretudo nas capitais provinciais. O “boom” de vagas não é, contudo, acompanhado pela dignidade que se pretende no exercício desta profissão, muitas vezes remetida a terceiro plano e praticada em condições desumanas.

 Sensibilizado pela realidade, o Governo aprovou, em 2008, um Regulamento do Trabalho Doméstico, apenso à Lei do Trabalho. Trata-se, entretanto, de um documento que ainda não se faz sentir, pois é pouco conhecido tanto pelos empregados como pelos empregadores, partes que estão vinculadas naquilo que hoje se designa de “empresa paciência”. 

 De repente, e sem ninguém dar por ela, ganhou o epíteto de “profissão-paciência”. Os afamados “quintais” onde trabalham nossas mamanas ganharam, por arrasto, o rótulo “empresas-paciência”.

Trata-se de uma denominação no mínimo curiosa, assente numa pré-condição de trabalho arrepiante: geralmente, as trabalhadoras (ou os trabalhadores) devem engolir sapos, cobras e lagartos e nada de reclamações, senão estão no olho da rua.

Por outras palavras: não devem questionar horários de entrada e saída, devem fazer um pouco de tudo, abdicando de férias e aconchego familiar aos fins-de-semana e feriados, tudo isto em troca de um salário de miséria, abaixo do mínimo nacional (pouco mais de três mil meticais).

Curiosamente as senhoras batem as portas dos quintais sabendo o que lhes espera do outro lado, mas… “paciência”, espécie de paródia do trabalho doméstico, geralmente praticado por mulheres e ganha-pão de número considerável de famílias moçambicanas.

A maioria das trabalhadoras domésticas vive em zonas periféricas das cidades. Partilham histórias de sofrimentos em longas tertúlias. De comum têm um dia que nasce cedo e geralmente termina tarde, em jornadas que superam as oito horas de trabalho diário, preconizadas pela Lei de Trabalho.

Os patrões não pagam horas extras, não dão descanso entre as refeições, não falam de férias e muito menos dão o décimo terceiro salário. São vistas como trabalhadoras num mundo à parte, selvagem e sem regras.

Nos postos de trabalho, a rotina laboral vai desde limpeza e higiene da casa, cuidar de crianças e idosos até à confecção de refeições e lavagem de carros. Nalguns casos velam também pela segurança da casa na ausência dos proprietários.

Apesar de ser emprego com baixo salário, rodando entre mil e quinhentos a três mil e quinhentos, as mulheres (homens também) não ficam em casa por isso. “Tenho que procurar pão para a família e ajudar o meu companheiro nas despesas de casa”, justificaZefa Cumbane, mulher que exerce esta profissão há cerca de 13 anos.

Refira-se que o Governo moçambicano regulamentou o trabalho doméstico em 2008 (através do Decreto nº 40/2008 de 26 de Novembro), com a intenção de conferir mais dignidade à esta classe de trabalhadores.

Entretanto, mesmo após aprovação deste documento, as irregularidades persistem em torno do exercício desta profissão. Resultado: cresce também o número de mulheres que abandonam o seu posto de trabalho por não suportar a sobrecarga horária, a não concessão de férias remuneradas, a realização de trabalho sob risco de contracção de doenças de vária índole.

Zefa Cumbana disse à nossa Reportagem que foi obrigada a abandonar o seu posto de trabalho por desentendimento com a dona da casa.

“A minha patroa mudou de residência. Passou a viver muito longe e devia subir três chapas para chegar à nova residência”, contou, acrescentando que, vendo o seu salário a minguar só nas despesas de transporte, pediu aumento salarial, prontamente recusado.

Noémia Uache, 34 anos, com o nível médio, teve sorte diferente. Em 2003, por intermédio da Associação das Empregadas Domésticas, aventurou no trabalho doméstico. O seu último emprego foi na casa de um casal estrangeiro que já não se encontra no país. 

A sua relação com o patronato era excelente. Recebia sete mil meticais. “Era um bom salário, mas o trabalho também era muito. A casa tinha dois pisos e eu é que tomava conta de tudo, desde limpeza até a cozinha. Não era fácil”, explica com alguma nostalgia.

A nossa entrevistada vive no Albazine, arredores da cidade de Maputo, e para chegar cedo ao posto de trabalho, no bairro Triunfo, na cidade de Maputo, saía muito cedo. Tinha que acordar às 4:00 horas da manhã para até as 6:30 se apresentar no seu local de trabalho.

COMER SOBRAS

DO JANTAR DO PATRÃO

Outra mulher que conversou com a nossa Reportagem foi Guida Joaquim Muambo. Trabalha como empregada doméstica desde 2003. Seu primeiro emprego foi servir de ama de um menor. Vivia na residência do seu empregador.

Foi-lhe cedido um quarto na dependência da casa. Iniciava o seu trabalho às 6:30 horas da manhã, momento que os pais do menor abandonavam a casa rumo aos seus postos de trabalho.

Com alguma timidez conta que o mau trato e desrespeito por parte do patronato foi o motivo que a afastou do emprego. “Não gostava da forma como o pai do menino falava comigo. Tinha desprezo”, afirma Guida Muambo.

Mas não foi apenas este facto que criou ambiente de tensão e descontentamento. “Lembro-me que certa vez, o pai do menino disse-me que jantasse com comida que estava naqueles recipientes descartáveis. Quando abri o recipiente, vi que continha sobras do jantar dele. Não comi, levei a comida e dei ao cão da casa”, recordou.

São várias as consequências dos maus tratos infligidos às trabalhadoras domésticas.Estas vão desde o desvio de produtos alimentares, até ao mau relacionamento com os familiares do empregador.“Alguns patrões subestimam-nos no que podemos fazer de bem ou de mal, esquecendo-se que nós é que ficamos com crianças em casa e cuidamos das suas refeições”, desabafou uma trabalhadora.

Temos mediado casos vergonhosos

-Ana Macuacua, presidente da Associação das Mulheres Empregadas Domésticas

Por ser uma área de trabalho em que o contrato é, na sua maioria, realizado verbalmente, ou em alguns casos há contratos precários escritos, as partes envolvidas têm, muitas vezes, enfrentado desentendimento.

Para minimizar estes e outros males, a Associação das Mulheres de Empregadas Domésticas (AMUEDO) tem realizado encontros com empregadas nos diferentes núcleos da associação distribuídos pela cidade de Maputo e Matola, para acções de aconselhamento.

De acordo com Ana Matilde Macuácua, a relação entre o empregado e o empregador geralmente assenta sob várias irregularidades. Para ela não basta a formalização da profissão, quando não existe conhecimento do regulamento sobre o trabalho doméstico. “Temos que divulgá-lo ao nível nacional”, refere, sublinhando: “Estamos constantemente a resolver problemas de nossas trabalhadoras domésticas. Não gozam de feriados e não beneficiam de descanso de 30 minutos na sua jornada diária de trabalho”.

“Algumas trabalham em condições deploráveis”, ressalva a presidente da AMUEDO, acrescentado que muitos das trabalhadoras não têm desfrutado de férias anuais, ainda possuem cargas horárias excessivas e outras ficam sem remuneração.

De acordo com Ana Macuácua, existe na cidade de Maputo, trabalhadoras tratadas de forma desumana. “Tivemos queixas de empregadas de prédios da cidade de Maputo. Eram proibidas de usar a casa de banho da casa em que trabalhavam. Por essa razão, eram obrigadas a fazer necessidades maiores e menores nos plásticos e depois atiravam o lixo para os prédios abaixo. Uma vergonha”, lamentou.

Disse também que têm sido reportados conflitos causados não apenas pelos empregadores mas também pelos próprios empregados. “Os empregadores também são vítimas dos seus empregados. Há semanas tivemos que resolver um problema de uma moça que subtraiu uma quantia alta de dinheiro na casa dos seus patrões e estes meteram queixa na associação. Há também empregadas que se metem com os seus patrões e desestabilizam os lares”, rematou.

Criada em 2010, Associação das Mulheres Trabalhadoras Domésticas conta actualmente com cerca de 5 mil e 900 membros.

Direitos e deveres

do empregado doméstico

Pouco divulgado, o Governo aprovou o Regulamento de Trabalho Doméstico, a luz da nova Lei de Trabalho. O documento é espécie de “bíblia” sobre como a relação entre o empregado doméstico e seu empregador deve processar-se.

Por que se trata se matéria fundamental, e de interesse público, domingo publica, nas linhas que se seguem, alguns dos seus principais artigos.

ARTIGO 10

(Direitos do empregado doméstico)

Constituem direitos do empregado doméstico:

a) Receber a remuneração na forma convencionada;

b) Ter assegurado o descanso semanal e férias anuais remuneradas;

c) Beneficiar de assistência médica e medicamentosa em caso de acidente de trabalho ou doença profissional;

d) Ser tratado com correcção e respeito;

e) Fazer a inscrição por si mesmo no regime dos trabalhadores por conta própria do Sistema de Segurança Social Obrigatório.

ARTIGO 11

(Deveres do empregado doméstico)

Constituem deveres dos empregados domésticos:

a) Comparecer ao serviço com pontualidade e assiduidade;

b) Cumprir com diligência e assiduidade o trabalho acordado;

c) Prestar obediência e respeito ao empregador, às pessoas de sua família e as que vivem ou estejam transitoriamente no seu lar;

d) Observar as medidas de higiene e segurança no trabalho estabelecidas pelo comprador e pelas entidades competentes;

e) Proceder lealmente com o empregador e manter boas relações com os outros empregados domésticos e terceiros, se os houver, de modo a não prejudicar o serviço de cada um e a tranquilidade da vida doméstica;

f) Zelar pelos interesses do empregador.

Texto de Luísa Jorge
luísajorge@snoticias.co.mz

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