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Telemóveis chineses atrapalham finanças rurais

Por admin

A expansão dos serviços financeiros para os distritos continua a acontecer a um ritmo que não anima para as populações. Para fazer face à lentidão com que os bancos se arrastam ao encontro dos 

clientes, o Fundo de Apoio à Reabilitação Económica (FARE) está a organizar as populações em grupos de Poupança e Crédito Rotativo (PCR´s). Em Nampula existem cerca de quatro mil e 800 grupos que movimentam avultadas somas. O FARE convenceu-os a usarem a banca móvel (mKesh), mas, como não há bela sem senão, este sistema não sincroniza com telemóveis chineses que a maioria possui. Por causa disso, a população se sente como se tivesse pulado da “frigideira para o lume”.

Dados colhidos junto do Banco de Moçambique indicam que até ao final do ano passado a província de Nampula contava com apenas 48 agências bancárias para atender aos cerca de quatro milhões de habitantes, distribuídos por 21 distritos. Para complicar as contas, a maior parte dos balcões estão concentrados na cidade de Nampula, havendo distritos como Moma, Lalaua e Macuburi que não conhecem estes serviços.

Porque nem nas projecções mais optimistas se espera cobrir todas as sedes distritais com serviços financeiros formais, o Governo moçambicano, através do Fundo de Apoio à Reabilitação Económica (FARE), “bebeu” experiências de vários quadrantes do mundo e decidiu formar grupos de Poupança de Crédito Rotativo (PCR´s). A iniciativa deu certo e, em poucos anos, contabilizam-se mais de 10 mil grupos, com cerca de 300 mil membros.

Conforme temos estado a testemunhar um pouco por todo o país, estes grupos possuem regras de disciplina financeira bastante eficazes que tornam possível a materialização do Plano Nacional de Poupança (adoptado pelo Governo há cerca de um ano) ao mesmo tempo que os camponeses realizam sonhos que a pobreza campesina teimava em adiar.

Em todos os locais por onde passamos, as populações não escondem que graças à sua participação nos PCR´s, a vida mudou para melhor. O sonho de ter uma casa de alvenaria coberta de chapas de zinco materializou-se num ápice, os planos de ampliar as machambas resultaram, as ideias de ter meios de transporte próprio também viraram realidade e até as humildes bancas de saco estendido no chão viraram mini-mercearias com direito a música, balança e congeladores.

Mas, lá está. É preciso guardar o dinheiro das poupanças em lugar seguro, dado que, até agora, as somas reunidas a cada mês são arquivadas em malas de madeira facilmente inflamáveis e surripiáveis. Fontes do FARE indicam que situações desse tipo acontecem, ainda que esporadicamente, pelo que se busca a máxima popular que reza que “confie em Deus mas, tranque a porta”.

Porque os bancos continuam a acotovelar-se nas cidades, por vezes na mesma avenida e quarteirão, como acontece na cidade de Maputo, onde até Dezembro do ano passado havia 228 agências, quase cinco vezes mais do que em toda a província de Nampula, o FARE decidiu estabelecer contactos com a carteira móvel da mCel, conhecida por mKesh para ajudar a gerir aquele dinheiro.

Telemóvel chinês

Percebendo que este pode ser um bom nicho de negócio, a mKesh aprovou a ideia e aderiu ao projecto-piloto com uma plataforma electrónica específica para aqueles grupos, dado que as contas devem ser movimentadas por um mínimo de três pessoas eleitas democraticamente pelos membros de cada PCR.

Conforme nos foi dado a testemunhar, para cada grupo foram atribuídos cinco códigos de acesso, vulgo PIN, dos quais três são combinados para evitar que dois gestores da conta, sozinhos, possam engendrar planos de prejudicar a maioria. “Trata-se de contas solidárias onde todos estão envolvidos e fazem a gestão”, disse Sónia Zeferino, gestora do programa de PCR´s ao nível do FARE.

O local escolhido para se dar o “pontapé de saída” do projecto foi a vila de Nametil, sede do distrito de Mogovolas, no interior de Nampula. O FARE escolheu dois grupos que lhe pareciam “espertos” mas, um terceiro vizinho fez birra e teve que ser integrado.

Com estes três grupos, fez-se o ensaio da plataforma que, em poucos dias trouxe à tona o primeiro dilema. O sistema não sincronizava com os telemóveis dos membros dos grupos. Pesquisa aqui e ali e todos ficaram a saber que aqueles telefones eram chineses, o que fazia com que o sistema criado pela operadora não se compatibilizasse.

Conforme diz Marques Jamal, conservador de registos de um dos grupos de Nametil, “experimentamos os telemóveis de todos os membros e não houve sucesso, pelo que decidimos comprar telefones em revendedores autorizados. Aí sim, conseguimos sincronizar a realizar as operações”.

Para que não nos sobrassem dúvidas, Jamal pediu licença e afastou-se em direcção ao local onde o seu PCR estava reunido em mais uma sessão de poupança. Ouvimo-lo a pedir aos seus colegas para lhe passarem os telefones. Depois de reunir um punhado deles nas mãos disse: “Pensávamos que estes eram telefones de verdade”, ao mesmo tempo que deixava escapar uma pequena gargalhada que nos contagiou.

Ultrapassado o problema dos telemóveis “genéricos”, que só servem para fazer chamadas e enviar mensagens escritas (SMS), os três grupos depararam-se com um segundo problema. Não tinham domínio dos passos para realizar as operações até ao fim.  Valeram as aulas dadas por uma organização não-governamental (ONG), a Ophavela, contratada pelo FARE para assistir aquelas comunidades.    

Ultrapassada esta situação veio o drama das oscilações e, por vezes, inexistência de rede para a realização das operações electrónicas. Elísio Canene é presidente de animadores de PCR´s de Mogovolas e gere um grupo de 26 animadores no distrito que mobilizam as comunidades a aderirem a este projecto. Conhece bem os dilemas pelos quais a população passa quando o assunto é guardar as economias.

“O problema da oscilação da rede é real. Quando outros grupos souberam que o FARE introduziu a plataforma electrónica pediram para fazer parte do projecto e não avançamos porque se trata de grupos que estão longe da vila de Nametil e lá a rede é fraca e, por vezes nem há”, disse.

Apesar das crises com a rede móvel, a notícia de que na sede de Nametil já se usa mKesh para gerir as contas dos grupos não dormiu no caminho. Canene conta que outros sete grupos exigiram se integrados. “Passo a vida a explicar-lhe que este é um projecto-piloto mas, ninguém quer entender. É uma batalha. Todos querem porque acham que é mais seguro”, sublinha.

 Bancos precisam-se

 O distrito de Mogovolas, onde o projecto-piloto foi implementado nos últimos seis meses, conta com 194 mil habitantes, e é o maior produtor de castanha de caju da província. Também é o “curral” provincial, pois, por ali existem cerca de 25 mil cabeças de gado bovino. Por outro lado, a população produz bastante algodão, gergelim, amendoim, arroz, mandioca e feijões. Por outras palavras, em Mogovolas a conversa não é sobre fome, mas sim, sobre escoamento, mercados agrícolas e agro-processamento.

Perante esta realidade, os PCR deste distrito mexem com dinheiro de verdade e os seus membros começam a exigir que o Governo avance para o melhoramento da plataforma electrónica, que se resolvam os problemas de qualidade e expansão da rede e do estabelecimento de agentes intermediários com robustez financeira para realizarem depósitos e levantamentos em tempo útil.

É que na vila de Nametil existe um balcão do Banco Comercial e de Investimentos (BCI), mas, como se sabe, a população local não possui todos os documentos que o banco exige para que se constituam como clientes solidários. Aliás, mesmo quando conseguem satisfazer a esta componente burocrática, surgem outros percalços.

Conforme nos revelaram, o banco é bastante flexível quando o assunto é fazer depósitos. Entretanto, “quando chega a hora dos levantamentos pedem-nos para esperar por decisões que devem ser tomadas na cidade de Nampula, porque nós movimentamos somas elevadas e eles nem sempre tem disponibilidade naquele instante”, afirmam os membros dos diferentes PCR a quem contactamos.

Perante este tipo de situações, os grupos de poupança preferem ver o seu dinheiro nas mãos de agentes de banca electrónica e, no caso de Mogovolas, esse agente era a Estação Postal dos Correios de Moçambique de Nametil que também enferma de falta de capacidade financeira para responder às necessidades imediatas dos grupos.

Ussene Tesoura, gestor da referida estação confirma que só possui 50 mil meticais na mKesh “e isso é pouco para os oito grupos que aqui estão inscritos, porque eles são negociantes e quando surge uma oportunidade de compra de um certo produto vem a correr e querem levantar valores que eu não consigo dar. Penso que minimizaria o problema se tivesse um mínimo de 150 mil meticais na conta”, disse.

O que deixa Tesoura de mãos atadas é que a decisão de aumentar os valores depende da administração da empresa localizada em Maputo pelo que, tal como o BCI, aquela Estação Postal não satisfaz aos anseios da população de Mogovolas que já possui uma grande dinâmica de gestão financeira e, apesar de estar no meio rural pensa como gente grande e sabe que “tempo é dinheiro”.

 Solução à mão de semear

 Enquanto os PCR´s, FARE, Ophavela e governo do distrito de Mogovolas andam às voltas para resolver o problema de segurança das maletas de dinheiro, de rede móvel e de um banco para guardar as poupanças das populações, eis que Alexandre Sumbana, proprietário da ASS Microcrédito, que opera em Nametil, Moma, Namialo e cidade de Nampula, afirma que pretende assumir a posição de agente de carteira móvel para ajudar a população local a ultrapassar aqueles constrangimentos.

“A ideia é colocar a nossa instituição de micro-finanças como alternativa para a resolução dos problemas de poupança, transferências e levantamentos para os PCR e para outros clientes enquanto não nos transformamos em caixa financeira rural”, disse.

Num contacto com o director do FARE, Augusto Isabel, ficamos a saber que, apesar da pretensão da ASS Microcrédito ainda não estar formalizada, “julgo que é bem-vinda e posso garantir que vamos levá-la em consideração, pois, está a ficar cristalino que os PCR são uma solução para a gestão financeira no meio rural”.  

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