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“MOÇAMBOLA”: Despediram-me por exigir condições para os jogadores

Por admin

À terceira jornada, com quatro pontos em nove possíveis, Abdul Omar foi afastado do comando técnico do Textáfrica de Chimoio, clube que ele próprio devolveu ao Campeonato Nacional de Futebol “Moçambola” seis anos depois. Em entrevista ao domingo, o treinador explica que foi por exigir condições de trabalho aos atletas que foi despedido e não houve rescisão de contrato porque nem sequer assinou qualquer documento.

A equipa do Textáfrica estreou-se no “Moçambola” 2017 com um empate caseiro frente à Associação Desportiva de Macuacua. Seguiu-se uma derrota por dois a zero na deslocação a Nacala frente ao Ferroviário e no jogo de despedida uma vitória por um a zero diante do Desportivo de Nacala na Soalpo.

Porque não é normal um treinador ser afastado disputados apenas três jogos e com esses resultados, conversamos com Abdul Omar para perceber a dimensão do seu afastamento e confessamos que saímos surpreendidos com algumas revelações. Melhor mesmo é seguir a entrevista.

Pode-nos explicar em que contexto assumiu o desafio de treinar o Textáfrica para esta época?

Tínhamos contrato com o clube assinado com a antiga direcção. Assim que a nova direcção tomou posse procurou saber da situação da equipa técnica. Os sócios e adeptos informaram que queriam continuar com os mesmos treinadores. O presidente ligou-me em Dezembro para dizer que contava comigo e respondi que não havia problema, até porque tinha contrato. Disse me que no regresso a Chimoio assinaria um novo contrato. Em Janeiro, eu em Vilankulo, recebi uma chamada do director desportivo questionando quando começávamos a trabalhar. Respondi que já devíamos estar a trabalhar, o importante era arrumarem-nos a casa e as passagens. No dia 06 de Janeiro contactou-me novamente a informar que estava tudo preparado e dia 8 eu já estava a apresentar-me no Chimoio.

Com que objectivo?

Essa questão coloquei à direcção e fui comunicado que a nossa missão era manter o Textáfrica no “Moçambola”. Preparamos todas as necessidades e entregamos à direcção. No dia 20 de Janeiro perguntamos sobre os contratos e nos trouxeram. São contratos que tinham apenas obrigações dos contratados, tudo estava a favor da direcção. Não previa qualquer indemnização em caso de rescisão de contrato. No contrato indicava-se que o clube devia pagar apenas dois meses de salário aos treinadores no caso de rescisão. Exigimos que nessa cláusula fosse estabelecido o período mínimo de três meses. Prometeram rever e até a minha saída de Chimoio, segunda-feira passada, não tinha recebido qualquer contrato para assinar.

Então como lhe pagavam os salários?

No final do mês de Janeiro, a direcção veio nos dizer que só podia pagar metade do mês porque começamos a trabalhar no dia 9. Respondi que não devia ser assim porque a época começava em Janeiro e depois de insistências concordaram, mas pagaram-me em prestações. Estava a começar um ambiente que eu não desejava.

Como pagavam aos jogadores?

Alguns jogadores foram pagos metade do salário, não questionei porque parte deles até tinha sido comunicada antes. Eu expliquei aos atletas que deviam aceitar perder este ano para depois ganhar e por isso muitos aceitaram representar o Textáfrica. Os jogadores do Textáfrica ganham salários da segunda divisão.

AMEAÇAS PARA TER SALÁRIO

Que lista de necessidades entregou ao clube?

Basicamente, foi uma lista de equipamentos. Um equipamento principal e outro alternativo. Dois pares de equipamento para treinos, botas, cronômetros, apitos, luvas para os guarda-redes e 25 bolas, porque as que usamos ano passado não tinham qualidade para o “Moçambola”. Apenas foram comprados dois pares de equipamento de jogo. Mas o grande problema foi eu exigir condições para os jogadores.

Jogavam sem as condições desejadas?

No mês passado muitos jogadores receberam cada 3500 meticais. Contestei a situação, mas nunca deixei de encorajar os atletas para empenharem-se ao máximo. No dia do jogo os adeptos não querem saber dessas dificuldades, querem a cabeça do treinador, não querem saber se os jogadores se alimentam, se descansam em condições ou não. No primeiro jogo com o Macuacua já ouvia nas bancadas que se este machangana não ganha que vá embora. Pedi por escrito e verbalmente à direcção, por várias vezes, para que melhorassem a situação dos atletas. O presidente vive em Maputo, por isso quando o director desportivo viajou, ficamos sem ninguém. O Vice-presidente nunca se aproximou da equipa. As condições de treino deterioravam-se com o tempo.

Como assim, se o relvado do Textáfrica está um tapete?

Não me deixavam treinar no campo onde jogamos porque dizem faltar água para regar a relva. Deram-me um campo que nem dá para pastar cabritos. No início treinávamos no campo do Ferroviário de Gondola, mas o clube ficou sem dinheiro para pagar e passamos a treinar no campo anexo, que não dá para nada. Passamos a treinar no campo do município, com um piso duro e cheio de buracos. Enquanto isso, eu insistia para que se cortasse a relva no campo principal. Não se fez isso e no primeiro jogo não nos exibimos ao nosso nível, apesar de termos estado melhor que o Macuacua e merecêssemos a vitória. Acabámos empatando porque o guarda-redes deles esteve muito bem. A relva era muito grande, a bola não corria. O empreiteiro abandonou a obra alegando que não lhe pagavam.

Finalmente cortaram a relva para o segundo jogo?

Depois de muitas insistências sem sucesso, reuni os jogadores iniciados e juvenis e começamos a tirar o capim. Veio a viagem para Nacala onde fomos jogar com o Ferroviário. Liguei ao Vice-presidente para saber do programa da viagem, se seguíamos ao aeroporto de Chimoio ou para Beira. Acusou-me de desestabilizar o grupo e insultou-me. Não respondi. Queriam que eu respondesse ao mesmo nível para me instaurarem um processo disciplinar. Percebi que a situação não estava boa por exigir salários dos jogadores.

Então só os treinadores tinham salários?

Também não tínhamos salários. Mas aguentamos. Quando me comunicaram que eu saia do clube, respondi que não havia problema mas deviam primeiro pagar me tudo o que me deviam. Disse lhes inclusive que de contrário a equipa não voltava a ganhar antes de me pagaram o que me deviam.

E pagaram? A equipa já pode ganhar?

Sim, pagaram-me os dois meses.

DESPEDIDO AO TELEFONE

Depois de empatar com Macuacua, perdeu com o Ferroviário em Nacala. Como geriu essa fase?

É verdade que perdemos em Nacala, mas jogamos bem. Dizem que no futebol não há sorte, mas penso o contrário. No futebol às vezes precisa ter sorte para ganhar. Faltou-nos a pontinha de sorte em Nacala, apesar de reconhecer que o meu colega Zulu está a fazer um bom trabalho. Quando voltamos insisti que se cortasse a relva para jogarmos o nosso futebol contra o Desportivo de Nacala. Na véspera do jogo tivemos que não treinar para ir ajudar a cortar a relva, porque os técnicos que vieram não percebiam como se faz. Alguns membros da direcção já não falavam comigo. Eu tinha pedido estágios para a equipa a partir das sextas-feiras, e disseram-me que o estágio devia começar sábado à tarde, depois dum treino. Respondi que isso seria concentração, não estágio. Isso também criou transtornos na equipa. Por duas vezes, no tal estágio, os jogadores dormiam a dois na cama casal. Eu disse que não devia ser assim. Cada atleta devia ter sua cama, podendo ser no mesmo quarto. Não precisava ser uma cama casal. Sou um treinador exigente para com os jogadores e para isso eles devem ter o mínimo. Num bom relvado, jogamos bem e vencemos o jogo. No mesmo domingo, no final da partida, disse aos jornalistas que não sabia se continuava no Textáfrica. Afirmei isso porque já havia rumores de que pessoas do Textáfrica em Maputo já haviam acertado com Nacir para me substituir. Depois do jogo nenhum dirigente veio ao balneário cumprimentar os jogadores. Era só eu e os jogadores.

Mas você foi mesmo despedido no dia que derrotou o Desportivo de Nacala?

Foi mesmo no domingo à noite. O presidente ligou-me cerca das 21 horas para dizer que a direcção reuniu-se e decidiu afastar-me. Limitei-me a perguntar qual era o meu erro e respondeu-me que eu não estava bem com o Vice-presidente e pronunciei-me mal na comunicação social.

Independentemente de tudo, você está a habituar-nos a não terminar seus contratos. O que se passa afinal?

Também quero ir ao fim dos meus contratos, até porque não tenho medo de nenhum clube em Moçambique. Gostaria de ter ficado numa equipa até ao fim, mas as circunstâncias não o permitiram. No Chingale a situação foi semelhante. Com a antiga direcção do Textáfrica não tive problemas por isso conseguimos apurar a equipa ao “Moçambola” depois de seis anos. Diga-me como terminar campeonatos ou contratos com direcções que não ajudam?

Não tem a ver com o seu lado de superstição de que tanto se fala?

O Yassin Amugi é que me deu esse nome em Vilankulo. Na Soalpo apareceu aquele cabrito….e eu disse que o Macuacua iria primeiro jogar com Abdul Omar e só depois com o Textáfrica. Estou a fazer o meu trabalho. Contra o Sporting da Beira eu disse que iria levar o campo da Soalpo a Beira e os adeptos foram em massa apoiar-nos e apuramo-nos ao “Moçambola”. Levei o campo do Chimoio para Beira.

Três clubes numa época

Ano passado, Abdul Omar quase cometeu a proeza de apurar duas equipas ao “Moçambola”. Na zona sul ficou em segundo lugar no comando técnico do Matchedje e no centro do país venceu a fase regional com o Textáfrica. Isso tudo num ano que tinha iniciado a época com o Chingale de Tete.

Ano passado, você treinou três equipas numa época. Como conseguiu esse registo invulgar?

Depois de treinar o Chingale e sair naquelas condições, com salários e prémios por receber, quase em simultâneo, o Matchedje e o Textáfrica solicitaram-me. Coloquei os dois presidentes a conversarem porque era possível terminar o campeonato da zona sul e seguir para Chimoio treinar o Textáfrica. Podia apurar dois clubes no mesmo ano ao “Moçambola”.  Fiquei três jogos no Matchedje, que já tinha uma boa equipa preparada pelo Míster Hilário e tem bons jogadores até hoje.

Perdeu com o seu Matchedje em Macuacua num jogo de muita confusão.

Quando chegamos a Macuacua eu disse aos dirigentes do clube que já tínhamos perdido porque estava tudo minado. Aos dez minutos marcamos um golo limpo, num remate de longe, e foi anulado. A seguir foi assinalado um penalte inexistente e sofremos golo. Na segunda parte empatamos através dum auto-golo e só por isso foi assinalado golo. Marcamos mais um e foi anulado. O pior de tudo chegou quando um nosso avançado se isola, finta o guarda-redes e na linha do golo um defesa defende claramente com as mãos e não se marca penalte e a devida expulsão conforme as regras de arbitragem. Depois foram aqueles protestos dos militares e a agressão do arbitro. A seguir ganhamos ao Ferroviário de Gaza e no fim perdemos na Moamba com um golo inacreditável, num jogo claramente viciado. Terminamos em segundo lugar. No sul fiquei em segundo e no centro fui primeiro classificado.

Presidente queria

um Textáfrica à Barcelona

Dizem que você ofendeu a direção. Quer comentar?

Pedir condições aos jogadores é ofender a direcção? Lembra-me o Faife que foi despedido do Costa do Sol por falar a verdade. Não lavei a roupa suja fora do clube. Procurei a direção por várias vezes. Quando empatamos com Macuacua todos vieram ao treino na segunda-feira seguinte. Eu tinha prometido os três pontos porque nós jogávamos melhor que o Macuacua e confiava na capacidade dos meus atletas.

O que vieram fazer os membros da direção no treino da segunda-feira?

O presidente quis saber do padrão do jogo da equipa. Respondi que jogamos a bola de pé para pé, rente a relva, atacando a baliza adversária para marcarmos golos. Entrou no balneário e perguntou aos jogadores se tinham jogado bem. Todos levantaram a mão para dizer que não jogamos bem. Então ele disse que queria que jogássemos à Barcelona, foi o primeiro dia que conhecemos o presidente. Ele diz que foi formado em gestão na Espanha, então ia sempre assistir os treinos do Barcelona. Respondi que nenhuma equipa em Moçambique pode jogar à Barcelona em dois meses. No meu entender, se o treinador não faz bem o seu trabalho, devia ser chamado para justificar-se perante a direcção. Nas terças-feiras tínhamos reuniões técnicas para discutir os jogos, e ai nunca compareceu qualquer elemento da direcção.

Dois frangos para 15 jogadores

Fala muito de condições para os jogadores. Afinal o que falta aos jogadores do Textáfrica?

Os jogadores são pessoas, arrendam casas, são pais e têm obrigações. Eu visitava os jogadores no lar e em suas casas e notava que passavam por dificuldades. Pessoas do clube iam a loja dum patrocinador e levantavam 25 frangos e ovos para os atletas e só quinze frangos entravam no lar. Preparavam dois frangos para quinze jogadores. Como eu podia me calar? Nos dias dos jogos não havia lanche para os atletas. Os jogadores nunca lancharam depois dos treinos. Não tinham salário para pagar transporte e alguns viviam em Gondola, por isso chegavam tarde. Como eu cobraria esses jogadores? Como cobrar pontualidade a jogadores que não têm dinheiro para transporte? Estou a falar de jogadores que dão o seu máximo, então eu tinha que me sacrificar com o pouco que tenho. Expliquei isso à direcção.

Nunca foi atendido?

 

Nunca. E mesmo em situações de aflição não tive o devido apoio. Na véspera do jogo com o Macuacua, precisamente na sexta-feira, fui a uma loja desportiva de Chimoio dum nigeriano levantar cinco pares de botas com promessa de pagar no final do jogo. Cheguei a acordo com o filho do dono da loja. Cada par custava 1250 meticais. Total era 6250 meticais. Quando o filho transmitiu ao pai, dono da loja, este não concordou e veio ao clube exigir-me o valor, com ameaça de levar-me à esquadra. Foi a caminho da esquadra que pedi apoio da minha irmã e chegou a tempo de irmos a ATM levantar o dinheiro e pagar as botas.

Texto de Custódio Mugabe

custodio.mugabe@snoticicas.co.mz

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