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A democracia é um fenómeno estranho à nossa cultura

Por admin

-afirma o novo Cardeal Dom Júlio Duarte Langa, Bispo Emérito de Xai-Xai, Gaza,  em entrevista exclusiva ao domingo

O Papa Francisco nomeou domingo passado vinte novos cardeais em todo o mundo. Eles vão integrar o grupo de elite do topo da hierarquia da Igreja Católica Apostólica Romana. Dos agora nomeados, quinze podem entrar no Conclave para escolher o sucessor do Sumo Pontífice após a sua morte ou resignação, ou seja, os que têm menos de 80 anos. Na lista dos restantes cinco novos cardeais, com mais de 80 anos, figura o Bispo Emérito de Xai-Xai, Dom Júlio Duarte Langa, o segundo Cardeal Moçambicano depois do Cardeal Dom Alexandre Maria dos Santos. É merecedor do título pelos seus longos anos de serviço prestado à Igreja Católica. domingo conversou com o prelado e fica aqui o essencial da entrevista em discurso directo, onde a dado passo afirma que  “creio que a democracia ainda é um fenómeno estranho à nossa cultura!”

O que gostaria de dizer sobre esta confiança que lhe foi dada pelo Santo Padre ao nomeá-lo Cardeal?

Gostaria de dizer aos nossos crentes que o gesto do Santo Padre deveria estimular-nos no sentido de trabalharmos com empenho na edificação da paz no nosso país, porque só através dela é que esperaremos outros bens.

Qual é o seu sentimento pela decisão de Sua Santidade ao ordená-lo Cardeal?

Primeiro, é um sentimento de surpresa porque nunca pensei nisso. Já sou Bispo Emérito e me resignei. Não tenho Diocese e estou assim. Agora, se o Papa se lembrou de mim para me dar este prémio, é significante e dignificante.

Qual o sentido dessa significação e dignificação?

Bom! Conforme tive a oportunidade de ter o pronunciamento do Santo Padre, ele escolheu cinco Bispos Eméritos dos quais quatro são todos Arcebispos menos eu que sou um simples Bispo Emérito para representar tantos Bispos que trabalham generosamente e com muito zelo na edificação do Reino de Deus nas suas Dioceses. Isso para mim é que é gratificante!

Que leitura faz do papel Igreja Católica em Moçambique nos períodos colonial e pós-independência?

Não sei se sou capaz de fazer uma avaliação objectiva uma vez que sou católico da Igreja. Nós, na Igreja, temos o nosso papel estabelecido por Jesus Cristo que nos anuncia a boa nova de sermos filhos de Deus, de ter um Pai que levamos no amor. Quanto à questão que me coloca, diria que a forma de executar essa missão diverge quanto às pessoas e quanto às circunstâncias motivadas pelo próprio tempo que passa. No período colonial, os padres católicos eram enviados de Portugal para vir evangelizar em territórios colonizados. Entretanto, depois da independência a situação mudou, porque fomos nós os próprios donos da terra que assumimos o papel de conduzirmos a Igreja, embora a missão seja a mesma de Jesus Cristo.

Em que medida as adversidades sociais, políticas e económicas pós-independência influenciaram o papel da Igreja Católica em Moçambique?

A Igreja Católica nesse período quase que ficou privada de todas as suas infra-estruturas e foi alvo de muitas críticas por causa da ligação que teve com o sistema colonial. A isso também se acresceu a euforia pela independência nacional que também trouxe outros efeitos. O que posso dizer é que o sofrimento pelo qual a Igreja Católica foi passando tornou-se produtivo para nós, porque depositámos com maior vigor a nossa fé em Jesus Cristo, o que permitiu que a Igreja Católica florescesse novamente.

Certos discursos políticos actuais não são abonatórios para a paz, reconciliação e estabilidade social do país. Que diz sobre o assunto?

Olha! A Igreja Católica trabalhou muito para que a paz florisse no nosso país, mesmo olhando para o estabelecimento dos Acordos de Paz em Roma, em 1992. Isso mostra que pensamos que não é com a guerra e violência que se pode trabalhar para o progresso e bem-estar. Este trabalho teve a sua continuidade mesmo depois da guerra para podermos reconciliar a irmandade dentro da família moçambicana. Infelizmente, o que observo é que esta acção de reconciliação não se efectivou totalmente, porque ainda se nota certa exclusão que não permite que a paz lance raízes na nossa terra e que os moçambicanos se unam e formem uma comunidade única.

De que exclusão se refere concretamente?

Olha! Nós já falamos disso na nossa Carta Pastoral.

Que percepção tem das abstenções que se registam nos nossos pleitos eleitorais?

De que muitos moçambicanos ainda não entraram na política. A nossa sociedade tem características culturais próprias.

Que características são essas?

De que os chefes não se escolhem, eles nascem. Tanto é que a democracia é uma coisa muito nova na nossa cultura. Creio que a democracia ainda é um fenómeno estranho à nossa cultura!

Que trabalho se deve fazer para que se reduzam as abstenções?

Criar condições para que as pessoas vejam os resultados das suas aspirações através da expressão do voto que fazem. Penso que o crescimento económico do país ainda não se reflecte na vida de muitas pessoas. A democracia é um processo que precisa de ser consolidado no país.

Da infância ao sacerdócio

Onde é que nasceu e como cresceu?

Nasci em Mangundze, distrito de Mandlakadzi, província de Gaza, no dia 27 de Outubro de 1927. Nos primeiros anos da minha vida, cresci junto dos meus pais e mais tarde fui viver durante dois anos com os meus tios na então cidade de Lourenço Marques, hoje cidade de Maputo. Mais tarde, por motivos sociais e familiares, voltei para Gaza, continuando a viver outra vez junto dos meus familiares, numa altura em que o meu pai havia sido transferido para a aldeia de Macarretane, no Chòkwé.Assim vivi e cresci até que fui frequentar o Seminário.

Antes de ir ao Seminário o que fazia?

 Estudava, embora tivesse ficado em casa um ano sem fazer nada logo que concluí a terceira classe elementar.

Porquê?

 Porque perdi a oportunidade de avançar, primeiramente, para o Seminário de Amatongas, em Manica e Sofala na altura, com um companheiro meu chamado Adelino Laísse. Na altura em que ele foi para Inhambane e depois para Beira e finalmente para Amatongas, o meu pai se encontrava em Macarretane e eu não podia avançar. Tive que ficar à espera dele.

O que fazia o seu pai em Macarretane?

Era professor. Só depois de voltar a Magundze, vindo de Macarretane, meu pai me acompanhou até à actual Estrada Nacional Número Um (EN1) em Chizavane para tomarmos o autocarro que nos levaria para Inhambane. Só que, infelizmente, o autocarro não parou, porque vinha cheio de mineiros. Dessa forma, só tinha que esperar mais oito dias, já que a viagem era feita uma vez por semana. Deste modo, tornava-se impossível ir a tempo de apanhar o barco em Inhambane para depois chegar à Beira e dali avançar para Amatongas. Tinha que ser assim. Era essa a trajectória.

Depois disso, o que aconteceu?

Depois disso fiquei parado até que em finais do mesmo ano o Arcebispo de Lourenço Marques decidiu pela abertura do Seminário de Magude, para onde fui frequentar.

Não ficou desiludido com esta perda de tempo.

Não! Ingressei no Seminário em 1942 e em 1947 tive o privilégio de ser seleccionado para ir a Roma, Itália, numa excursão do “Mundo Português”, ou seja, de todas as colónias portuguesas por ocasião da canonização de São João de Brito. Viajei, na altura com o actual Cardeal Dom Alexandre Maria dos Santos. Então, quando terminei o quinto ano e porque não havia Seminário Maior, houve intenção de seguirmos para Angola. Contudo, na mesma ocasião, o Cardeal pensou seriamente em abrir um Seminário desta natureza aqui em Moçambique, tendo criado condições para o efeito em 1949, razão pela qual tive a oportunidade de prosseguir com os meus estudos dentro do país. Depois da formação, fui para Matutuíne, na província de Maputo, para estágio de alguns meses, tendo, mais tarde regressado para o Seminário. Aí fui ordenado e colocado em Malehice, Gaza, onde trabalhei durante 19 anos. Mais tarde fui afecto aqui em Xai-Xai, como Bispo, onde trabalhei até 2004, altura da minha reforma.

Artur Saúde

Fotos de Artur Saúde

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