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REDE FERROVIÁRIA: A terceira libertação do Niassa

Por admin

O que aconteceu semana passada no Niassa não é uma simples reabertura de uma linha-férrea, que nunca foi operacional a 100 por cento no pós-independência, mas, sim, a continuação do processo de libertação da parcela mais extensa do nosso país, que tendo sido uma das mais determinantes para a nossa emancipação política, o sonho de a reconhecer tem sido adiado nas diferentes fases da nossa história, em que os transportes e comunicações pontificaram como o maior nó de estrangulamento a desatar.

Já o Presidente Samora Machel, no seu esforço de ver valorizadas as ex-zonas libertadas da luta de libertação nacional, incluindo as províncias de Cabo Delgado e Tete, já tinha definido Niassa como a Universidade do Povo e sonhou que servisse de base de desenvolvimento do nosso país, tendo em conta que, não obstante a sua privação de todos os aspectos de crescimento, as condições naturais nunca desmentiram essa premissa.

Com efeito, a totalidade da sua extensão territorial, completamente fértil, capaz de alimentar todo o território nacional, pegou sempre pelo seu isolamento em relação ao resto de Moçambique e o seu consequente subaproveitamento.

Os anos que se seguiram à Independência nacional foram de definição de prioridades que pusessem as potencialidades do Niassa ao serviço do país, alojando neste território importantes projectos agrícolas, como as machambas estatais de Matama, com os respectivos blocos de produção, Unango, entre os quais de Lucheringo, Lussanhando, Lissiéte, em Mandimba e outros tantos.

Niassa seria a partir donde se expandiria o projecto dos 400 mil hectares de desenvolvimento integrado que abrangeria também a província de Cabo Delgado, que, tendo dado os passos iniciais, porém, a utopia vertida no Plano Prospectivo Indicativo(PPI), da década contra o subdesenvolvimento(1980/90), viria esbarrar com o início da guerra e a derrocada do sistema mundial que nos apoiava a nível internacional.

Niassa desconhecido ou esquecido

Os transportes e comunicações sempre foram, entretanto, um grande nó estrangulador e a linha-férrea Cuamba-Lichinga, uma permanente dor de cabeça com vista ao escoamento dos produtos que Niassa tira do seu solo, mesmo em moldes familiares, para o  resto do país que sempre viveu de algum modo deficitário.

Os esforços visando tornar realidade essa intenção sempre tiveram um travão no facto de a linha-férrea não ser funcional, passando a ser recorrentemente remendada apenas para aguentar curtíssimos espaços temporais e a estrada permanentemente intransitável, não tendo sido asfaltada desde que foi construída ainda no período colonial.

Niassa desconhecido, abandonado, subdesenvolvido, ou ainda esquecido, eram, entre outros epítetos, os adjectivos mais pronunciados, que em surdina pretendiam reclamar o reconhecimento que tardava a chegar à província, contra toda a vontade política que parecia adjacente, tornando perene o seu subdesenvolvimento.

Silenciosamente, a província, que a olhos vistos não encontrava as razões do seu isolamento, foi dizendo que parecia estar deliberadamente excluída, até que, já em voz alta, o agrupamento “Os Massukos” cantou a solidão em moldes mais contundentes e avisou o que significava o atraso do Niassa no equilíbrio de desenvolvimento de todo o país.

Seminário Niassa-2000

Em 1995, sob a liderança do governador Aires Bonifácio Ali, natural desta provincial, realiza-se aquilo que viria a ser a primeira reunião duma área administrativa das suas dimensões, virada para pensar numa planificação, equiparável ao que são hoje comumente conhecidas as conferências provinciais de busca de investimento e se concretizam uma vez em cada lustro.

Decorrido entre 1 e 5 de Outubro de 1995, o seminário Niassa-2000 foi presidido pelo então Primeiro-ministro, Pascoal Mocumbi, virado para, como dissemos, pensar no desenvolvimento da província nos cinco anos seguintes. Mobilizou, na verdade, investidores de diversas proveniências, incluindo diplomatas.

Na recepção de boas-vindas, que teve lugar no centro turístico Kuchinjinje, “Os Massukos” passaram a sua mensagem e os discursos de praxe vieram nos dias subsequentes completar o desfile  do cenário caótico em que a província se encontrava, apontando os antídotos necessários para que Niassa saísse do marasmo em que se encontrava.

Na verdade, para a promoção do desenvolvimento económico e social sustentável para níveis próximos das médias nacionais, sobretudo nas áreas de saúde, educação, emprego e auto-emprego, habitação e acesso à água potável, tudo devia ser tido em conta.

Em primeiro lugar, havia que garantir a melhoria das vias de acesso à província, a partir dos principais eixos que a ligam às demais províncias e ao exterior, sobretudo, por via terrestre, bem assim, dar-se-ia a atenção às ligações entre os distritos e estes entre si e, ainda, todos com a capital da província.

Ficou claro que tudo passava por aqui, desde a expansão e melhoria de desempenho da administração pública em todos os distritos através da colocação de quadros qualificados, a promoção, atracção e facilitação de investimentos privados em todos os sectores da economia, assim como a consequente elevação dos níveis de produção, produtividade agrícola e comercialização através da criação de mecanismos de apoio à produção.

Por outro lado, ficou evidente que também dependia disso a intervenção da administração pública a nível das infra-estruturas de apoio à actividade económica e de determinados sectores (energia e comunicações) e serviços básicos (educação, saúde e abastecimento de água), fundamentais para o progresso almejado.

Dentro dos objectivos estratégicos, tendo em conta ainda o “Niassa-2000” na sua versão  renovada (2000-2005) que teve lugar já em 1999, foi definido como  catalisador de desenvolvimento o triângulo  Lichinga-Cuamba-Marrupa, a precisar, mais uma vez, de vias de transportes e comunicações sérias e duradoiras.

O MESMO HOMEM

DUAS BATALHAS GANHAS

Filipe Jacinto Nyusi assistiu ao seminário Niassa-2000, na qualidade de director exectivo-Norte dos CFM, durante o qual fez “corredores” que desembocaram na conclusão de que a linha-férrea Cuamba-Lichinga, por si, seria responsável por mudar a cara de desenvolvimento da província do Niassa.

Ainda no decurso do seminário, no qual também estivemos presentes, Nyusi convence alguns participantes a viajarem com ele, via terrestre, desde Lichinga até Nampula, de modo a perceberem a importância da linha-férrea, para o que, depois do encerramento, numa coluna de viaturas por si comandada, saíram alguns dirigentes do Governo central, fazendo o troço Lichinga-Cuamba, com uma paragem de uma hora em Mandimba.

O então embaixador malawiano em Moçambique Chinkwita Phiri há muito que havia sido convencido e com o qual se combinara uma posterior viagem de comboio desde  o seu país a Nacala, no quadro das reuniões dos utilizadores do porto.

A coluna atrás referida pernoitou, com efeito, em Cuamba, onde no dia seguinte os convidados tomariam o comboio preparado para a viagem a Nampula, em carruagens previamente preparadas e vagões para algumas viaturas protocolares. 

Na viagem esteve igualmente o director nacional daquilo que viria a ser o Ministério da Coordenação da Acção Ambiental, Dr. Bernardo Ferraz, que o entrevistámos sobre as queimadas descontroladas, em face do que víamos ao longo da longa viagem.

Na oportunidade, o Engenheiro Filipe Nyusi pretendia a sensibilidade dos decisores e influenciadores face ao desenvolvimento do Niassa, para propiciar que as abordagens subsequentes fossem relativamente mais realistas.

Porém, pouco ou nada mudou, até que internamente os CFM, de forma voluntária e quase unilateral, desatou a fazer comboios mensais para Lichinga com o fito de levar o essencial para aquela província. O sal e combustível faziam parte da mercadoria infalível, entre outros bens essenciais. Na altura havia até quadros transferidos para o Niassa que esperavam pelo comboio mensal a fim de levarem a família e os seus pertencentes.

Na verdade, tal implicava ter à ilharga uma zorra que acompanhava a composição, carregando o director executivo que, por sua vez, chefiava os seus colegas com a missão de carrilar o comboio de cada vez que descarrilasse.

O sal e os outros bens e pessoas chegavam deste modo à capital da mais extensa província do nosso país, onde já havia marcas de doenças derivadas da escassez de produtos ali não produzidos, principalmente o bócio, por falta de sal.

O bócio mobilizou algumas organizações do sistema das Nações Unidas, sobretudo o UNICEF e outros locais, período durante o qual pontificou, mais uma vez, a banda “Os Massukos”, em campanhas de sensibilização das populações.

Já em 1992 Nyusi “libertara”

Niassa, 16 anos depois da guerra

Quando em 2007 Filipe Jacinto Nyusi foi nomeado administrador dos Caminhos de Ferro de Moçambique, o seu lugar de director executivo da empresa no Norte passou a ser ocupado pelo Engenheiro Franco Anselmo Catutula que era, até então, chefe dos serviços de via-e-obras e representava os CFM no Porto de Nacala.

Catutula, que ainda representa os CFM na região Norte, esteve na cerimónia realizada esta semana, em Lichinga. Em resposta a uma pergunta feita em Abril de 2014, respondia nos seguintes termos:

“No tempo da guerra  havia dificuldades de circulação de comboios, mas nessa altura e com Filipe Nyusi tivemos de trabalhar muito. Havia material destruído, tínhamos de potenciar as oficinas para servir o Malawi, por exemplo, mas graças ao seu dinamismo conseguimos manter a empresa operacional.”

Franco Catutula recorda ainda que “sob a direcção do Engenheiro Nyusi reabrimos, 16 anos depois, a linha-férrea Cuamba-Lichinga num percurso de cerca de 300 quilómetros que estava encerrada em consequência da guerra de desestabilização”.

A reabertura da linha-férrea Cuamba-Lichinga foi, então, considerada pelo Engenheiro Franco Catutula uma segunda libertação para a província do Niassa, pois a comunicação entre os dois pontos era apenas por via rodoviária, numa estrada precária, situação que se agravava no tempo chuvoso.

Na mesma província e antes do melhoramento da linha Nacala-Entre Lagos, que excluiu programaticamente Lichinga, indo para o Malawi, um dos operários seniores da altura, Henrique Lemos, ouvido igualmente em 2014, diz:

“Ele sempre gostava de estar com os homens de acção, ficava connosco lá no mato quando fosse necessário. Uma vez houve um descarrilamento em Karonga, entre Cuamba e Entre-Lagos, e ele foi para lá; dormiu connosco noites e noites com mosquitos e tudo”.

Em Malema, acrescenta Lemos, quando houve aquele acidente em que morreram muitas pessoas, ele esteve lá, nos escombros, a correr de um lado para o outro, a socorrer pessoas feridas. Carregou, nas suas próprias costas, alguns feridos. Não se limitava a dar ordens. Trabalhava. Em 2010, a linha-férrea voltou a ficar paralisada.

Na quarta-feira, Filipe Nyusi, ora Presidente da República, humildemente furtou-se dessas passagens do seu envolvimento pessoal na linha que partindo de Nacala-Porto chega ao Niassa, com uma ressalva de que pontualmente o troço Cuamba- Entre-Lagos foi reabilitado para servir o Malawi e a distância Cuamba-Lichinga deixada à responsabilidade solitária de Moçambique, razão por que nunca chegava a data esperada por todos, consubstanciada numa reabertura depois duma profunda reabilitação.

Pelo contrário, o Chefe de Estado moçambicano inclinou-se a agradecer a concessionária do sistema Norte dos CFM, a empresa “Corredor de Desenvolvimento do Norte” que nas suas palavras, graças à sua disponibilidade foi possível o evento memorável para toda a população do Niassa, que se assistiu esta semana.

Todavia, entre os presentes, ouviam-se murmúrios apontando Nyusi como o grande obreiro, a quem foi imposta silenciosamente a qualidade de combatente da terceira libertação do Niassa.

Simplesmente disse que trazia para a cerimónia o sentido de dever em relação ao que a população do Niassa, muito particularmente de Lichinga, merece e o seu sentido de prestação de contas, que é intrínseco a gestores sérios, se é verdade que prometera à população que haveria de trazer o comboio, assim que fosse eleito Presidente da República.

O que é que falta?

A esta pergunta, um engraxador “residente” na esquina junto à Pensão 2 +1, de nome Benjamim Miguel Uísque responde que: “para além da estrada que deve continuar a ser reabilitada para ajudar a linha-férrea, e se é aquele Nyusi que eu conheço, falta fazer com que o nosso Ferroviário de Lichinga vá até ao Moçambola. Vamos lutar para que isso seja possível, tendo em conta, entretanto, que esta última questão depende mais de nós!”

Texto de Pedro Nacuo

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