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Jogávamos com raiva e determinação

Por admin

Luís Ássamo, 48 anos, futebolisticamente conhecido por Gito, designação retirada do diminutivo Luigito de Luís, diz ter terminado a carreira muito cedo por culpa do treinador Xadreque 

Macuacua, quando se sentia mais maduro e experiente, numa altura que já não existiam no país rematadores temíveis como Chababe, Calton, Almeida, Pelembe, Aniceto Mula e Ramos Siquice. Recorda momentos em que no Estrela Vermelha, o único clube que representou, não havia prémio de jogo, mas se jogava com raiva e determinação. Esteve para ir jogar no estrangeiro, concretamente na África do Sul, mas teve que obedecer com rigor a politica do então regime governamental vigente no país, que impedia “exportação” de jogadores moçambicanos. Da sua carreira, lhe marcou mais o dia em que defendeu quatro penaltes, em jogo da taça de Moçambique, na cidade da Beira.

 

Como tratá-lo, futebolista ou guarda-redes Gito?

Guarda-redes Gito.

Sempre jogou a guarda-redes?

Nunca joguei fora da baliza. Eu era adepto do Ferroviário de Maputo, clube que tinha bons guarda-redes, casos de Carlos, Abrassardo, Napoleão, Rafael, mais tarde Isaías, que depois foi meu colega no Estrela Vermelha. Lá no bairro e na escola eu os imitava. Gostava que fosse libero, mas os meus colegas diziam para ficar na baliza.

Nasceu aonde?

Nasci em Maputo, no Bairro de Urbanização, onde emergiram nomes de futebol como Doença, Dover, Feliz, Malua, Sitoi, Nicolau, Luís Mahumane…

Como é que chega ao Estrela Vermelha de Maputo?

Apareço aqui no Chego no Estrela em mil novecentos e oitenta e um (1981). Eu preferia jogar pelo Académica, mas os meus, que já haviam feito testes, disseram-me que primeiro tinha que tentar sorte no Estrela. O treinador Joaquim de Carvalho (não confunda com o da Conseng) gostou de mim e mais outros dois. Nunca mais sai do Estrela Vermelha até hoje que sou director técnico. Fiz uma época no escalão de juvenis. Aos dezassete anos o “mister” alemão Skaba gostou das minhas qualidades e me puxou para a equipa de seniores. Eu tinha medo de me juntar aos seniores e fugia dele. Eu alegava falta de equipamento para treinos, então, ele me dava o seu fato-treinos e punha-me a treinar com Ozias, Isaías. Era o mais novo da equipa. A outra criança que Skaba gostava de ver jogar era Jaime, outra grande referência do Estrela Vermelha.

 

Difícil integração

 

Foi fácil integrar a equipa sénior?

Naquela altura não era fácil conseguir ter lugar numa equipa. Havia jogadores de titularidade indiscutível. Quem fosse novo era preciso esperar pelos jogos de pouco interesse.

Quando é que tomou conta da baliza do Estrela Vermelha?

Aos poucos fui sendo guarda-redes promessa. E mil novecentos e oitenta e três já jogava contra Maxaquene, Desportivo, Ferroviário. Não podia jogar sempre porque Skaba alegava o factor experiência. Nós tínhamos jogadores como Miguel, Aloi, João e Ricardo a quem o treinador pedia para que cada um sugerisse o onze inicial ideal. O meu nome constava como guarda-redes e me diziam que apostavam em mim, mas Skaba dizia ele muito bom, só não ter experiência. Quando me dava oportunidade demonstrava que era bom, mesmo sem experiência.

 Eu chegava cedo aos treinos e era o último a sair. Não tínhamos treinador específico de guarda-redes. Pedia aos meus colegas que chutassem a bola para mim, desse modo endurecia. Sempre admirei Nuro Americano, guarda-redes do Maxaquene, quer pelas suas qualidades, quer pela dedicação. Nas quartas-feiras tínhamos jogo de treinos com o Maxaquene. Eu pedia para chegar cedo de modo a aproveitar fazer exercícios de aquecimento com o meu ídolo Nuro Americano. O primeiro par de luvas foi me oferecido por Nuro Americano durante uma sessão de treinos. Mais tarde pedi ao General Jacinto Veloso luvas e trouxe-me de Portugal três pares. Antes jogávamos sem luvas e que fazia doer as mãos, pois abolas não eram leves como as de hoje.

Quando passa efectivamente a guarda-redes sénior?

 Afirmo-me guarda-redes em mil novecentos e oitenta e quatro. Fui convocado para a Selecção Nacional sub-19, juntamente com Chiquinho Conde, falecido Lázaro, Jaime e muitos outros bons jogadores da época. A equipa técnica era composta por Altenor Pereira e Arnaldo Salvado. Jogamos contra a Zâmbia. Sofri dois golos e não marcamos nenhum. Tivemos estágio no Hotel Turismo. O jogo era para as quinze horas e o almoço as dez horas, na Cervejaria Nacional, que consistiu no pão molhado com água morna, mergulhado no molho de repolho e pedacinhos de carne. Regressamos ao hotel para o descanso. Os meus colegas de quarto eram o falecido Landocha e Chiquinho Conde. Todos apanhamos sono profundo. Veio o homem da federação nos acordar para o campo e perguntamo-lo se ainda havia jogo. Os três sentados nos queixávamos de fome. Enfim, mesmo esfomeados fomos ao Estádio da Machava jogar e perder por dois a zero.

Havia muita fome!

Sim havia.

E como as coisas andavam no Estrela?

O Estrela Vermelha foi vice-campeão em mil novecentos e oitenta e dois. Em oitenta e seis fomos à final da Taça de Moçambique com Maxaquene, já campeão nacional. Fomos derrotados, mas representamos o país na Taça dos Vencedores das Taças de África.

 

Preso no Estrela Vermelha

 

Porque só jogou pelo Estrela Vermelha?

O Estrela Vermelha formou-nos homens. Deu-nos a possibilidade de estudar com um subsídio especial, mais do que salário mínimo dessa altura. E nos deu emprego que perdura até hoje.

Qual?

Acha que importa dizer?

Não gosto de ser perguntado. Pronto, não diz. Já agora, nunca passou por momentos em que pode dizer futebol não presta?

Eu era muito cobiçado pelos clubes e não conseguia sair do Estrela Vermelha. Clubes como Costa do Sol, n Desportivo, Maxaquene e Matchedje me prometiam melhores condições.

Estava preso no Estrela Vermelha. É isso?

Sim, estava preso no meu clube. No Estrela inicialmente não era pago contrato nem tinha prémio de jogo. Tivemos que fazer uma batalha dura para fazer ver ao clube a necessidade de recebermos prémio de jogo. Durante o jogo quando fizesse intervenções incríveis, os adversários vinham procurar saber quanto recebia de premio e eu mentia que eram quinze mil meticais. Não recebia nada. Eles é que recebiam dez, quinze, vinte, por ai. Nós éramos fortes psicologicamente. Em oitenta e três tivemos um jogo com o Maxaquene, com o nosso campo repleto de gente. Houve boa receita. O secretário-geral, o falecido Pedro Mahumane, confirmou ter entrado muito dinheiro pela bilheteira. Então, criamos uma comissão para sensibiliza-lo da necessidade de nos dar prémio, porque havia dinheiro de receita de jogo que havíamos ganho. Ele acatou ao nosso pedido e nos deu prémio de dois mil meticais a cada jogador. Hoje os jogadores reivindicam antes de jogar. Nós o fazíamos depois. Aquele jogador tinha mentalidade diferente do actual.

Aqui está mais um a querer dizer que nós jogávamos por amor a camisola!

É isso mesmo. Um outro episódio aconteceu em mil novecentos e oitenta e quatro, outra vez depois de um jogo contra o Maxaquene, desta vez a contar para a Taça de Moçambique. Batemos os “tricolores” treinados por Joaquim Meirim. Foi a única derrota do Maxaquene naquele ano, a noite, no Campo do Desportivo.

Estou curioso em saber o que aconteceu da vossa parte. Negaram receber prémio?

Já recebíamos prémio, mil e quinhentos meticais em jogo do campeonato nacional, e dois mil meticais em jogo de Taça de Moçambique. No fim de noventa minutos estávamos empatados zero-a-zero. Jogamos mais trinta minutos, continuamos empatados a nulo. Fomos às grandes panalidades. Defendi dois penaltes do falecido Manuel. No dia seguinte sentamos e decidimos dizer a direcção que havíamos jogado cento e vinte minutos mais o período de marcação de penalidades, ao que devia aumentar o prémio. Criamos uma comissão que com muito respeito se dirigiu à direcção a manifestar a nossa preocupação. O secretário-geral de novo foi compreensível e aumentou o valor de prémio.

 

Avançados actuais

facilitam guarda-redes

 

 Quando e como termina a sua carreira?

A minha carreira termina em mil novecentos e noventa e quatro. O que a ela marcou foi um jogo das meias-finais da Taça de Moçambique contra Matchedje da Beira, na Beira, em oitenta e seis, quando defendi quatro penaltes. Jogamos cento e vinte minutos, numa altura em que não havia muita diferença entre o que se considerava equipas pequenas e o que se considerava equipas grandes. O nosso futebol estava no auge.

Defendeu quatro penaltes, por mérito ou por demérito dos avançados contrários?

Eu defendi muitos penaltes e sofri poucos. Havia jogadores que respeitava porque os seus chutos eram difíceis de defender, casos de Chababe, Almeida Ubisse, Pelembe…Posicionavam-se bem diante da bola e da baliza e estudavam muito a movimentação do guarda-redes.

Nunca defendeu penalte de nenhum deles?

Não. Dos outros, como Mabjaia, Nelinho, Arnaldo, Fumo, eu defendia. E havia jogadores que quando estivessem isolados era difícil evitar seus golos, casos de Calton, esse normalmente fuzilava certeiro, Aniceto Mula, também era muito perigoso. Quando um deles aparecesse num frente a frente, qualquer guarda-redes sabia que tinha uma missão quase impossível, era golo ou era sofrimento a mais.

Se hoje estivesse a jogar teria as mesmas facilidades e dificuldades de ontem?

Honestamente falando, não vejo no nosso futebol avançados que dão trabalho aos guarda-redes. Não menosprezo a ninguém, mas a verdade é essa, não vejo ninguém que incomode guarda-redes. Naquela altura, eram quase todos os jogadores que queriam marcar golos e o guarda-redes tinha que estar sempre atento para evitar que qualquer um marcasse. Por exemplo, Ramos Siquice era um médio que não olhava para a bola e em progressão chutava com qualquer dos pés. O guarda-redes tinha que olhar para a bola e não para ele. Se não visse a bola a partir, a recolhia dentro das redes. Tínhamos Almeida, no Maxaquene, e Ali, no Desportivo, que chutavam bem à meia distância. Tinhas o Vicentinho do Ferroviário, o Manuel e Ricardo do Estrela Vermelha, igualmente bons rematadores à meia distância. Todas as equipas tinham homens visíveis para cada tarefa, todos à busca de golo. Francisco Ramos, no Ferroviário, Sitoi, no Desportivo, Elias, no Maxaquene, Jorge, no Costa do Sol, eram grandes jogadores que não deixavam à vontade os guarda-redes, que também eram muito bons. Jogava-se com raiva, garra, entrega e determinação.

 

Macuacua encurtou

a minha carreira!

 

Gito, deixou de jogar porque já se sentia velho ou por alguma circunstância alheia à sua vontade?

Chega certo momento que passamos a não agradar algumas pessoas. Deixei de jogar quando me sentia com maturidade e experiência. Tinha tudo para melhor provar que era bom guarda-redes. A geração de avançados que ia enfrentar não era fogosa como a que já me referi. Ia passear a minha classe, diante de jogadores como Matuca, Macamo, Nelinho, Cachela.  

Deixou de jogar porque já não tinha adversários perigosos. É mesmo isso?

Fui forçado a terminar a minha carreira. Algumas pessoas do clube estavam cansadas de me verem alaranjado. Houve mudanças no Estrela Vermelha. Apareceram dirigentes que não conheciam o que era o Estrela Vermelha. Não cito nomes.

Isso começa em que ano?

Essa geração de dirigentes chega no princípio da década de noventa. Começa por dispensar a prata da casa, precisamente quando ascendemos ao “Nacional”. Dispensaram o falecido João Ouna, Ricardo, Boaventura. Eu fiquei. Em mil novecentos e noventa e um negoceia-se a minha ida para o Costa do Sol. O que ia receber no Costa do Sol era muito inferior ao salário que tinha. Treinei no Costa e Sol e voltei. O negócio da minha transferência já tinha sido fechado por algumas pessoas do Estrela Vermelha. E o meu regresso para elas era uma facada nas costas, dai não me olhassem com bons olhos. Continuei a jogar. Em noventa e três ganhamos o campeonato da cidade e em noventa e o acesso ao “Nacional” do ano seguinte. Em plena sessão de treinos, o treinador pediu que os jogadores lhe dessem propostas de contrato.

Quem era o treinador?

Xadreque Macuacua. Ele levaria as propostas à direcção. Eu, como filho da casa, com préstimos reconhecidos, achei que não devia ser tratado daquela maneira. Eles sabiam como falar comigo para esse efeito, assim como sabiam que jogara muitos anos sem contrato. Fiquei revoltado e Macuacua começou a afastar-me do plantel, sem motivos palpáveis. Macuacua entendia que eu estava a instigar os restantes jogadores a pedirem muito dinheiro de contrato. Enganava-se, porque eu acabei apresentando a mais baixa proposta. Mas ele já tinha agendado o meu afastamento. Fui ter com o presidente, Hélder, e o Secretário-geral, Cândido Coelho. Disse-lhes que não se podia brincar com a minha pessoa e que houvesse frontalidade por parte deles. Então, fui dispensado da equipa e eu dispensei-me do futebol. Fiquei sem jogar. Em noventa e cinco sou convidado para a escola guarda-redes, onde apareceu Hilário da Conceição e outros para formação de treinadores de guarda-redes. Ficou treinador de guarda-redes e adjunto treinador da equipa de juniores, fazendo dupla com Taquir. Agora sou director do gabinete técnico.

Não. A nossa droga era a raiva com que jogávamos a bola.

Tem alguma recordação da sua passagem pela Selecção Nacional?

Estive numa Selecção Nacional de que fazia parte os melhores guarda-redes de Moçambique, Nuro Americano e Filipe Chissequere. Também estive na de “Esperança” com o falecido David e Rui Évora, quando veio cá Beleneses.

Alguma vez foi tentado a ir jogar no estrangeiro?

O sul-africano Jomo Sono não é de hoje. Veio cá para levar a mim e Jaime, em uma operação secreta. Fomos levados de Mercedes para o Bairro Triunfo, onde fomos dialogar numa casa luxuosa. Tudo estava preparado para que no dia seguinte seguíssemos para África do Sul. A tarde, Jomo Sono veio assistir aos nossos treinos de forma disfarçada, já que só nós o conhecíamos. Depois perguntou-nos o que queríamos para seguir com ele. Lá já estavam Pelembe, Cadango e outros, que haviam saltado o arame, e ele sugeria-nos seguir a mesma via, o que negamos. Eu dizia que não podia deixar a minha mãe sozinha, o mesmo argumento utilizado por Jaime. O nosso serviço já sabia. Até fomos exibidos fotografias que relatavam boa vida dos que estavam lá.

Actualmente há bons guarda-redes?

Não. Não. Os clubes não dedicam muita atenção à formação de guarda-redes. Há indivíduos que pensam que treinar guarda-redes é fácil. É muito difícil. Há guarda-redes que foram formados aqui no Estrela Vermelha que não encontraram treinamento adequado noutros clubes e estão sempre em baixo de forma. Aqui se formam bons guarda-redes. Hoje o país depende só de Kapango para a Selecção Nacional, situação que devia ter sido evitando se se priorizasse a formação de guarda-redes. Vamos continuar assistir às cambalhotas do Kapango, numa selecção onde devia haver concorrência, deixando de ser equipa dos que não jogam nos seus clubes. A selecção não pode ser dos guarda-redes que não jogam nos seus clubes. O guarda-redes só é bom quando joga.

Nunca foi comprado para fazer perder a sua equipa?

No nosso tempo não havia isso. Nunca fiz perder Estrela Vermelha. Até já joguei num fim-de-semana em que o meu pai a enterrar.

Vocês também bebiam muito como os jogadores de hoje.

Este Estrela ainda vai longe?

Ah…Eu penso que sim. Tem um presidente, Luís Manhique, muito dedicado à causa do Estrela Vermelha, com a vantagem de ter sido jogador ao mais alto nível aqui no clube, pelo que, conhece muito bem o balneário, o que lhe permite ser flexível na resolução dos problemas que são apresentados. Ele não é como os dirigentes que caem de pára-quedas nos clubes.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

   

 

 

 

 

 

 

 

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