Opinião

CARTA A MUITOS AMIGOS SOBRE ASSASSINATOS IMPUNES

Existem assassinatos que permanecem até hoje impunes, porque se trata de crimes ao serviço de interesses de potências e de seus aliados. Assim o assassinato de Dag Hammarsjkold, então Secretário-Geral da ONU. O assassinato de Samora Machel e de seus companheiros.

Fez ontem 27 anos que o apartheid assassinou Samora e mais trinta e três companheiros em Mbuzini, a dois passos da fronteira moçambicana. Faz vinte e sete anos que este assassinato permanece na bruma e que nenhum dos perpetradores haja respondido num tribunal.

Alguns comentaristas, quiçá a soldo dos mentores dos crimes, tentam sufocar a verdade. Os pilotos soviéticos viram-se acusados de haverem consumido álcool, o que se demonstrou falso nas autópsias em que participaram patologistas sul-africanos. Tentaram afirmar que o avião não dispunha de combustível suficiente quando se reabastecera em Lusaca. Afirmaram que se tratava de incompetência dos pilotos, quando o comandante já fizera mais de 20.000 horas nesse tipo de avião e o co-piloto mais de 10.000, ambos havendo treinado em Moçambique em voos nocturnos e diurnos em Moçambique, com bom e mau tempo.    

Depois de Mobutu não haver comparecido à cimeira de Maputo, que visava apaziguar o conflito entre o Zaire e Angola, adiou-se a reunião para Mbala na Zâmbia, para o dia 19 de Outubro.

No regresso de Mbala, e todos os dados apurados assim o indicam, sinais emanados de Mbuzini desviaram o avião presidencial da rota. Ele deveria embater numa montanha dentro do território moçambicano, a reacção do comandante de levantar o avião fez que este se despenhasse já em território sul-africano.

As autoridades do apartheid declararam encerrado o inquérito quando a parte moçambicana e a soviética que operava e fabricara o avião desejaram averiguar os sinais emanados do território vizinho.

As populações locais testemunharam que lá havia aparelhos desconhecidos e que ninguém podia circular na zona, aliás declarada zona militar pelo governo. Quando lá chegamos não havia militares, só polícias. As populações e sobreviventes testemunharam que no momento do acidente os militares vasculharam o local, indagavam onde estava Samora e recolheram documentos, sem prestarem qualquer socorro aos feridos.

O Comandante da Força Aérea do apartheidafirmou, em público, que seguira o voo desde que descolara de Mbala e abastecera em Lusaca. O acidente ocorreu cerca das 21h30, mas só nos comunicaram pela manhã de 20 de Outubro, tempo suficiente para fazer desaparecer quaisquer pistas. Pediram que nos deslocássemos para Nkomatipoort, onde informamos que chegaríamos cerca das 08h30, mas ninguém nos esperava.

Pelas 12h00 aterrou o General Cotzee, então Comandante-Geral da Polícia, que cumprimentou-me, deu os pêsames e diante de várias testemunhas disse para averiguarmos um VOR que estava algures ali, indicando o local do despenhamento do avião. Não se tratava de um VOR, mas de algo muito mais sofisticado que deformava as imagens de radar e as indicações de rota. O criminoso Hans Low, então operacional e na zona, diante da Comissão de Verdade e de Reconciliação sul-africana, testemunhou a existência deste aparelho. Pik Botha confirma que os americanos seguiram as comunicações rádio do avião. Estes dados mais que merecem que se apure a verdade.

Compreende-se que a África do Sul post apartheid sofreria uma grave risco de desestabilização se quisesse apurar a verdade que implicaria altos dirigentes das Forças Armadas e da Segurança do antigo regime. Mas muitos desses criminosos já morreram e sabemos que jamais o TPI se preocupa com os criminosos dos sistemas coloniais e racistas.

Os Estados Unidos e o Reino Unido peremptoriamente recusaram associar-se a qualquer inquérito, muito provavelmente porque na conclusão se sentiriam forçados a condenar e tomar medidas contra o regime de Pretória, então um aliado privilegiado no combate contra a URSS na África Austral. Esperemos que passados os anos impostos por lei se desvendem os arquivos britânicos e americanos e saibamos um pouco ou muito mais.    

Há que notar que Samora morre tal como vivera. Morre com homens e mulheres, com gentes de várias idades, com as mais variadas cores da pele, provenientes de diversas etnias e regiões, profissões, de diferentes nacionalidades. Um Moçambique e uma Humanidade em miniatura. A sua morte confirma a sua maneira de viver. Poucos homens gozaram de um privilégio similar, morrer em missão de paz, morrer com gente digna de todos os horizontes.

Esta postura de verdadeiro militante da FRELIMO, de moçambicanidade, de dignidade humana houve quem a perdesse nos tempos mais recentes, em nome da ganância, da ambição, da vontade de galgar para posições mais que imerecidas.

Queremos conhecer a verdade, precisamos dela, há que punir os assassinos, manda a Justiça e a exigência do nosso povo, como do povo sul-africano. Talvez alguns de nós nunca conhecerão o que revelarão os arquivos das grandes potências, mas Moçambique e a África existirão para saber o que se passou. 

  Um abraço à verdade,

Sérgio Vieira

P.S. Uns peralvilhos com méritos de ofídios venenosos e rastejantes entendem denegrir a História da pátria e até põem em causa a dignidade daqueles que lutaram pela libertação de Moçambique, a construção do Estado, a defesa contra os sistemas racistas. Agora perfídia com laivos fortes de racismo?

Há sempre referências morais num país. Washington, Jefferson, Lincoln fazem parte dos ícones americanos, tal como Jeanne d'Arc e De Gaulle na França, Gandhi e Nehru na Índia, Ho Chi Minh e Giap no Vietname, Mao e Tchou En Lai na China, Mandela e Tambo na África do Sul, Nyerere na Tanzânia, Kaunda na Zâmbia, Neto em Angola, Amílcar na Guiné. Porque negar a existência deste escol em Moçambique? Os que o fazem com a verticalidade própria dos lambe-botas, apenas pretendem rastejar para posições mais cimeiras. Pobres coitados, pobres os que o deixam fazer.

Um abraço à valorização de Moçambique e dos seus filhos que dignificam a pátria,

 

SV

R.P.S. Combatente e comandante nas guerras de libertação da Indochina contra os ocupantes japoneses, franceses e americanos, com 102 anos a 4 de Outubro faleceu o General Nguyen Vo Giap, nosso amigo e que nos visitou. Honra e glória a este herói e referência para os combatentes da liberdade de todos os países.

Desapareceu com 83 anos o cineasta moçambicano José Cardoso, um dos pais do movimento cineclubista (onde está?), do infelizmente finado Kuxa Kanema, autor da primeira longa-metragem inteiramente nacional. Onde fica o seu legado neste país em que se discursa sobre cultura e pouco ou nada se apoia a cultura?

Um abraço aos que valorizam Giap e Cardoso,

SV

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