Crianças no sopé da montanha. Com picareta na mão escavam a rocha. Deslocam solos. Sua roupa, da cor de tijolo, já mostra que elas penetram as minas com a sofreguidão de adultos. Com idades entre os 12, 13, 14 anos, abandonaram a escola. O livro foi trocado pelo ouro.Seu futuro passa a ser do tamanho da mina.
Kandzanai Sanani é criança de 15 anos. A sua baixa estatura sugere idade ainda menor. Contudo, desde os 12 anos que trocou a escola pelo garimpo. Diz-nos que os livros não lhe rendem o que consegue agora com o ouro.
Não passou, por isso, da quarta classe. Em Cácaruè, onde mora, algures em Manica, olham para esta criança de 15 anos como “pequeno pai”, pois compete à ela a liderança da família.
Diz-nos, com orgulho, que alimenta sua mãe, Patrícia Simango, presente na entrevista que o filho dá ao domingo na região montanhosa de Fenda, escarpadaem campos de garimpo intenso, mesmo háescassos dez quilómetros da vila de Manica.
“Ganho 500 ou 1000 meticais nas minas de ouro”, diz na maior inocência. A mãe, Patrícia, abana a cabeça cheia de resignação e quase chora. Olha para nós e, cabisbaixa, fala titubeante: “ Fazer o quê? É ele que compra roupa para mim e para os irmãos”.
Derreado pela intensidade de trabalho no garimpo, com roupa cor de tijolo e ensopada de suor, o menino puxa a mãe com autoridade e diz:“vamos embora”.
A mãe, obediente, com enxada na mão, ainda nos acena com uma despedida amarga, quase molhada em lágrimas. Vale a pena ouvirmos o que ela diz para nós: “Ele deixou a escola por causa do garimpo. Eu quero dinheiro, sim. Mas também gostaria que ele fosse à escola. Ele não quer ir à escola. Nega. Ganhou vício pelo dinheiro.”
“GANHOU VÍCIO PELO DINHEIRO”
Esta expressão soaria dezenas de vezes em entrevistas feitas na preparação desta Reportagem. Meninos como Kandzanai Sanani estão, tristemente, “aos montes” nos campos de garimpo.
Estima-se, em Manica, que duas mil crianças tenham abandonado a escola. Os índices de desistência escolar rondam os dez por cento perante o testemunho de pais e das autoridades do sector de Educação.
Pedro Fernando nasceu em 1991. Em 2005 (com 14 anos, portanto) começou a trabalhar nas minas. “Comecei por ganhar 500 meticais por dia. Deixei de estudar para me dedicar à mineração”, conta.
Resultado: não passou da sétima classe. Olhava para a escola como algo que só podia empatar o seu tempo. Hoje com 23 anos de idade já começa a perceber que o futuro pode não ser apenas do tamanho da mina. O ouro já começa a escassear. Já não rende como no antigamente. Pode voltar a ser “pobre” quando acabar de verdade.
Conversamos também Cardoso Inácio, 17 anos, à margem do processo de “lavagem da terra”, visando a separação do ouro numa lagoa próxima dos campos de garimpo.
“Com os 600 meticais que ganho por dia consigo a ajudar a minha família”,diz, queixando-se: “não queimem muito o meu tempo. Estou a trabalhar”.
Cardoso ainda nos exibe quantidades ínfimas de ouro aluvionar, contáveis nos seus minúsculos braços. Fixa neles toda a intensidade do seu olhar como quem acredita que todo o seu futuro está ali. “ Aqui ganho, à vontade, uns duzentos paus”, sentencia.
Olhamos para ele e perguntámos:
– “E a escola?”
– “Qual escola?”,pergunta.
-“Estamos a perguntar se você estuda…”
– “Esquece, meu irmão”.
Vimos, tristemente, o menino a desaparecer na encosta mais próxima da montanha. No caminho ainda se cruza com outros menores que transportam solos pontificados de substâncias finas, meio-amareladas. Parece que ouro é aquilo.
Corremos ao encontro dos meninos-transportadores. São eles Geraldo (17 anos), Hortêncio (16 anos) e Coretze (17 anos). De tronco nu e enlameados dos pés à cabeça, cultivam um ritual interessante: caminham um atrás do outro, com precisão milimétrica.
Todos esses meninos não passaram da quarta classe. A escola deixou de ser “preocupação”. Assumem que têm pressa de serem adultos, porque querem ser vistos como genros valentes, com esposas felizes, alimentadas pelo ouro de Manica.
Saúdam-nos cheios de pressa. Não param. As entrevistas são feitas mesmo a correr e com poucas novidades: “estudar para quê se o futuro está aqui?”, “ganhamos 600 meticais por dia. Que profissão nos dará este dinheiro?”, “Dizem que os doutores não ganham o que ganhamos aqui”.
Abanamos todos a cabeça.
ADULTOS ASSISTEM
IMPÁVIDOS E SERENOS
Perante esta situação, conversamos com o zimbabweano Epson Senguira, chefe da comunidade de Fenda. Ele “explicou”: “ não sabemos o número exacto de crianças que estão no garimpo. Não as impedimos, porque ganham sustento para si e seus pais”
O nosso entrevistado ressalvou que a questão era que enquanto a machamba não é aliciante para a criança, as minas de ouro cativam-nas para o sucesso financeiro rapidíssimo.
“Em casa a criança tem que ser forçada a ir à machamba ou à escola. A actividade mineira é aliciante, porque pode ir uma vez, encontra o ouro e obter dinheiro”, diz o chefe da comunidade de Fenda naquilo que chama de “esclarecimento”
E remata “vitorioso”: “esta é a diferença que existe quando é feita essa comparação em relação à presença de crianças em actividades normais de casa. Temos visto que ela obedece àquela actividade que faz em casa porque é dita para fazer. Não tem a mínima motivação para fazê-las. Cumpre porque é parte da sua educação. Mas para ouro já não”.
Resultado: Logo muito cedo as crianças estão no local de extracção. Ressaltou que as crianças são mesmo “valentes”. Trabalham lado-a-lado com cerca de vinte mil mineiros adultos nas colinas de Fenda e da famosíssima “mina” de Mimosa.
Grosso modo, crianças aprendem a escavar solos em profundidades de meter dó, trabalhando em condições sub-humanas quinze metros abaixo da superfície. Mais: no “subsolo” abrem túneis com 40 a 50 metros de cumprimento contra todos os riscos de desabamento.
Em terreno íngreme, salpicado de buracos profundos, os meninos aprenderam a caminhar na tal precisão milimétrica, havendo relatos de acidentes quase semanalmente.
É aqui onde conversamos com os meninos Tomas (17 anos), Lucas (16) e Borges (18). Ambos estudaram até a sexta classe e já nem querem ouvir falar de escola. A mina é seu casulo preferido. Ninguém fala de claustrofobia ali. Tudo é voluntário. Podem viver ali dias, sem espreitar o sol, desde que ganhem gramas de ouro e… dinheiro.
Estes meninos disseram-nos que já estavam familiarizados com acidentes, apesar de dia, menos dia, um deles poder estar perante a contingência de partir para o outro mundo. Só este ano 11 mineiros já morreram. Nada que os assuste.
Regressemos, então, à conversa com o chefe da comunidade de Fenda. Explicou que para minimizar os acidentes durante a exploração do ouro, o sector dos Recursos Minerais está a desencadear uma série de actividades junto dos garimpeiros com vista a dotá-los de técnicas para uma actividade sem risco de vida.
Só no distrito de Manica existem mais de dez mil pessoas envolvidas no garimpo.
“Garimpo coloca
muitas crianças fora da escola”
– diz Olavo Deniasse, director provincial dos Recursos Minerais em Manica
Para Olavo Deniasse, director provincial dos Recursos Minerais em Manica, o Governo está perante um grande desafio, pois estudos levados a cabo com vista a perceber qual é o impacto da mineração na área de educação trouxeram resultados desoladores: nas escolas localizadas dentro da área de mineração, o índice de desistência é alto.
Os mesmos estudos analisaram escolas da periferia e constataram que a taxa de desistência é baixa. Os autores do estudo chegaram a conclusão de que haverá outras razões para esses abandonos, contudo são “unânimes” num ponto: a mineração é uma das principais razões.
Segundo Olavo Deniasse, os estudos recomendam que, efectivamente, tem que haver um grande esforço da parte do sector de Educação, não só na capitalização daqueles conteúdos ricos que existem sobre aspectos ambientais que podem ser vistos desde a 1ª à 7ª classe.
Recomendam igualmente que há necessidade de que o curriculum local seja implementado porque, para além de criar educação para as crianças, indirectamente os pais e encarregados participam na elaboração dos conteúdos e farão parte da educação ambiental de forma indirecta.
“Eles mesmo vão participar e dizer o que tem que deve e não deve ser feito. Portanto eles estarão a participar. Isso é um facto real. Há muitas crianças na mineração e nem todas elas estão a cavar o ouro como tal”, disse o nosso entrevistado.
Explicou que a par da mineração, outras estão em actividades paralelas. “Se não estão a cavar o ouro, estão a vender alguma coisa naquele local e/ou prestam outros tipos de ajuda e isso é complicado”, sublinhou.
E salienta: “É um desafio de facto. Mas não será apenas o sector de Educação que deve trabalhar e estar envolvido. Todas as partes devem juntar-se para minimizar ou mesmo travar este fenómeno no sentido que as crianças não se façam àquele local”.
Bento Venâncio