Artes & Letras

MÚSICA: O silêncio do trompete de “Sigaúque Project”

“Sigaúque Project”, com sede no bairro de Chamanculo, em Maputo, tinha até há pouco um estúdio de gravação, recinto para espectáculos e para aulas de música. Porém, um grupo de assaltantes roubou todo. Instrumentos musicais e equipamento de som. A recompensa de 50 mil meticais ainda não ajudou a recuperar os bens. Mas, Daniel Walter, Sigaúque para a comunidade local, garante que “o trompete voltará a soar!”.

O quadro preto feito de cimento na parede da casa de Daniel Walter, que antes era usado para anunciar a realização de concertos musicais e aulas de música perdeu a alegria. Está mais preto do que nunca e nele estão inscritas palavras amargas que impelem o leitor à dor que o proprietário daquele espaço vive.

Roubaram tudo. Tudo…” diz Walter e depois se põe calado a olhar para o além. Calamo-nos também porque pouco há a dizer. Segundos depois, ele ajeita o cabelo, respira fundo e retoma a conversa. “Viajei para a África do Sul e os ladrões invadiram a casa. Vinham num camião e carregaram os equipamentos todos pelo alto do portão”.

Ao apontar o portão observa que a cantoneira colocada no topo daquele acesso vergou. “Veja, até o ferro vergou. Nem tinha reparado. Foi por ali que tiraram as coisas… perdi bens no valor de quase 25 mil dólares. Não é por acaso que anunciei uma recompensa a quem ajudar a recuperar as coisas porque são de grande valor”.

Entre os bens roubados naquele espaço cultural mergulhado no coração do Chamanculo, uma dos subúrbios mais vibrantes de Maputo, destaque vai para duas mesa de som, uma de 24 canais e outra de 12 canais, várias colunas de som de palco e estúdio, amplificadores de base, guitarras, microfones, trompetes, placas de som com respectivas malas, entre outros.

Até levaram um fato com camisa que a minha mãe me ofereceu há cerca de vinte anos pelo casamento da minha irmã, um relógio Casio e ignoraram que alguns daqueles equipamentos são de marcas como Ibanez, Marshall, Shure, Yamaha, Mackie difícies de encontrar no nosso mercado”, disse.

Apesar do roubo, Walter afirma que o sonho de fazer daquele espaço uma referência cultural da cidade continua. “Estou atordoado e ainda não sei muito bem por onde começar, mas tenho a certeza de que este silêncio não deve durar. Acredito que vou recuperar os instrumentos ou adquirir outros e prosseguir. Eles não venceram”, frisou.

Tudo o que se sabe até ao momento é que na noite em que este roubo aconteceu, a empregada devia estar ali, mas não compareceu alegadamente porque não conseguiu apanhar transporte e que apesar do bom relacionamento que Walter afirma ter com todos os vizinhos, “ninguém” percebeu que se tratava de um roubo porque “pensavam que eu estivesse a fazer alguma mudança”.

Como uma desgraça nunca vem só, uma hora depois de tomar conhecimento do roubo, Walter foi informado de que o seu anfitrião, o Jonas Luís, a quem ele apelida de “meu pai africano”, perdeu a vida.O que dá um certo alento e acalenta a possibilidade de se voltar a ouvir música por ali é que os ladrões não conseguiram roubar o piano de cauda que se encontra num canto do recinto. É nele que Walter se senta e afaga as mágoas. Também não conseguiram roubar o seu trompete favorito que agora está guardado a “sete chaves”.

 

“SIGAÚQUE” CANADIANO

Antes de os ladrões fazerem das suas naquele recinto, os apaixonados pela música de estilo Afro, aquela que mistura ritmos africanos com elementos do jazz, entre outros, já sabiam que mensalmente, no Sábado que calhasse entre os dias 16 e 22, haveria uma sessão de música ao vivo no Chamanculo.

Ao final de tarde desses Sábados, de véspera de pagamento de salários, dezenas de pessoas e viaturas afluíam pelas ruelas de terra batida e avermelhada em direcção ao espaço conhecido por “Sigaúque Project”, iniciativa inventada pelo canadiano Daniel Walter, a quem a população daquele bairro atribuiu o nome de Sigaúque.

A alcunha surgiu na sequência do título da música “Sigaúque”, que Walter produziu no auge dos ataques xenófobos ocorridos na África do Sul. Era a sua homenagem às vítimas moçambicanas daquele acto hediondo. Foi o falecido Jonas Luís que brincou chamando o autor de Sigaúque. No dia seguinte, Daniel Walter? Qual Walter? O bairro e os amantes do Afro feito no Chamanculo já o tinham baptizado.

A trajectória de Daniel Walter começa no Canadá, onde estudou música na Universidade de Otava (Ottawa em inglês) e por um intenso convívio com a música e cultura da África Ocidental durante a sua estada em Gana, mas com visitas frequentes aos países em redor.

Foi por ali onde criou uma empresa de comunicação e imagem que se dedicava à produção de peças de rádio e televisão orientados para a consciencialização sobre a prevenção de doenças e calamidades naturais. “Depois mudei-me para a África do Sul, mas não gostei por causa da violência e, três semanas depois, decidi mudar-me para cá”.

Como um aventureiro típico, passeou pelas casas de pasto onde regularmente há música ao vivo e foi numa dessas noites de convívio que conheceu alguns residentes do Chamanculo com quem conversou sobre a possibilidade de abandonar a vida de hotel para se fixar num bairro modesto onde pudesse desenvolver as suas actividades musicais e de comunicação e imagem.

Pouco depois comprei este espaço e comecei a construir um recinto que pudesse servir de casa, estúdio, lugar para aulas de música e também para espectáculos. Recebi muita gente aqui. A cada evento apareciam pessoas de todos os escalões sociais. Artistas, diplomatas, dirigentes, gente anónima… era muita gente

O que impressiona é que o local nem sequer possui luxos. Para além das pareces feitas em cimento, o tecto do palco é feito de palha e esteiras mas, mesmo assim, o recinto enchia até rebentar pelas costuras. Outra curiosidade dali é que o acesso era regulado por regras bairristas.

Por exemplo, os vizinhos pagavam 40 meticais e os forasteiros 200 meticais e eram os próprios espectadores que denunciavam quem não era dali obrigando-os a indicar em que ruas vivem, quem são os vizinhos de frente ou de trás, chefe do quarteirão, entre outros.

Sem os instrumentos musicais, o Sigaúque Project está estagnado e com ele pára a possibilidade de continuar a participar em eventos nacionais e internacionais como o festival de música e artes conhecido por Bushfire, que acontece na Suazilândia, o Festival de Cinema Moçambicano (que já aconteceu no espaço Sigaúque Project) entre outros.

Também foram prejudicados eventos música de orquestras europeias e norte-americanas que ali actuaram perante plateias diversas, incluindo em presença de figuras sonantes da música nacional, como Hortêncio Langa, Wazimbo, Stwart Sukuma, entre outros que “invadiam o palco” e protagonizavam electrizantes jam sassions.

Texto de Jorge Rungo
jorge.rungo@snoticicas.co.mz
 

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