Em Foco

A ordem é limpar a lama para se avaliar prejuízos

A água densa e turva, que havia transformado a cidade num mar tenebroso, esvaiu-se totalmente. Chókwè é agora uma cidade fantasma e cheia de lodo. As artérias, 

as casas, as instituições públicas e privadas, os centros comerciais, os objectos, os bens estão todos cobertos de lama. Por tudo o que é canto é só lama, lama e lama, atrás de lama, com graves problemas de saneamento do meio. Todos os lugares exalam um mau cheiro, devido às mortes de pessoas, animais e também ao apodrecimento de vários produtos. A indicação é de que aquilo vai durar muito tempo a limpar para que a cidade volte ao que era antes das cheias. Por isso, as autoridades continuam a dizer que ainda é cedo para os chokwenses ali voltarem para retomar as suas residências.

A palavra de ordem é mãos à obra para as limpezas, mas todas as mãos são poucas para limpar as ruas, as casas, as escolas, os hospitais, os serviços e estabelecimentos comerciais e outros. Porque em Chókwè reina um ambiente de fome, angústia e desespero entre a população que viu tudo a ser arrastado e arrasado pelas águas, tendo ficado sem comida, nem dinheiro, a solução para muitos dos seus habitantes passa pela procura de um biscate para ganhar algum. Por isso, nas primeiras horas da manhã, é frequente ver gente a dirigir-se ao centro da cidade à procura de trabalho. Equipados de botas e pás nas mãos, vão, via de regra, para estabelecimentos comerciais labutar a troco de uma diária que varia entre 150 a 200 meticais, de acordo com a piedade do patrão ocasional.

Outras, que não conseguem um lugar para trabalhar na limpeza da lama, ficam nas imediações a aguardar o que é retirada das lojas, deteriorado ou não, de modo a fazer o melhor aproveitamento. Ali se cata lixo, alheando a todos os perigosos em termos de saúde. A limpeza nas suas habitações pode esperar, até porque diz o velho ditado “saco vazio não fica de pé”.

Várias senhoras com os seus bebés ao colo ficam quase todo dia de olho nas portas das lojas, rezando para que algo seja retirado para fora. É a mendicidade e o desespero de quem sempre habituou-se a trabalhar, seja na machamba ou outro lugar, mas que a água lhe retirou não só os seus bens, mas toda a sua dignidade.

E quando das lojas é atirado qualquer produto sejam pacotes de leite fresco putrefacto ou um saco de farinha que não resistiu à água, não interessa o que é jogado fora, assiste-se a uma luta frenética, cada uma procurando apanhar o seu pedaço.

 

Domingo NO TERRENO

 

 

Na última quarta-feira, a Reportagem do domingo lançou-se ao terreno para in loco verificar os estragos causados pelo Limpopo, o processo de limpeza e contabilização dos prejuízos, por ora incalculáveis.

As pessoas ouvidas são unânimes em afirmar que, provavelmente, o ponto de partida será a estaca zero, mas que ainda é prematuro para avançar dados concretos, pois é hora de limpar os imóveis e utensílios, para depois verificar o grau dos estragos e o que se pode aproveitar e só daí contabilizar os prejuízos.

No local, nem todos decidiram ficar apenas pelas limpezas. Existem aqueles que preferiram não interromper a actividade comercial. Enquanto se efectuavam as limpezas, a loja já faziam encomendas dos produtos mais procurados: arroz, farinha de milho e óleo alimentar a partir de Maputo para se vender a quem mais precisa.

O presidente da Associação dos Comerciantes de Chókwè, Cassamo Regunate aconselhou os residentes e comerciantes, em particular, a enfrentar a vida como ela é agora e não esperar pelo Governo para tocar a sua vida para frente. Enquanto os outros carregam os produtos para fora de Chókwè, ele encomendou três toneladas de farinha de milho para vender em Chókwè. Há oportunidade de negócio mesmo no meio da desgraça, ou se calhar por causa disso.    

Dizíamos que ainda não foram contabilizados os prejuízos, mas a limpeza já vai na sua segunda semana, depois do grande dilúvio que afectou a cidade. “Tivemos um encontro entre os comerciantes, mas ficou assente que a prioridade é a limpeza. Depois, iremos reunir-nos com as autoridades da Indústria e Comércio no sentido de solicitarmos uma isenção de impostos, durante dois anos, ou a concessão de empréstimos com juros bonificados”, frisou Regunate.

Ankur Patana, proprietário da loja PAPU, especializada na venda de produtos alimentares, limpeza e bebidas, disse que a sua maior preocupação era recuperar os documentos da actividade comercial que foram levados pelas águas. “Neste momento, a nossa maior preocupação não é o dinheiro que já perdemos, mas sim os documentos, pois com o dinheiro, mas sem a documentação será difícil exercer a nossa actividade. Gostaria que o governo nos ajudasse nesse sentido”, disse Patana.

Maria Chaúque é residente do 4º bairro. Encontrámo-la no meio da confusão e acabada de sair da lama. Disse que estava a aproveitar restos de detergente e sabão para limpeza da casa. Lavou toda a roupa e também móveis. Mãe de cinco filhos, Maria Chaúque garante que nada será como dantes. Disse que durante as enxurradas, a família permaneceu em Chókwè e estava refugiada no tecto duma casa vizinha.

 

BRAÇO DE FERRO

 

Entretanto, continua o braço de ferro entre a população e a Polícia da República de Moçambique (PRM), pois sempre que amanhece a população fica concentrada em frente das lojas à espera de algo proveitoso: comida, sabão e detergentes, que são retirados dos estabelecimentos e jogados fora, porque os comerciantes julgam-nos sem utilidade. A Polícia foi orientada para controlar o ambiente, impedindo que as pessoas forcem as entradas dos estabelecimentos para pilhar. Como há muita aglomeração em frente às lojas, muitas vezes a corporação é obrigada a disparar para ar, como forma de dispersar as pessoas, que muitas vezes estão ali para apanhar coisas que são atiradas das lojas para a lama. A atitude da PRM é de evitar que as pessoas consumam produtos contaminados e a população seja assolada por doenças como diarreias.

 

Mesmo sem tecto contínua afluência a Chiaquelane

 

Em Chiaquelane, tecto tem o significado de lona ou tenda para abrigar uma das centenas de famílias que para ali foram parar por causa das enxurradas. Só que a distribuição dessas tendas ganhou critérios pouco claros, com algumas pessoas a falarem de apadrinhamento ou afinidade entre o chefe do quarteirão, das dez casas ou do bairro onde a pessoa reside em Chókwè ou Lionde, responsáveis pela atribuição de lonas, depois de prévia inscrição junto dos mesmos, e os necessitados.

Numa altura em que o centro de acomodação de Chiaquelane, duas semanas depois da sua abertura, continua a registar entradas de pessoas vindas de Chókwè, Lionde, Guijá, Chilembene e Massingir, o cenário de acomodação está longe de deixar de ser dramático.

Embora Chiaquelane seja o único sitio para onde todos recorrem neste período de aflição, nem tudo corre às mil maravilhas, pois muitos ainda reclamam a falta de comida, tendas, cobertores, entre outros víveres.

Esta situação é mais complicada, quando de repente chove, como aconteceu ao longo da semana. Ninguém sabe onde esconder a pouca comida de que dispõe, o lençol, a manta e a esteira, sobretudo porque, às vezes, tal fenómento se verifica na ausência dos donos bens, preocupados em ganhar a vida na cidade. Pior ainda é quando chove de noite, com as crianças ao colo. Alguns pais garantem que tiveram de recambiar as crianças para as respectivas casas na cidade de Chókwè devido à chuva que caiu, pois corriam o risco de contrair doenças, o que parece um contra-senso.

Com a comida trazida de casa já a minguar aliada a uma distribuição deficitária dos produtos, pois já há relatos de famílias que apenas receberam comida uma única vez desde que ali estão, teme-se que a situação venha a agravar-se nos próximos dias.  

 

O “JANTAR” EM CHIAQUELANE

 

Nélio Novela, uma das vítimas das cheias, desde dia 23 de Janeiro vive debaixo do cajueiro, junto com a sua a família. Encontrámo-lo quando se preparava para “jantar”. Pouca coisa. Arroz e feijão e um pouco mais.

A família Novela é composta por oito membros, entre os quais dois bebés gémeos. Ele contou que desde que chegou ainda não recebeu nenhum produto destinado aos reassentados e que continuam a viver numa situação desoladora.

Ele compra os produtos na Macia com o pouco dinheiro que lhe resta no bolso para poder alimentar a sua família. “Nem tudo está mal, mas também posso dizer que as pessoas que estão à frente da distribuição das lonas e produtos alimentares não estão a agir com a devida transparência. Elas não sentem o que passamos. Na última quarta-feira, recebemos a visita do senhor governador da província e quando aqui chegou, observou que vivemos com os nossos gémeos ao relento. De imediato orientou ao administrador local para que fossemos fornecidos lonas. Mas até às 18 horas da quinta-feira, não havíamos recebido nada, apesar da ordem superior”, queixou Novela.

Novela olha para a situação com tristeza, pois na tarde da quarta-feira havia chovido e na altura da ocorrência tinha ido à fila para ver se recebia a lona prometida, o que não aconteceu, porque nunca são suficientes para todos.

“Choveu durante 30 minutos. Os bens molharam todos e agora estamos a pensar o que fazer com os bebés esta noite. A nossa sorte é que ainda não sentimos a presença de mosquito. Dizem que temos que ter esperança é por isso que continuamos alimentando o coração, mas sempre com tristeza, frisou Novela.

Ofélia Timbe está em Chiaquelane na companhia da sua irmã. Ela trabalha numa pastelaria em Chókwè, enquanto a irmã é professora primária. Como ambas são mães, a preocupação reside no facto de estarem a dormir ao relento, pois ainda não haviam recebido lona e “certeza” para purificação da água.

Entendem que a situação está complicada, por isso é difícil dar comida a toda gente. Daí que elas usam o dinheiro que possuem para aquisição de alimentos.

“As nossas mantas e roupas estão molhadas devido à chuva que caiu. Por isso, pedimos a quem de direito que nos dêem lonas para nos abrigarmos”, apelou Ofélia. 

Deixe um comentário

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Artigos Relacionados

Botão Voltar ao Topo