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Já não acreditava nesta homenagem!- José Filipe Magalhães

Por admin

O dia 20 de Maio de 2015 entrou para a história de José Filipe Magalhães, tal como o dia 16 de Janeiro de 1938, quando o Bairro da Mafalala, em Maputo, passou a tê-lo como novo morador. A homenagem lhe concedida pela Universidade Eduardo Mondlane o fez renascer no panorama desportivo de Moçambique, o que para si fica como a maior recordação da sua vida.

Mas mais do que um simples reconhecimento à sua pessoa pelo brilho que teve no atletismo, atleta do ano de Portugal e colónias em 1967 e atleta do Século em Moçambique, Magalhães acha que é sinal de que no país já começa a haver respeito pelos atletas, um bom incentivo para os jovens apostarem na prática desportiva. 

A entrevista ficou marcada para dia seguinte ao da homenagem. Tínhamos que ir ao seu encontro muito cedo, porque tinha compras por fazer antes de seguir para o Aeroporto Internacional de Maputo donde partiria de regresso à cidade de Nampula, onde actualmente reside.

Cumprimos com o combinado. As 6 horas chegamos ao hotel onde estava hospedado juntamente com a sua filha Sandra. Chamado a receber o seu primeiro hóspede do dia, o veterano (77 anos) não atrasou em descer até a sala de espera. A entrevista durou quarenta e cinco minutos, das 6,15 horas às 7.00 horas de 21 de Maio.

Bom dia. Como dormiu?

Bom dia. Dormi bem e muito feliz pela homenagem. Sabe, há coisas que a gente não espera e quando acontecem se admira e perde sono de tanta alegria.

Não está arrependido em ter apostado muito no atletismo?

Foi o que pude fazer como trabalhador dos Caminhos de Ferro de Moçambique. Meu pai era Ferroviário. Eu era Ferroviário. Meus irmãos eram Ferroviários. Em 1953 fui admitido nos caminhos-de-ferro, onde comecei a trabalhar em 1954. Primeiro fiz futebol e depois ingressei no atletismo. Optei pelo desporto fácil, que é o atletismo. Não tinha muito acesso ao futebol. No atletismo comecei a aparecer com boas marcas e todos começaram a ficar satisfeitos. Fui o primeiro a fazer boa marca em Portugal. Fiquei no lugar de campeão de Portugal. Eu e doutor Manuel, guarda-redes de futebol, fomos as primeiras figuras de sempre de Portugal. Você quando é de modalidade individual tem mais valor, porque é só você a representar o país. Não há dependência um de outro como nas modalidades colectivas.

Quando corria sentia que estava a servir o colono?

Tinha ganho o estatuto de representar Portugal. E não tinha preconceito de o fazer. Quando ia fora era para representar Portugal (e suas colónias) e não a Moçambique nem Ferroviário.

Pelo que fez nas pistas de atletismo, considera-se combatente na libertação de Moçambique?

Não tinha noção política da coisa. Todos, eu Eusébio, Coluna e outros, éramos pelo desporto ao mais alto nível. Eusébio, com o qual tenho relações familiares, jogava, eu corria. Agente se encontrava e se abraçava. Éramos dois grandes atletas moçambicanos a representarmos Portugal. Duas grandes figuras do mesmo bairro, Mafalala. Eles de futebol ficavam lá em Portugal e eu ficava cá. Sempre me perguntavam porque eu não ficava lá. Por vezes ia lá por um ano, em gozo de licença de trabalho, o que era alegria para todos que lá viviam.

Quando deixou de correr?

Deixei de correr em 1970. Agora tenho 77 anos. E é agora que estou a ser reconhecido. Agora, todos os atletas vão ser reconhecidos. Tenho dez irmãos a viver em Portugal para onde tenho dificuldades de ir os visitar. Nenhum praticou desporto.

Esteve sempre perto do Ferroviário de Maputo?

O Ferroviário nunca me abandonou, mas nunca se aproximou muito de mim. O Governo da Frelimo e a federação começam a reconhecer que existem pessoas ainda vivas que deram muito pelo desporto deste país.

Diz isso porque já foi homenageado?

Este evento, esta homenagem vai trazer respeito aos outros, como Lurdes Mutola.

É tudo que precisava?

Eu sou pobre. Não tenho salário. Recebo reforma que não dá para nada. Tenho mulher doente e eu também. Se não abano quando ando é porque faço exercícios físicos.

Nosso atletismo

carece de incentivos

Tem acompanhado as actividades do atletismo nacional?

O atletismo moçambicano está abandonado. É preciso levantar o moral do atleta com incentivos. Nada de discurso de amor à camisola. Isso foi no connosco no tempo colonial. Podemos é pedir ao atleta que corra com amor. Ele precisa de receber incentivo para levantar o seu moral, assim como o treinador e o dirigente. Veja só, a oferta que recebi nesta homenagem fica como a minha maior recordação de sempre. Foi um grande apoio da minha vida. Primeiro foi um amigo de Portugal, Victor Pinto, a angariar apoios para mim. E seguiu esta festa de arromba vestida de ofertas muito significativas.

É possível extrair outros Magalhãeis nestes miúdos que fazem o nosso atletismo de actualidade?

Eu também não era conhecido. Tinha força de vontade. Tinha treinador que era “mau”, que me queria ver sempre a treinar, em forma e a ganhar. Graças ao poder de força e de vontade venci. Tenho verificado que se despende mais dinheiro para o futebol. No atletismo não se investe nada. Não se moraliza um atleta com boca. E a moralização deve começar do clube. Se continuar a não existir o nosso desporto vai morrer. No dia da competição se deve incentivar o treinador. É isso que mais precisa o nosso atletismo, caso contrário vai morrer.

Em Nampula tem estado perto do atletismo?

Costumo dar algum apoio no treinamento. Agora que me viram a receber cheques todos estão contentes, certos de que já posso ter mais força para os apoiar.

INÍCIO TARDIO DA CARREIRA

Consta que já estava cansado de esperar por esta homenagem. Como se sente agora?

Eu já não esperava por estava festa que começou a ser preparada o ano passado. Com estes apoios começo a ficar gordo.

Como foi a convivência com António Repinga?

Eu apanhei Repinga lá em Portugal. Foi o primeiro a ir a Portugal, em preparação para a qualificação aos Jogos Olímpicos. Era o maior fundista. Não foi aos Jogos Olímpicos porque não teve sorte. Corria 40 quilómetros em duas horas e uns vinte minutos. Sabotaram-lhe para não fazer tempo de qualificação para os Jogos Olímpicos. Era bom atleta.

Em que especialidade de atletismo Moçambique deve apostar mais?

Em qualquer especialidade se pode singrar, desde que haja boa preparação. O desporto deve começar na escola. É na escola onde as marcas e os tempos do futuro atleta devem começar a ser registados para um acompanhamento contínuo. Lurdes Mutola foi o que foi nas pistas porque passou da escola do atletismo dos Estados Unidos de América, onde o desporto é encarado com seriedade e respeito.

É verdade, nessa altura nem tínhamos pistas de tartan…

Olha, fui visitar a pista do Estádio do Zimpeto e disse para mim: se eu tivesse corrido numa pista igual teria maravilhado mais o Ferroviário, Moçambique, Portugal e o mundo. Aquilo é pista ao nível da Europa. Nela não se corre para trás como na pista de cinza.

Onde corria nos seus tempos?

Corríamos na pista que depois da independência passou a chamar-se de Continuadores. Mas os meus recordes alcancei em Portugal, em pista meio tartan, onde não era a sapatilha que andava para trás, era você para frente.

O que mais lhe agradou no atletismo?

O que mais me agradou foi correr bem e ganhar. Só comecei a fazer bons tempos quando fui para Portugal, onde tinha adversários. Já tinha trinta anos de idade. Apareci no atletismo tarde. Se tivesse aparecido aos vinte anos teria feito mais. Boa idade para prática de desporto é antes dos vinte anos, entre os quinze a dezasseis anos.

Que acha da relação entre actuais jovens e o desporto? 

Hoje o desporto dos nossos jovens é fumar. Eu nunca fumei. O fumo prejudica a saúde. Bebo um pouco de quando em vez. Chega. Vou registar que depois de reconhecido pelo meu país você foi o primeiro jornalista a madrugar para uma grande entrevista. Afinal, ainda sou uma figura importante. Obrigado! Obrigado! Fica este aperto de mão para sempre.    

Livro, prémios e discursos

A cerimónia de homenagem a José Filipe Magalhães, muito concorrida pela velha guarda do desporto nacional, foi um marco na história desportiva de Moçambique e trás à ribalta a necessidade de se reconhecer os ídolos nacionais ainda vivos.

A ele foi dedicado um livro sobre o seu percurso desportivo intitulado José Filipe Magalhães: Uma vida épica no atletismo. A obra é da autoria de Domingos do Rosário, investigador Sociocultural Principal, Mestre em Sociologia, Mestre em Desenvolvimento Rural; Cremildo Gonçalves, Mestre em Gestão do Desporto e Actividades Físicas ligadas a Saúde, Lazer e ao Turismo Desportivo, Mestre em Saúde Pública – Promoção e Desenvolvimento de Educação à Saúde e docente da cadeira de instalações desportivas e recreativas na ESCIDE, e Bonomar Adriano Macuácua, licenciado em História, docente da cadeira de história do desporto na ESCIDE, onde é director do curso de Ciências do Desporto.

Na recolha de dados sobre o recordista de Moçambique (na altura província ultramarina de Portugal) dos 100, 200 e 400 metros e recordista nacional (de Portugal e suas colónias) dos 200 e 400 metros, também recorreu-se ao arquivo individual de Aurélio Le Bon, antigo presidente da Federação Moçambicana de Atletismo.

Para além do livro, a UEM, em parceria com o Fundo de Promoção Desportiva, ofereceu ao homenageado dinheiro no valor de 400.000,00Mts, em cheque, e alguns objectos. O outro valor monetário foi-lhe atribuído pela Academia de Xadrez da Matola, na pessoa do seu patrono, Domingos Langa, na quantia de 10.000,00Mts. O Ferroviário de Maputo, o único clube que representou, ofereceu equipamento completo para os seus tempos de lazer.

“É com base no princípio de reconhecimento de iniciativas de cidadãos pelos seus feitos meritórios em prol de uma larga base social, que homenageamos hoje José Filipe Magalhães, na sua qualidade de atleta e talento excepcional, mas também pelo impulso que deu à histórica luta de resistência contra o colonialismo português”, sublinhou o ministro da Juventude e Desporto, Alberto Nkutumula.

“Reconhecemos a obra de um homem, cujo valor transvaza as fronteiras nacionais. A sua história se confunde com a história do desporto em Moçambique. Seu exemplo deve ser seguido pelos jovens”, Orlando Quilambo, reitor da UEM.

“Foi ele quem acendeu a pira olímpica na inauguração do Estádio da Machava, em 1968”, Marcelino Macome, presidente do Comité Olímpico de Moçambique.

“Esta homenagem se enquadra nas actividades de investigação científica da Universidade Eduardo Mondlane”, Maria Lurdes Munguambe, directora da Escola Superior de Ciências do Desporto (ESCIDE).

Estranhamente, o presidente da Federação Moçambicana de Atletismo (FMA), Shafee Sidat, não se fez presente, embora a instituição que dirige tenha sido representada pelo respectivo secretário-geral. Para uma cerimónia tão significante como aquela, era de esperar que o presidente da FMA adiasse todos os seus compromissos para estar presente, nem que fosse por um minuto.

Quem não minimizou a cerimónia foi o veterano da Luta de Libertação Nacional, Marcelino dos Santos, que no mesmo dia completava 86 anos de idade, ao que mereceu parabéns dos convidados.

Esteve também presente o político Manuel Tomé, ex-deputado e ex-secretário geral da Frelimo, actualmente membro do Comité Central do partido. Estas duas presenças foram enaltecidas pelo ministro Alberto Nkutumula.

Reconhecimento muito merecido

– Consideram os desportistas

Todos os desportistas presentes na homenagem a José Magalhães consideraram a iniciativa da UEM de muito importante para o desporto nacional por marcar início de nova maneira de encarar os actores desportivos que se vão destacando por geração, sem que para o efeito se espere pela sua morte.

domingo ouviu três ilustres figuras do desporto que naquela tarde deixaram todos os seus afazeres para juntos com os outros dizer “obrigado José Magalhães.”

Para João Carlos da Fonseca Txuza, ex-presidente da Federação Moçambicana de Atletismo (FMA), a homenagem foi “excepcional, consensual e merecedora.” E gostaria que os outros Magalhãeis “que andam por ai fossem recordados”.

Txuza disse que ele e Cremildo Gonçalves, donos da ideia de homenagear os “heróis” do desporto quando ainda vivos, já têm em carteira outros nomes dignos de reconhecimento.

“Outras entidades da nossa sociedade que apoiem as próximas iniciativas”, apelou Txuza.

Martinho de Almeida, antigo jogador, treinador de futebol, disse que “achei muito engraçado. Muito bom. Dou parabéns aos organizadores deste evento. Faço votos que apareçam mais pessoas com este tipo de iniciativa.

Para este desportista de mão cheia a homenagem a José Magalhães “encoraja aos jovens para lutarem por um lugar ao sol e que digam vale a pena praticar o desporto.”

A antiga presidente da FMA, Sarifa Magide, considerou que “foi um gesto muito bom que devia ter sido concretizado há muito tempo. É desagradável ver antigos atletas abandonados e sem reconhecimento de ninguém.”

Sarifa Magide acha que “as pessoas têm de ser reconhecidas por aquilo que fizeram quando ainda vivas. E é preciso fazer-se mais para os jovens gostarem mais da prática de desporto.”   Texto de Manuel Meque   

 

 

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